terça-feira, 4 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (299)

Nicanor Piñole - El Cielo

brancos sobre azuis
espelham o mar nos céus
ondas e silêncio

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Do avanço

André Louis Derain - The Turning Road (1906)

Em qualquer área da vida do espírito - e qualquer actividade humana, por física que seja, é sempre uma actividade espiritual - o caminho está longe de ter a configuração de uma recta, uma espécie de estrada que se abre, sem qualquer curva, à frente dos homens e que não teria fim. O caminho é infinito, certamente, mas obriga a voltar atrás uma e outra vez, numa aparente circularidade que, vista de fora, se percebe como uma espiral, onde o viandante vai avançando, mesmo quando é obrigado a retroceder. Por vezes, é no próprio retrocesso que se encontra o efectivo avanço.

domingo, 2 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (578)

Jacinta Gil Roncalés - Búsqueda del infinito (1991)

578. procuro o infinito

procuro o infinito
no mistério
das cores
no tumulto
do azul
aberto ao ardor
de uma nuvem
de branco
tinta
de sangue e
um rasto rosamarelo

(16/08/2016)

sábado, 1 de outubro de 2016

Do crescimento


A vida espiritual tem por finalidade tirar os seres humanos da sua menoridade, do fascínio que sobre eles exercem os objectos do mundo e, assim, os prendem às aparências. Por isso é frequenta a analogia com a vida dos cereais. Também os seres humanos são sementes deitadas à terra. Grãos que germinam e têm a possibilidade de crescer, de se tornarem naquilo que potencialmente são. O culto romano da deusa Ceres não deve ser apenas lido como o sintoma de uma dependência dos homens dos cereais. Ceres provém da raiz indo-europeia "Ker", que significa crescer. O crescer dos cereais, protegido pela deusa, era um modelo que orientava a própria vida do espírito. O trabalho agrícola mais que um labor físico era uma actividade espiritual.

Pintura de Oscar Dominguez - Ceres (1952). Guache sobre papel. Dimensões: 207 x 295,5 cm.

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O anjo negro


Por que razão o corvo, apesar de livre e selvagem, está tão ligado a mim? Na verdade, não sei. Um dia, estava muito cansada e desiludida com a vida, aproximei-me da beira de um penhasco. Tinha tomado uma decisão e cumpri-a. Mal sinto os pé no ar, oiço, como se fosse um trovão, o crocitar de um corvo. Um instante depois, senti-me puxada para cima e depositada na beira do precipício. Pode não acreditar, mas um corvo gigantesco estava ali. Aos meus olhos, começou a diminuir até ao tamanho que um corvo deve ter. Na minha consciência ouvi uma ordem: vai para casa! Obedeci. Não há dia que ele não me visite.

* Desenho de Caspar David Friedrich - The Woman with the Raven at the Abyss (1801).

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Convite à sabedoria

Charles Lapicque - L’invitation à la sagesse (1961)

Ao vir ao mundo, os homens, todos os homens, são convidados à sabedoria. O convite - um estranho convite, diga-se - não parte de um mestre particular ou de qualquer instituição. Tudo o que acontece aos homens é esse convite. Por vezes, ele surge como delicada solicitação; outras, como violenta intimação. Na verdade, é sempre e só o mesmo convite.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (577)

Pier Luigi Lavagnino - Alberi (1969

577. árvores arvoradas

árvores arvoradas
no silêncio
dos campos
as raízes rasgam
a terra
e os ramos
tocados de verde
sopram ao vento
a soledade
sombria do céu

(16/08/2016)

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Para quê?

Gwen John - A Corner of the Artist’s Room in Paris (1907-9)

Um dia sentar-me-ei naquela cadeira e olharei a manhã. Para quê?, pergunta-me, inquieta, a manhã. Deixo correr os olhos pelo muro da frente, pelo azul do céu, pela macieira desgrenhada que ainda não vejo. Fico em silêncio, e a manhã, entrando pela janela, abana-me e insiste: Para quê? Não sei o que dizer, pois tudo o que sei é pintar, distribuir as cores pela tela, fazer nascer a luz e a sombra. Sento-me, então, ao cavalete e pinto, pinto a cadeira onde me hei-de sentar, a janela por onde veja o mundo, o livro sobre a mesa e a manhã que me olha atónita e não cessa de perguntar: para quê?

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Da profundeza

Georges Rouault - De profundis (1917-27)

O ser humano é um habitante do mundo do meio. Não pertence nem ao território rarefeito do alto, nem às terras inóspitas das profundezas. Essa vida no mundo mediano, porém, limita-lhe o olhar e o desejo. Acontece, muitas vezes, que, arrastado para essas profundezas, fazendo a experiência da queda e do adverso dos baixios, ele ergue os olhos para cima e o seu desejo leva-o para além daquilo que cabe ao homem.

domingo, 25 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (298)

Paul Cézanne - As margens do Marne (1888)

das margens do rio
avistam-se sombras na água
flutuam e passam