sexta-feira, 31 de julho de 2009

Poemas do Viandante (34)

34. INCLINAÇÃO

não sei 
se olho
se canto


a luz vacila

escuto
e tudo para ti
é senda 

caminho
feroz inclinação

quinta-feira, 30 de julho de 2009

O mistério do amor

O mistério do amor. Não me refiro ao amor divino, mas ao amor humano, ao amor erótico. O amor divino é uma metáfora humana, demasiado humana, para dar a pensar e a viver a atracção que o espírito sente pela fonte da existência. Mas esta metafórica tem o condão de ocultar a dificuldade de se permanecer perante o próprio amor humano, daquele que serve de termo comparativo para sustentar a metáfora do amor divino. O facto é que há uma obscuridade a envolver o próprio amor humano, como se o amor erótico fosse uma metáfora assente num termo comparativo desconhecido. Quase poderíamos dizer que o amor humano é mais misterioso que o divino. Se quisermos falar da experiência erótica, apenas a dimensão equívoca da metáfora permite o discurso. Um discurso puramente denotativo sobre eros é de tal insipidez que não há amante que nele se reconheça. A presença de um corpo a outro, o jogo dos sentidos, a tensão do desejo, a desordem dos corpos, o fluir hormonal, a atracção dos espíritos, todos esses movimentos que a Física, a Química, a Biologia, a Anatomia e a Psicologia podem descrever, são enquanto tais insignificantes. A sua significância emerge através do poder evocador da palavra, e a palavra só é evocadora se ela se desconvoca da denotação e aceita o desafio de dizer o não dito, o inédito, o não dizível. Dizer o não-dizível, uma impossibilidade lógica, é a face discursiva do jogo erótico, também ele habitado no seu cerne por uma impossibilidade. É este não-possível que é a sua condição de possibilidade. Só o impossível torna possível o amor. A questão remanescente será: mas que impossível é este?

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Poemas do Viandante (33)

33. RECOMEÇO

na sombra
passos
oiço-os
ao entardecer

e recomeço
o caminho
volto
a nascer

Da humilhação

Ter a obrigação de fazer uma coisa absolutamente estúpida é uma prova para a nossa humildade. Pensamos que aquilo que em nós resiste é a nossa inteligência, a razão que acompanha os nossos pontos de vista. Tudo isso é reconfortante para o nosso pequeno ego, mas a verdade é outra. O que resiste em nós é o orgulho, o ego próprio inflacionado perante a estupidez do ego que nos superintende. O que fala em nós nessa resistência é a falta de humildade. É humilhante ter de fazer coisas estúpidas só porque outros, que têm poder para tal, no-lo impõem. Mas essa é uma oportunidade para nos desprendermos de nós mesmos, para nos desligarmos das nossas considerações sobre a natureza superior da nossa pequena máscara e aceitar aquilo que Ele nos envia.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Poemas do Viandante (32)

32. PUDOR


o pudor
desta rosa -



uma mão
uma sombra
o barco
aberto ao
silêncio

sábado, 11 de julho de 2009

Caminhos

Como poderemos aprender o caminho? Caminhando. Nesse estar aí aprendemos a direcção. Isso não significa que não nos equivoquemos, que não soframos derrotas e humilhações. Significa apenas que os equívocos, as derrotas e as humilhações fazem parte do caminho e dirigem-nos na direcção que espera por nós. Um retrocesso nunca é apenas um retrocesso, um engano na encruzilhada é um passo na direcção certa. Todos os caminhos fazem parte do caminho e seja qual for a estrada que escolhamos O que espera por nós lá se encontra à nossa espera.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Poemas do Viandante (31)

31. CONSTELAÇÕES DE AVES

constelações de aves
acendem-se
nos céus

e na terra
os astros
são fogo

jamais ardeu

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Seja feita a Vossa vontade

Escreve Eckhart."Deus deseja que em todas as coisas renunciemos à nossa vontade." O que significa, porém, essa renúncia? Antes de mais, significa a renúncia ao particular, ao subjectivo, ao perspectivístico, ao relativo. Desapossar-se de si, renunciar à vontade própria, significa, então abrir-se ao que não tem limites, ao que não é particular, ao universal e ao absoluto. Isso não pode ser compreendido, todavia, como uma afirmação da natureza absoluta da criatura, mas apenas a afirmação da sua possibilidade de participar naquilo que a ultrapassa. A vontade própria encerra-nos na pequenez da nossa propriedade. Renunciar a ela é abrir-se aquilo que lhe é incomensurável. A vontade própria é uma prisão. Renunciar a ela é renunciar à servidão. Seja feita a Vossa vontade, foi isto que o Cristo veio dizer aos homens. Dito de outra maneira: sede livres.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Poemas do Viandante (30)

30. SEGREDO

um sussurro
sopra
entre mãos

e um segredo
desprende-se
da terra
em aluvião

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Luz e trevas

"A luz brilha nas trevas, e as trevas não a compreenderam." Como poderemos compreender a luz se nos habituámos desde o nascimento às trevas? E todos os passos, por luminosos que pareçam, são ainda um adentrar nas trevas. Mas as trevas não são apenas a ausência de luz, elas são o lugar onde a luz brilha e ao brilhar tão intensamente torna em trevas aquilo onde brilha. Adentrar nas trevas é ainda um caminho para a luz, porventura o único caminho que resta.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Poemas do Viandante (29)

29. A ROSA

deixo a palavra

pedra abandonada
ao vento


e canto-te
antes de a rosa
abrir
desfolhada

sábado, 20 de junho de 2009

Poemas do Viandante (28)

28. SE


se o anjo
fala na noite
e nas trevas
olha o coração
como respirar
o frio do inverno
o terror

duma manhã 
de verão

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Criar e ser criado

"O poeta entra em si mesmo para criar. O contemplativo entre em Deus para ser criado." (Th. Merton) Se o caminho para entrar em Deus for o de entrar em si mesmo, então o acto de criar e o de ser criado confundem-se e o artista criador não é mais do que criação, imagem e semelhança daquele que o cria. E aqui podemos surpreender um sentido novo da mimésis grega. A mimésis, a imitação, não residiria essencialmente na criação de uma cópia da realidade natural, mas na imitação do gesto criador. O artista cria à imagem e semelhança do Criador, desse Criador que continuamente me cria. Em arte, nomeadamente em poesia, a mimésis do real empírico é absolutamente secundária relativamente a esse mimésis mais originária, a da identificação do artista com o Deus criador. Sendo assim, todo o acto artístico tem uma dimensão litúrgica na qual o artista imita ritualmente o gesto criador de Deus, O celebra e O cultua. Por isso, não há arte profana. Toda a verdadeira arte pertence ao domínio do sagrado, tenha ou não o artista consciência disso.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Poemas do Viandante (27)

27. VELHA CANÇÃO


sem medida
quem tudo mede

uma vara
uma sombra
a palavra de gelo
na velha canção

oiço-a crepitar

terça-feira, 16 de junho de 2009

Poemas do Viandante (26)

26. OIÇO-OS CANTAR

pássaros
no colmo

do telhado

oiço-os cantar
no sono leve

e frio
se adormecem
ao luar

A maior ilusão

A maior ilusão é aquela que reside na confiança de que as coisas são como nós julgamos que são. De um momento para outro, tudo rui e a realidade mostra-se totalmente outra, surpreendente. Como poderemos nós guiar-nos pela ânsia da estabilidade, se mesmo o que temos por mais certo não é senão incerto. Abrir o espírito para a incerteza do mundo e deixar vir essa incerteza no seu ser incerto. Nada esperar, nada desejar, mas aceitar aquilo que for enviado.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O caminho do amor

Já longe na jornada, o viandante pergunta-se: qual é a tua via? Busca dentro de si, busca perplexo no silêncio da noite, busca o que ele bem sabe desde há muito. A sua via não é do encontro amoroso com o divino. Há no caminho do amor algo que o deixa sempre frio, como se o excesso de sentimento ou de afecto fosse um obstáculo ao próprio caminhar. Vários são os caminhos e cada um só pode percorrer o seu próprio, aquele a que foi chamado.

domingo, 14 de junho de 2009

Poemas do Viandante (25)

25. VENTO


sopra o vento
na ramagem 

do quintal

um corpo
um anjo
a luz 

que se apaga
se passa o umbral

sábado, 13 de junho de 2009

Viagem

Ser viandante é apenas estar em viagem, mas a viagem é infinita, não tem princípio nem fim. Um dia, surpreendemo-nos na viagem, mas ainda não percebemos que estamos a viajar, pois não sabemos de onde viemos nem para onde vamos. Temos a ilusória esperança de encontrar uma meta para onde caminhar. Mas enquanto caminhamos e caminhamos, enquanto nos vamos perdendo no caminho e, filhos pródigos, retornamos ao viajar, começamos a pensar que nada há para além do viajar. Talvez haja ainda, nesse momento, a necessidade de uma trégua, a busca de uma finalidade, a ânsia de um fim. Isso, porém, é a voz da nostalgia dos verdes anos. Com o tempo descobre-se que é uma doença benigna, com o passar dos dias e dos anos acabará por passar. Por fim, revela-se no viajar a essência do viandante. Nessa luz, ele sabe que não se dirige para lado nenhum, pois não há qualquer lado onde ir, descobre que ir ou permanecer são exactamente a mesma coisa, são ainda e só a viagem.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Poemas do Viandante (24)

24. FOGO


fogo
penumbra
desta mão

nome
tão veloz
dói 

se toca 
a ausência
foge de nós

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O Corpo de Deus

Dia de Corpo de Deus, dia de afirmação da presença substancial do corpo e do sangue de Cristo na hóstia consagrada. Mas o que de mais fundo agora podemos pressentir, para lá do mistério eucarístico, é a sagração do corpo. Estranha visão esta. Não será o cristianismo a religião adversa do corpo e da carne? Mas como pensar então no corpo de Deus? Como estabelecer a conexão entre Deus e corpo? O corpo de Cristo simboliza o carácter divino do próprio corpo. E o corpo não é apenas corporalidade reduzida à mera extensão, reduzida a uma geometria tri-dimensional. O corpo e o sangue enviam-nos para a ideia de carne, de corpo vivo, mas também aqui não estamos perante uma dimensão puramente biológica. O corpo é mais do que um elemento físico e biológico, o corpo humano, com tudo o que contém, é um mistério e um caminho que leva o homem para além daquilo que é meramente humano, ou, dito de outra forma, sendo humano é, por isso mesmo, sobre-humano.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Poemas do Viandante (23)

23. imponderável


imponderável 
sopro do vento

um rasto de água
na porta da casa

um grito uma mão
a voz do tormento

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Poemas do Viandante (22)

22. venha o que vier

venha o que vier

e o pobre o coração
treme corre desagua
nas areias do mar
na luz do dia
na sombra da lua

virá o que vier

sábado, 6 de junho de 2009

Meditação e arte

Diz Merton: "Aprendamos a meditar no papel. O desenho e a escrita são formas de meditação." Como compreender a palavra do cisterciense? Talvez percebendo que na meditação como na arte não é o sujeito que é o centro e o autor, mas que qualquer coisa se revela nesse seu meditar ou criar, e aquilo que se revela aí é o verdadeiro autor. O sujeito não passará então de um mediador onde aquele ou aquilo que se deve revelar se revelará. Por isso, a meditação e a arte exigem o desapego e o apagamento do sujeito.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Poemas do Viandante (21)

21. a sombra

a sombra
desvanece-se

uma casa
uma promessa

a mão que se estende
mal amanhece

A morada do cansaço

Escrevo agora da morada do cansaço. É uma casa turva de onde o olhar sai com dificuldade, mas é nela que nasce uma súbita volúpia, como se a quebra física fosse uma porta para uma estranha dimensão metafísica. Exausto o viandante quer descansar, mas é aí que vem a hora de retomar caminho. Caminhemos por entre a astenia e escutemos o que se canta nas novas paisagens que, abertas na morada do cansaço, chegam.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Poemas do Viandante (20)

20. corações

corações
barcos irrevogáveis

abrem no mar 

esteiras de cristal 

símbolos segredos

um leve sinal

domingo, 31 de maio de 2009

Segredo

Ser-se si mesmo. Mas como ser si mesmo se não sei quem sou? A resposta, porém, não está no "conhece-te a ti mesmo" socrático, mas no esquecimento de si, nesse mergulhar na escuridão e nela encontrar aquilo que em mim é mais do que eu. Ser si mesmo então é ser mais do que eu, é ser pura e simplesmente, é abrir-se, romper a clausura do ser e deixar que ele venha. O meu segredo é não ter segredo nenhum, mas ser todo e completamente secreto. Ser-me é ser o segredo que me habita.

sábado, 30 de maio de 2009

Poemas do Viandante (19)

19. eis a casa

eis a casa 
onde te penso

na mesa 
pão e vinho
talher de prata
toalha de linho

sexta-feira, 29 de maio de 2009

O inútil protesto

Agir e não desejar o fruto da acção, fazer o que deve ser feito e não esperar recompensa, quebrar a lógica do dom. Doar mas sem expectativa de receber, sem protesto pela ausência de reconhecimento. Entregar tudo nas mãos daquele que tudo superintende, mesmo se Ele não se move, não planeia, não espera. Quem está no mundo deve agir, mas deve agir como se contemplasse, como se não agisse. Mas será o viandante capaz de tal entrega? Quantos protesto inúteis contra o que acontece, como se o acontecer não fosse ainda manifestação de uma vontade que a tudo ultrapassa?

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Poemas do Viandante (18)

18. avisto o verão

avisto o verão
túnica púrpura
e cabeça de oiro

quando chega
tudo ferve

a boca amarga
as ervas secas
os pinhais a arder

Tristan und Isolde


Oiço agora a cena final de Tristan und Isolde, de Wagner. Como é possível que um homem tenha feito aquilo? Como na pura imanência se inscreve a absoluta transcendência? Ali, na mais funda contenção, desenham-se mil mundos possíveis, como se Deus descesse naqueles acordes e trouxesse a densidade da sua dor para a compartilhar connosco. A dor de Deus feita música, uma dor que chama por nós na noite negra, uma dor que abre o mundo à terna alegria.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Poemas do Viandante (17)

17. a vara sobre a terra

a vara sobre a terra
a mão cheia de sal

um risco de azul
aberto no céu
sob o silêncio de coral

Perder tudo

Abandonar, abandonar tudo, perder inclusive Deus. Aí, na extrema derrelicção, abre-se um caminho, escuro caminho, envolto em trevas e negra luz. Não é um caminho que o caminhante faça, pelo contrário. É o caminho que torna o caminhante em caminhante, o absorve no vácuo que nasce do abandono.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Poemas do Viandante (16)

16. sinal no deserto

sinal no deserto
ave de sombra
flor que se abre
a voz tão perto

domingo, 24 de maio de 2009

Espanto

Como deixar que o espanto venha e nos arranque da insensata sensatez com que a vida toldou o espírito? O hábito cresce como uma sombra sobre o desconhecido e sob o véu desta sombra o desconhecido toma a aparência do mais conhecido. Na mais intensa luz do conhecimento abre-se secreto o segredo do desconhecido. Todo o conhecimento humano é revelação. Revelar significa mostrar e, ao mesmo tempo, tornar a velar, a ocultar. O espanto não será então a deriva de um espírito inconstante, mas a atenção suprema ao instante, àquele instante em que o divino se revela, se mostra e se oculta, se dá a nós e nós, na insensata preocupação de o capturar, o perdemos.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Poemas do Viandante (15)

15. sombras na viagem

sombras na viagem
paixões de salitre
mar incendiado
na madrugada

se abro os olhos
tudo vibra
névoa e melancolia
a memória derrotada

quinta-feira, 21 de maio de 2009

A voz que cantará

Um passo mais, um desbravar de horizonte, um abrir-se ao desconhecido que há no fundo de si. Conhecemos demasiado e em todo o conhecimento há uma ocultação. Envoltos no orgulho da vitória cognitiva, esquecemos esse fundo obscuro de onde provém toda a luz. Abrir-se ao desconhecido que há em si é mergulhar nas trevas mais densas. Ali esperamos a voz que cantará pela meia-noite.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Poemas do Viandante (14)

14. não fora o medo

não fora o medo
e eu cantaria
a tua face

sombra desmedida
no alvoroço
da eternidade

terça-feira, 19 de maio de 2009

Dissipação

Um dia entregue à pura exterioridade, uma quase impossibilidade de conjugar a pessoa em que sou com as exigências que a vida em sociedade impõe. Há muitas formas de calvário, e aquilo que para uns é motivo de prazer e felicidade pode ser para outros o transporte de pesada cruz. Mas agora que medito e olho para a dissipação do dia, descubro aí um passo mais para Aquele que ultrapassa as dores e os prazeres, ou que faz de cada dor e de cada prazer um caminho para Si. Como me atrevo a dizer que a dissipação é dissipação?

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Poemas do Viandante (13)

13. sentado no molhe

sentado no molhe
ou viajando 
de cais em cais
oiço pássaros
conto estrelas

e nessa harmonia
o coração abre-se

uma sombra
um castelo
a fonte onde
a dor amanhece

Ser e querer

Deus é um prodígio: Ele é o que Ele quer, / E quer o que Ele é, sem medida nem finalidade (Angelus Silesius, O Viajante Querubínico I, 40). Eis a medida de todo o homem, Deus a perfeita coincidência do ser e do querer, uma coincidência incomensurável e gratuita. Neste espelho descubro os meus limites: não sou aquilo que quero e não quero aquilo que sou. Aqui nasce toda a moral: eu devo ser aquilo que quero. Mas se eu nada quiser e se eu nada for? Quem será em mim e quem em mim quererá?

domingo, 17 de maio de 2009

Morte e ressurreição

Morte e ressurreição, a estranha promessa sobre a qual um mundo foi construído. Mas a nossa estranheza repousa apenas na desatenção com que olhamos a vida. A cada instante vivemos a Sexta-feira Santa e o Domingo de Páscoa, a cada instante a morte é condição de possibilidade da ressurreição. A promessa da ressurreição não nasce, desta forma, de uma possibilidade metafísica, de uma especulação fundada na imaginação, mas da pura atenção ao acontecer. A ressurreição tem uma génese empírica, génese essa que nasce da contemplação do devir temporal. Onde o tempo actua, eu vejo a morte triunfar e no mesmo instante observo a ressurreição que aniquila morte. A ressurreição é a morte da morte, e a vida não mais do que esse perpétuo jogo, que o tempo traz e oculta.

sábado, 16 de maio de 2009

Poemas do Viandante (12)

12. caminho

caminho
como caminham 
os mendigos

porta em porta
à espera
de uma rosa
de um raio de luz
da noite

o que me leve para ti

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Saber demais

Saber da luz e ser cego, conhecer o som e ser surdo. Como fugir desta condição onde o não saber cresce dentro de tudo o que se sabe? Não vale a pena o estratagema do velho Sócrates, o só sei que nada sei. Não devia ele um galo a Asclépio? Não, eu sei de mais, todos sabemos demasiado. De tanto sabermos, já nada sabemos. É na luz que cresce a escuridão, é no som que cresce o silêncio. É no oásis que se eleva o deserto. Pudera eu aniquilar todo o meu saber e tornar-me cego e surdo no deserto ardente.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Poemas do Viandante (11)

11. caem palavras

caem palavras 
breves sinais

um retrato 
uma cifra
a noite rasurada 
pelo cais

A luz que oriente

Um dia de dissipação. O espírito arrastado pelo turbilhão dos devaneios, uma distracção contínua, uma impossibilidade de ir para o essencial. Um dia de seca e de aridez, um dia desperdiçado, um dia escuro e afastado da luz, de qualquer luz, por mais pobre e sumida que fosse. Mas este é apenas mais um dia entre os muitos onde a vontade se arrasta impotente, e nessa impotência se entrega à luxúria desenfreada do devaneio. O devaneio nasce do fascínio que certas coisas exteriores exercem sobre a imaginação, impedindo o espírito de operar. Mas por que será tão frágil o meu espírito, tão incapaz de resistir à tentação? É um espírito perdido, abandonado nos baldios da terra, sem rota nem estrela polar. Ainda virá uma luz que o oriente?

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Amor

Haverá amante e coisa amada? Enquanto um e outro suspirarem ainda o amor não estará presente. Quando este vem, já não há quem ame nem quem seja amado, mas apenas o puro amor subsiste, nessa indiferença tão diferenciada, nessa prisão tecida de liberdade.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Poemas do Viandante (10)

10. oiço o vento


oiço o vento 
pelos canaviais
um murmúrio
na cidade

alguém chega 
cantando
no vendaval 
da saudade

segunda-feira, 11 de maio de 2009

O mar incriado

Mergulhar no mar incriado da divindade pura, diz Angelus Silesius. Apenas isso e nada mais do que isso. Mas como entrar nessa água? Saber-nos-emos despir para que o mar não nos confunda? Se se despir completamente, se tirar uma a uma as peças de roupa que o revestem e mascaram, haverá ainda uma distinção entre aquele que mergulha e a água desse mar incriado onde mergulhará? Despir-se de si, abandonar-se, tornar-se vazio; o mar aí estará no puro esplendor do que não tem começo nem fim.