segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Da ociosidade

Edward Burne-Jones - Pilgrim at the Gate of Idleness (1884)

Para os gregos o ócio era a condição de possibilidade da filosofia. Sem ele não seria possível uma vida espiritual efectiva e fecunda. Há um momento, porém, talvez ainda na Idade Média em que o ócio emerge como um inimigo dessa mesma vida espiritual. A ociosidade é retratada como uma donzela sedutora, tal como, muitos séculos depois, Burne-Jones, inspirado no Romance da Rosa, a retrata.  O peregrino tem de resistir à sedução do ócio para poder continuar a viagem. A acção ganhava assim uma preeminência, na vida espiritual, sobre a contemplação. O mundo moderno estava à porta. Lentamente, mas de forma inexorável, o peregrino tornou-se em turista ou em caixeiro-viajante.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Acções de resgate

Pedro Calapez - Submerso (2001)

As múltiplas e diversificadas formas que toma a vida espiritual, da arte à religião ou à filosofia, têm um aspecto comum. A condição do espírito é de estar submerso, oculto pelas águas. Cada aventura espiritual é um exercício de o trazer à luz e de o resgatar da sua alienação na natureza. Um romance, um quadro, a prática dos místicos ou a especulação dos filósofos são, na verdade, acções de resgate e de libertação.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Da vida dos sonhos

David Lynch - A Bug Dreams of Heaven (1992)

Há a ilusão que o sonho é o veículo de uma comunicação entre o sonhador e uma qualquer realidade de natureza espiritual que reside num além. A ilusão nasce, em primeiro lugar, da cisão que leva a pensar na existência de um aquém e de um além. Em segundo lugar, da ocultação - embora as diversas escolas psicanalíticas tenham chamado a atenção para o equívoco - de que, no sonho, o espírito comunica consigo mesmo. Sendo como o vento, ele sopra onde quer. Fala do passado e fala do futuro, mas fá-lo sempre porque quer falar do presente, desse puro acontecer aqui e agora e no qual se manifesta toda a eternidade. 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (595)

Iago Pericot - 41 inclinacions (1968)

595. o tempo inclina

o tempo inclina
a erva
do espaço
muro em delírio
parede de pálpebras
a sombra
branquinegra
perdida no
oblívio oblíquo
do anoitecer

(04/12/2016)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

A página em branco

Enrique Clement - La máquina de escribir, Blanco y Negro (1930)

Sentava-me e começava a escrever. Os textos cresciam ao ritmo da agilidade dos dedos. Inventava e reinventava histórias, como se a cornucópia da abundância tivesse sido derramada sobre mim. Um dia, porém, as teclas da máquina de escrever pareceram-me ligeiramente presas. Limitei-me a empregar mais de força nos dedos. No dia seguinte, tudo voltou ao normal. Passado semanas, tornou a acontecer. Nesse dia tive uma tontura. Mas, na manhã seguinte, a escrita fluía sem parar. Passados dois dias, os dedos foram impotentes para carregar nas teclas. Sobre mim desceu um grande nevoeiro. Até hoje. Esta é a última página que coloquei na máquina. Em branco.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (308)

Vincent Van Gogh - Estudio con abetos rojos en otoño (1889)

sobre os abetos
desce uma luz vermelha
folhas de outono

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Reabrir a porta

Pierre Bonnard - La Porte Ouverte (1910)

Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus. (João 3:3)

O momento do nascimento é o da primeira abertura da porta. A incomensurabilidade da existência está ali plena e totalmente disponível para o recém-nascido. A partir desse momento, por uma necessidade inelutável de sobrevivência, a educação – seja ela de que tipo for – encarrega-se de fechar a porta. Resta à maioria dos homens espreitar pelo buraco da fechadura. A isso chamam compreender a realidade. Alguns, porém, descobrem que a porta fechada já tinha estado escancarada. Abrir de novo a porta passa a ser então a sua missão. A isto chamou João, o Evangelista, nascer de novo.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (594)

Wassily Kandinsky - Composition VI (1913)

594. o ondulado da harmonia

o ondulado da harmonia
arde em silêncio
no lume brando
do caos
no fogo
de um odor azul
em êxtase
na louca loucura
dos vermelhos
tintos de luz e mágoa

(08/11/2016)

domingo, 4 de dezembro de 2016

Partir pedra

George Seurat - The Stone Breaker (1882)

Ao domingo, descansava. Nos outros dias da semana, porém, trabalhava o dia inteiro. Partia pedras e acumulava-as em grandes montes. Infatigavelmente. Por vezes, repousava e bebia água ou comia alguma coisa. Logo voltava à tarefa, sem desfalecimento. Não, nunca vi sair dali qualquer pedra ou tirar proveito do terreno livre das pedras. Estas eram partidas e amontoadas. Não tinha com ele qualquer proximidade, mas um dia perguntei-lhe a razão do seu trabalho. Olhou-me estupefacto. Havia nos seus olhos uma ironia matizada pelo cansaço. Respondeu-me: e para que serve o seu? E continuou.

sábado, 3 de dezembro de 2016

O espírito e a obra de arte

Joerg Immendorff - Anbetung des Inhalts (1985)

Existem obras de arte - pinturas, poemas, romances, peças musicais, etc. - cujo conteúdo provoca uma verdadeira adoração, permitindo que entre elas e o público se estabeleça uma relação religiosa, no sentido em que o vocábulo religião é derivado de re-ligação. O que acontece é que o espírito e a obra se reconhecem um ao outro como partes de um mesmo todo. Ao reconhecerem-se formam uma totalidade que está para além das visões parcelares com que os homens interpretam os acontecimentos do mundo. Esse encontro entre o espírito e a obra eleva o homem para um além que não apenas é incomensurável com aquilo a que chamamos realidade como lhe permite, apesar dessa incomensurabilidade, compreendê-la de forma mais ampla e profunda.