quarta-feira, 1 de março de 2017

Haikai Urbano (4)

Nadir Afonso - Le Lac de Toronto (1984)

a cidade cresce
na luz das águas do lago
cimento e sombra

terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (614)

Marcel Duchamp - Disc em movimento - Rotolief

614. um disco em delírio

um disco em delírio
desenha
uma rota de colisão
e rodopia
rodopia
tomado pela cólera
de um coral
preso ao fundo
negro
negro da escuridão

(08/12/2016)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

A sombra exausta

Bill Jacklin - Argus I (with Shadow) (1985)

Já não posso estar aqui. Durante muitos anos, pode crer, este foi o meu lugar. Cansada, sentava-me nesta cadeira. Sempre no mesmo lugar junto à parede. Via a luz que entrava na casa. Gostava, em particular, dos crepúsculos, da sensação do mundo a desvanecer-se na noite. Agora, cada vez que aqui me sento, é um tormento. Sinto umas mãos nas minhas costas. Empurram-me como se tivesse perdido o direito a sentar-me na minha cadeira. Se descobri quem me empurrava? Sim. É a minha própria sombra. Que desapareça, grita. De tanto conviver comigo, está exausta e não me suporta. Chegou o tempo dela se sentar na cadeira e descansar, afiança, enquanto me empurra.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Da casa do espírito

Lajos Kassák - IV. Aristocratas e Castelos (1920)

Os castelos perderam sentido e com eles também o perderam as aristocracias. Um certo espírito está sempre ligado a um certo tipo de habitação. Quando a casa perde o sentido morre também o espírito que a habitava e lhe dava vida. Mas o espírito não é imortal? Não está ele para além do corpo e da morte? Não e sim. Sempre que o espírito encontra albergue numa certa moradia limita-se e torna-se mortal. O tempo e a história dar-lhe-ão o fim que já está inscrito na sua limitação. O espírito imortal , esse não tem onde habitar, não procura morada nem lugar de repouso. Como o vento, ele corre pela terra. Ora está no deserto, ora sopra do cume das montanhas. Vagabundo, sem eira nem beira, miserável e sem casa onde habitar, esse é o espírito imortal.

sábado, 25 de fevereiro de 2017

O desejo de voar

Tal-Coat - Vuelo (1973)

O desejo de voar que habita os homens não se deve a uma propensão para imitar as aves mas a uma ânsia de libertação. Libertar-se das limitações do corpo e do império da gravidade. Voar é então um devaneio da razão sobre as condições da nossa humanidade. No entanto, este sonho de se libertar da prisão imposta pela densidade da carne é apenas o prelúdio de uma compreensão do homem como espírito. No voo a espécie humana simboliza a graça do espírito, a graça de um mover-se que a eleva acima da condição terrestre e a abre para o incomensurabilidade da condição celestial.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (613)

Felo Monzón - Composición cinética (1965)

613. o lirismo do labirinto

o lirismo do labirinto
leveda
em traços negros
e traz aos olhos
névoas
neblinas matinais
a combustão
do desejo
no labor lavrado da lava

(08/12/2016)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Meditação breve (15) - Édipo e a esfinge

Valerio Adami - Édipo e a esfinge (1980)

Não foi Édipo que matou a esfinge. Foi a esfinge que se deixou matar por Édipo, para assim o perder sem remissão. 

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Haikai do Viandante (316)

Fernando Sáez - Crepúsculo (1991)

frias sombras descem
sobre o palácio de inverno
uma ave cantou

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O concerto

Antonio Bueno - Concerto per Flauto e Violoncello (1972)

Era domingo, eu estava só. Ao cair do crepúsculo comecei a ouvir uma música. Um dueto para flauta e violoncelo. O som foi-se aproximando. Fiquei fascinado. Conforme anoitecia, a música tornava-se mais viva. A certa altura, mesmo no centro desta sala, vejo duas formas, primeiro difusas, depois cada vez mais nítidas. Eram os instrumentos. Pareciam tocar sozinhos. Senti medo, confesso. Quando a noite se cerrou, notei que duas mulheres, jovens e belas, os tocavam. E como tocavam… Não sei quanto tempo durou o concerto. Adormeci e quando acordei, na manhã de segunda-feira, elas tinham desaparecido. Os instrumentos são aqueles que vê. Foram a sua herança.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (612)

Yves Klein - Empreinte du fond d’une baignoire vide dont l'eau avait été colorée de Vermillon (1960)

612. lento e leve levita

lento e leve levita
o vento
poeiras de sódio
rastos de sílica
traços de lítio
seguem
na folha caída
do sonho sonhado
na cegueira de deus

(07/12/2016)

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Meditação breve (14) - Crença e dúvida

Francisco Arjona - ¡Adelante con la duda! (1985)

Não é a dúvida que mata a crença. É a crença que não se põe em dúvida que acaba por morrer anémica.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Haikai Urbano (3)

Francisco José Pérez Masedo - Extrarradio (2000)

o novo deserto
sol cimento e solidão
rumores de cinza

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (611)

Yves Klein – Allures (1959)

611. cidades sitiadas

cidades sitiadas
de silvas e cal
manchas
breves
e máculas de óxido
no ócio
das ruas presas
ao verniz do vendaval

(07/12/2016)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Velhas árvores

Edvard Munch - Old Trees (1923-25)

As velhas árvores exercem sobre a imaginação um fascínio tão grande como o fogo ou a água. Estes remetem para os elementos primordiais que seriam, juntamente com o ar e a terra, como um dia se supôs, os componentes de que todo o resto se fabricaria. A velha árvore fascina a humanidade, contudo, por outro motivo. Melhor, por vários motivos. Ela, devido à sua dimensão, parece ligar o fundo da terra ao próprio céu. Vemo-las como como um eixo de ligação entre mundos. Mas não é só por isso que elas nos fascinam. A sua idade, muitas vezes incomensurável com a esperança de vida dos homens, e a sua impassibilidade acordam em nós o desejo, nunca satisfeito, de enfrentar o tempo e as suas peripécias. Fascinam-nas porque são mensageiras da eternidade perante olhos demasiado conscientes de que são breves e passageiros.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Meditação breve (13) - Solidão

Carlo Carra - Solitudine (1917)

A solidão abre a porta para o silêncio, mas é preciso que o solitário se cale e deixe o lobo devorador do pensamento apaziguar-se.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Meditação breve (12) - Nostalgias

Umberto Boccioni - Estados del alma I: Los que se quedan (1911)

Pior que a nostalgia dos que partem é a nostalgia dos que ficam. Os primeiros sentem falta do que conheceram. Os segundos sentem apenas uma falta sem conteúdo e que nada pode preencher.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Haikai do Viandante (315)

Antonio Tápies - Pintura gris verdosa (1954)

dias de frio e cinza
nas planícies do inverno
silêncio na tarde

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (610)

Lucio Muñoz - 2-85 (1985)

610. estendo um lençol

estendo um lençol
de azul
no ruído das rochas
e espero
o mar
e as marés de março
para ver o riso
de ouro na artéria
sulfídrica
da sulfurosa tristeza

(07/12/2016)

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Exterior e interior

Alejandro Mesonero - Exterior - Interior

Uma das armadilhas da vida do espírito reside na oposição entre exterior e interior. Uma longa tradição, composta de múltiplos matizes, vê a vida espiritual como pura interioridade, como tendo a sua génese e o seu território na vida subjectiva. O exterior é sentido como uma ameaça a esse paraíso de onde brotaria a criatividade e a espiritualidade humanas. Exterior e interior, contudo, definem-se um pela relação com o outro, o que em vez de os tornar opostos mostra-os como complementares. Não há vida do espírito sem esse imenso território exterior onde o espírito se configura. Não há mundo sem um espírito que lhe dê figura e, pela sua actividade, sentido. O espírito não é outra coisa senão aquilo que supera a diferença entre o exterior e o interior e, estando neles, está aquém e além deles.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Meditação breve (11) - Abismo

Alfons Mucha - El Abismo (1897-99)

Não, abismo não é o que nos espera após uma queda. Abismo é onde nos encontramos sem sabermos como sair.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Haikai Urbano (2)

Francisca Muñoz y Manuel Herrera - Apunte de viaje (1982-1997)

um comboio passa
entre a floresta de gruas
a cidade cresce

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Chegar a casa

Gustave Guillaumet - El Desierto (1867)

Cheguei. Não temo o calor dos dias e o frio das noites? Não. Se procurasse abrigo e o conforto fosse fosse o fim, então ter-me-ia enganado e haveria razões para todos os tipos de temor. Cheguei sem esperar nada, sem pedir nada, sem querer receber coisa alguma. Deixei tudo para trás. Na verdade, não deixei grande coisa. Trouxe-me a mim, pois ainda não sei como me deixar também de lado. Contemplo a vastidão do deserto e sinto-me um grão de areia entre miríades de grãos de areia. Canto sob o sol e espero a noite. Cheguei a casa.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (609)

Eduardo Gruber - ¿Cáctus? (1996)

609. um cacto cresce

um cacto cresce
no furor
do deserto
manso como a cal
e gangrena
glóbulo a glóbulo
grão a grão
na arenosa areia

(07/12/2016)

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Meditação breve - 10. Sono

Lucien Freud - Sleeping nude (1950)

O sono não é apenas uma forma de retemperar forças e de devolver ao corpo o vigor que a vigília lhe roubou. O sono é um protesto. Um profundo protesto contra a realidade e os imperativos, tão sem sentido, que ela traz a cada momento. Contra a usura da realidade, adormecemos.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Meditação breve - 9. Horários

Lothar Schreyer - Horário (1921-22)

Submetemos a vida a horários para que nada de decisivo nos aconteça. Aquilo que importa, o mais decisivo, não tem hora nem dia. Acontece quando acontece. Chega sem se anunciar e parte sem se despedir.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Haikai Urbano (1)

Oscar Dominguez - La Rêve (1946-47)

sonhos geométricos
nascem na luz dos semáforos
um carro parou

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

As escadas

Ramón Pérez Carrió - Tres lecciones de tinieblas (2000)

Nunca ia a casa dela, mas ela visitava-me. Quando partia, um enorme vazio abria-se em mim. Aprendi a esperar e a espera era compensada. Poucos dias depois, ela voltava. Até que deixou de vir. Sem saber o que fazer, fui a sua casa. Ela olhou-me em silêncio. Não havia desaprovação nos olhos, mas abriu uma porta e começou a subir umas escadas. Seguia-a. Não sei quanto tempo subi aqueles degraus. Mais do que seria suportável por um ser humano. Nunca a vi, apenas ouvia, muito acima, os seus passos sobre a madeira. Exausto, sentei-me e adormeci. Quando acordei, estava deitado à sua porta, mas da casa, da sua casa, - disseram-me - não havia memória de que alguma vez fora habitada.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (608)

Jacint Salvadó - Informel (1959)

608. castelos e constelações

castelos e constelações
chuva de orquídeas
no prado estelar
a pedra preta e
fulminante
nascida no casulo
da lira lívida
desta paisagem

(06/12/2016)

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O reconhecimento

Maurice Denis - Os peregrinos de Emaús (1895)

O episódio dos discípulos de Emaús (Lucas 24:13-34) onde se narra a aparição de Cristo ressuscitado a dois discípulos é marcado por dois momentos ligados ao reconhecimento. O primeiro é o da ausência do reconhecimento, a incapacidade demonstrada em atentar na identidade do outro que segue caminho com eles. O segundo momento é o do reconhecimento dessa identidade. Esse reconhecimento, porém, não se dá numa situação trivial, como a conversação doutrinal da viagem, a qual se mostrou incapaz de gerar o reconhecimento, mas no momento em que é mobilizado um símbolo, a fracção e bênção do pão. 

É o símbolo que desencadeia o processo de reconhecimento, o que torna manifesto que todo o reconhecimento do outro, de qualquer outro, implica a suspensão da trivialidade e a mobilização de uma dimensão simbólica onde esse outro ganha sentido e valor. O paradoxal no texto é que o reconhecimento conduziu, de imediato, ao desaparecimento de Cristo. Reconhecer o outro não significa, então, prendê-lo numa esfera significativa, circunscrevê-lo em conceitos. Isso significaria reduzi-lo à trivialidade que se liga à significação usada na vida quotidiana. O outro, seja o Cristo ou o homem comum, pertence a uma dimensão simbólica e só esta permite conjugar o reconhecimento desse outro com o mistério, nunca desvendável, que o constitui.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Meditação breve - 8. Muros

Philip Guston - Ancient Wall (1976)

O corpo e o medo que o habita erguem muros. O espírito, na ânsia de um horizonte cada vez mais amplo, tem por missão destruí-los. Onde se ergue um muro é ainda o animal que que fala.