segunda-feira, 30 de setembro de 2024

O sal do silêncio (118)

Ângelo de Sousa, sem título, 1966

Os poderes do silêncio transbordam da matéria húmida presa no interior da Terra. Florescem no mundo como searas de cor ou erguem-se na pulsação das florestas quando tocadas pelo sal da aurora.

sábado, 28 de setembro de 2024

A memória do ar (34)

E. F. Withmore, Black Brook Notch, 1890

Nas montanhas, diz-se, o ar é mais puro. Talvez essa memória arcaica contenha ainda uma visão fulminante da verdade, a recordação de um tempo em que imensas florestas cobriam as encostas e, como um poderoso filtro, teciam a pureza do ar, daquele que o vento levaria para cobrir as planícies e as primeiras cidades, ainda incipientes na ideia que as fazia nascer.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Geometrias de fogo (34)

Van Gogh, Pollard Willows with Setting Sun, 1888

O Sol, ao pôr-se, desenha estranhas paisagens, onde nascem, na lentidão da tarde, reflexos e imagens que não pertencem a este mundo, mas que encontram nessas geografias esboçadas pelo crepúsculo o seu lugar e a casa de que fazem a mais viva das moradas.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

A sombra da água (34)

Luís Noronha da Costa, Mar Português, 1982 (Gulbenkian)

Um mar que se encerra dentro de um adjectivo perde-se de si mesmo, torna-se uma água coalhada pelo pulsar das palavras, uma visão de sangue espumejante a fugir pela areia das praias, um rasto de luz a ferir-se na solidez das rochas, uma promessa de fuga desfeita pela linha do horizonte.

domingo, 22 de setembro de 2024

O Espírito da Terra (34)

Maria Benamor, A Memória e o Sonho, 1971 (Gulbenkian)

O Outono é o sonho tardio da Terra. Adormece lentamente no crepúsculo do ano e deixa a memória levedar nas longas noites que a aproximam do Inverno, para que, sonhando em silêncio, a vida descanse nas suas entranhas, ganhe forças para as longas provações que virão, para triunfar, chegada a hora, sobre a noite e o carvão das trevas.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Haikai do Viandante (438)

Vespeira, Óleo 170, 1961 (Gulbenkian)

Tardes de Verão.

Flocos de chuva e fogo

chamam o Outono.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Impressões 121. Cidade branca

José Júlio Andrade dos Santos, Paisagem (A Cidade Branca), 1951

Uma cidade parada sob a noite, maculada pelas sombras que lhe trarão o negro dos sonhos e a ânsia pelo despontar da aurora, para que, rua a rua, casa a casa, recupere a brancura ancestral, a pureza de virgem que o passar do dia ocultou no véu lutuoso de um crepúsculo moribundo.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Sonetos de Verão (12)

Carlos Calvet, sem título, 1967 (Gulbenkian)

Regressou de rompante o Verão.

Crescem fogos, florestas a arder

contaminam os corpos, e as almas

frágeis urdem severos desesperos.

 

Tudo arde na viva luz da tarde,

as imagens passadas resplandecem

no futuro a vir, no presente ávido

de encontrar o caminho destinado.

 

Um suspiro final, pura vingança

feita fogo e fumo, as frias cinzas

do Outono a chegar enlouquecido.

 

Sem destino, os corpos em vão buscam,

no incêndio da noite, as almas puras

que lhes cabem na senda da floresta.

 

Maio de 2024


sábado, 14 de setembro de 2024

Meditação breve (198) Aldeia

Francis Smith, Largo de aldeia (Petite place au Portugal), 1954 (Gulbenkian)

A doce fantasia de ver nas velhas aldeias locais de uma vida boa. Na aparente inocência de casas e pessoas, escondem-se os segredos mais terríveis, um exercício contínuo de vigilância mútua, o fogo aceso da inveja que nunca se extinguirá, uma mão sempre pronta para o crime.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

O sal do silêncio (117)

Querubim Lapa, sem título, 1948 (Gulbenkian)
Uma perplexidade debruada pelo medo. Um espanto tocado pela incerteza. Os espectadores sonham a bailarina no palco e são por ela sonhados, como se o silêncio do encontro fosse um sinal anunciador de uma novidade transbordante de perigos e possibilidades.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Signo sinal 21. Natureza

Lucien Clergue, Maïs, Camargue, 1960

Também a natureza nos recorda a cada instante que tudo é símbolo e que cada coisa é mais do que ela, pois é signo que se entrega à nossa decifração e sinal de que neste mundo um número infinito de outros mundos se tocam e cruzam, deixando cada um deles um símbolo como atestação do segredo que lhe dá existência.

domingo, 8 de setembro de 2024

Sonetos de Verão (11)

León Kossoff, Christ Church, Spitafields, Summer, 1990

Caminhamos no sulco que outrora

foi rasgado na terra em silêncio

pelas mãos de quem veio antes de nós

e nas sombras do Estio se recolheu.

 

Murmuramos os nomes e tecemos

com a voz litanias e orações.

Damos graças e vamos pela senda

que se abriu na memória descerrada.

 

Devedores, colhemos flor e fruto.

Devedores, clamamos as vitórias.

Devedores, erguemos o espírito.

 

Somos sombras de sombras mais antigas.

Mortas, guiam os nossos passos rudes

nos caminhos por elas lacerados.

 

Setembro de 2024 

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

A memória do ar (33)

Pedro Chorão, sem título, 1977 (Gulbenkian)

O horizonte abre-se para que as memórias aéreas trazidas pelo vento possam espalhar-se pelo mundo, cobrindo de chuva a secura campos, envolvendo de verde a pedra das montanhas, estremecendo as ondas perdidas do mar, flutuando nas águas puras dos rios, cerzindo aldeias desavindas, derramando luz sobre a crueza incendiada das grandes cidades. 

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Geometrias de fogo (33)

Marc Chagall, The Sun of Paris, 1975

Um círculo do fogo no céu abre um mar vermelho no horizonte. Como veleiros, os pássaros navegam nas alturas o esplendor da luz. São anjos tocados pelo silêncio, promessas de vida abertas na folhagem da esperança, um rasto de verde no crivo aceso da paixão.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Sonetos de Verão (10)

Hein Semke, Também AD., 1980 (Gulbenkian) 

De Setembro o cântico e a sombra,

a promessa de dias de luz amena,

de um mar revoltado no sossego

das manhãs, na volúpia do crepúsculo.

 

Somos anjos perdidos nesta terra,

submetemos o corpo e a alma

ao ditado imposto pelo tempo,

a tragédia trazida ao nascer.

 

Uma rosa translúcida cintila

sobre o mar de Setembro, sobre a luz

do crepúsculo, sobre o sal do dia.

 

Procuramos incógnitos o estado

esquecido na hora de nascer,

olvidado no tempo que se escoa.

 

Setembro de 2024