Eugène Atget, Rue de la Montagne-Sainte-Geneviève, 1924
O chão brilha sob a luz mesclada de névoa, espera pelo viandante perdido que, olhando estupefacto para a direita e para a esquerda, não sabe já em que mundo se encontra. Se naquele de onde partiu, se naquele onde haveria de chegar.
Gjon Mili, Stroboscopic image of ballerina Nora Kaye leaping, 1947
Dançar talvez seja a mais perigosa das ocupações humanas. Ao elevar-se, a bailarina vai perdendo um a um os seus corpos, como se alma, no momento da elevação, se quisesse despir dos mil vestidos que compõem o seu guarda-fatos. O perigo está no momento em que pousa na terra. Quantos corpos terá a alma dançante perdido? Os que recuperou e uniu em si ainda são suficientes para que tenha algo para dar vida e fazer rodopiar no palco perante uma plateia suspensa e tremente?
Nos dias de chuva, ela passeava-se sob um guarda-chuva de
cor sóbria. Não havia no seu rosto, para além da beleza, um sinal que a
diferenciasse de qualquer um de nós. A família era conhecida e tinha influência
assinalável na cidade. O estranho era que nem a beleza nem a influência lhe
atraíam pretendentes. Nessa tarde de que me fala, chovia e ela fez o seu
passeio habitual. Sentou-se, contra o costume, num banco de jardim. De dentro
da gabardina, retirou uma garrafa, regou-se com o conteúdo e acendeu um
fósforo. As chamas consumiram-na de imediato. Quando chegaram perto do sítio
onde estava, não havia qualquer vestígio da sua existência. Nem sequer cinzas.
Não há provas de que tenha morrido.
Walker Evans, Pedestrians at Curb, Seen from Above, New York City, 1928
Não deixa de ser estranho o destino dos homens. Uns fogem da sua própria sombra, enquanto outros, sem parar, correm atrás dela. Imaterial e imponderável, a sombra é o centro de todas as actividades humanas. Não há acção em que a luz, ao iluminar o homem, não projecte uma sombra que o fascina e o atemoriza.
Paisagens de pedra e água, moradas onde o silêncio cresce, lugares inexpugnáveis à curiosidade dos homens. Ali se recolhem, solitários, aqueles que vão deixar a vida. Sentam-se e esperam que um anjo chegue e lhes recolha a alma. O corpo, então, desaparece, como se quisesse desmentir o adágio "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma", com o qual se jura pela conservação da matéria.
Alfred Eisenstaedt, Golfers’Ball, Esplanade Hotel, Berlin, 1929
A vida social - um baile, por exemplo - é um exercício de fuga à solidão. Começa-se sempre por fugir a esta, para depois se fugir de si mesmo e acabar por fugir do tremendo mistério que nos envolve.
Dançaram toda a noite. A princípio não os notei, mas, a certa altura, a forma como dançavam prendeu-me o olhar. Havia neles uma leveza que nunca vira, embora nunca tentassem distinguir-se dos outros casais. Conhece, por certo, aqueles pares que gostam de centrar em si os olhares, que se esforçam para manifestar uma distinção técnica e com isso parecem realizar um grande desígnio. Este era diferente, esforçava-se para ser apenas mais um. Quando a festa terminou, segui-os. Eles caminharam em silêncio e nunca deram as mãos. Chegados perto rio, pararam. Foi então que os fotografei. Nesse instante, sem que eu perceba como, desapareceram. Encontrei-os quando revelei a fotografia. Ali estavam eles, presos ao papel.
Andreas Feininger, Figurenarchitektur von Lyonel Feininger, 1971
Universos de pedra são como casas onde habitam homens silenciosos, clareiras onde tudo se vê mas nada tem sentido. Os seus habitantes caminham ao acaso, encontram-se e logo se afastam, sem que uma razão desfaça o enigma ou uma súbita iluminação lhes esclareça a existência.
Lord Snowdon, Ballet Dancers Rudolph Nureyev and Dame Margot, 1963
É apenas um instante, uma ilusão maculada de alegria, um fruto que se abre para a maturação. Depois, elevam-se e são anjos. Escondem-se nos telhados e vigiam os homens. Por vezes, uma ânsia de gravidade atinge-os. Nesse momento, poisam ao de leve nas ruas e caminham envoltos no seu corpo de luz.
Eve
Arnold, Gala Opening Metropolitan Opera, New York, 1950
A luz artificial, aquela que faz a glória da nossa civilização, tem o estranho condão de sublinhar o que há de obscuro e umbroso na realidade. Ao tocar num objecto ou numa pessoa, o que se manifesta, mesmo que, embotados pelo hábito, já não o notemos, é a sombra que a envolve.
Há quem sonhe com mundos circulares, possuído por um desejo de perfeição ou um anseio de beatitude. Depois, ao acordar, projecta o sonho no mundo e recebe nos seus olhos a sombra do mistério e o passaporte para o silêncio.
A manhã rompe o silêncio e abre-se sobre o mistérios dos pântanos. As árvores despem o luto e deixam que as cores atraiam para elas os olhares de quem está longe.
Rudy Burckhardt, Legs of Woman Walking Across Manhole Cover, New York City, 1939
O barulho dos saltos ao bater na chão ecoa ainda na minha memória. De súbito, levanta-se uma tempestade terrível e ela, temerosa, embrulha-se no silêncio da sua sombra. Caminha então como se levitasse ou um anjo a tomasse em seus braços luminosos para a entregar na casa onde um dia de júbilo a aguarda.
Frank Eugene, Miss Gladys Lawrence - The Seashell, 1910-13
Ela transportava sempre aquela concha consigo, levando-a,
uma vez por outra, ao ouvido. Então, ficava assim durante longos momentos. Depois, como se orasse, apertava-a nas mãos. De seguida, pousava-a e retomava o trabalho, aquele
que haveria de desfazer durante a noite. Interrompia-o para sintonizar de novo
o mar naquele objecto mágico. Sempre que o fazia, uma sombra cobria-lhe o rosto
e uma dor varava-lhe o peito. Também no dia em que, irreconhecível, Ulisses
desembarcou em Ítaca, ela levou a concha ao ouvido. O que escutou deu-lhe tal
alegria que deixou que o objecto se desprendesse das mãos e se estilhaçasse nas duras
lajes do palácio. O mar deixara de lhe falar.
Imóveis, as jogadoras descansam dos acasos do jogo. Olham-se e não falam. Guardam os segredos no cofre-forte da discrição. O que sabem só a cada uma diz respeito. Esperam apenas que o tempo passe e se tornam pedra, estátuas frias na turbulência do tempo.