sexta-feira, 30 de setembro de 2016

O anjo negro


Por que razão o corvo, apesar de livre e selvagem, está tão ligado a mim? Na verdade, não sei. Um dia, estava muito cansada e desiludida com a vida, aproximei-me da beira de um penhasco. Tinha tomado uma decisão e cumpri-a. Mal sinto os pé no ar, oiço, como se fosse um trovão, o crocitar de um corvo. Um instante depois, senti-me puxada para cima e depositada na beira do precipício. Pode não acreditar, mas um corvo gigantesco estava ali. Aos meus olhos, começou a diminuir até ao tamanho que um corvo deve ter. Na minha consciência ouvi uma ordem: vai para casa! Obedeci. Não há dia que ele não me visite.

* Desenho de Caspar David Friedrich - The Woman with the Raven at the Abyss (1801).

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Convite à sabedoria

Charles Lapicque - L’invitation à la sagesse (1961)

Ao vir ao mundo, os homens, todos os homens, são convidados à sabedoria. O convite - um estranho convite, diga-se - não parte de um mestre particular ou de qualquer instituição. Tudo o que acontece aos homens é esse convite. Por vezes, ele surge como delicada solicitação; outras, como violenta intimação. Na verdade, é sempre e só o mesmo convite.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (577)

Pier Luigi Lavagnino - Alberi (1969

577. árvores arvoradas

árvores arvoradas
no silêncio
dos campos
as raízes rasgam
a terra
e os ramos
tocados de verde
sopram ao vento
a soledade
sombria do céu

(16/08/2016)

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Para quê?

Gwen John - A Corner of the Artist’s Room in Paris (1907-9)

Um dia sentar-me-ei naquela cadeira e olharei a manhã. Para quê?, pergunta-me, inquieta, a manhã. Deixo correr os olhos pelo muro da frente, pelo azul do céu, pela macieira desgrenhada que ainda não vejo. Fico em silêncio, e a manhã, entrando pela janela, abana-me e insiste: Para quê? Não sei o que dizer, pois tudo o que sei é pintar, distribuir as cores pela tela, fazer nascer a luz e a sombra. Sento-me, então, ao cavalete e pinto, pinto a cadeira onde me hei-de sentar, a janela por onde veja o mundo, o livro sobre a mesa e a manhã que me olha atónita e não cessa de perguntar: para quê?

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Da profundeza

Georges Rouault - De profundis (1917-27)

O ser humano é um habitante do mundo do meio. Não pertence nem ao território rarefeito do alto, nem às terras inóspitas das profundezas. Essa vida no mundo mediano, porém, limita-lhe o olhar e o desejo. Acontece, muitas vezes, que, arrastado para essas profundezas, fazendo a experiência da queda e do adverso dos baixios, ele ergue os olhos para cima e o seu desejo leva-o para além daquilo que cabe ao homem.

domingo, 25 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (298)

Paul Cézanne - As margens do Marne (1888)

das margens do rio
avistam-se sombras na água
flutuam e passam

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (576)

Jacqueline Lamba - Ciel Noir (1986)

576. um céu de seda

um céu de seda
negra
desce na rua
coberta de neve
e a noite
cai
na neve negra
de uma seda
celestial

(10/08/2016)

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

O primeiro passo

Frantisek Kupka - O primeiro passo (1909)

A glória do primeiro passo, na opinião comum, resulta da combinação do início de um caminho com a definição de uma direcção. Não se pensa, porém, no negativo desta glória. Todo o primeiro passo é já afastamento, abandono, o começo de um esquecimento. Toda a glória funda-se assim na dor, numa experiência traumática, naquilo que as tradições monoteístas chamam queda.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Na casa de Misia

Pierre Bonnard - A casa de Misia (1906)

Foi na casa de Misia que a conheci. Quando chegava, ela já estava. Sentada, na varanda, lia em silêncio. Era frugal nas palavras. Se os encontros da tarde se prolongavam pela noite, ela excluía-se de qualquer animação. Olhava para todos nós, os seus olhos eram um incêndio contido. Com o tempo compreendi que ninguém lhe dirigia a palavra, mas não havia qualquer hostilidade. Apaixonei-me, confesso. Uma tarde, já ao crepúsculo, não me contive. Dirige-me a ela e perguntei-lhe o nome. De imediato, se desvaneceu. Senti uma mão no ombro. Era a dona da casa. Sorriu e disse-me: está na hora, Orfeu, de nos constares uma história.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

A janela fechada

Pablo Picasso - La ventana cerrada (1899)

Talvez seja por medo do exterior que o homem se fecha em si mesmo. A janela fechada simboliza essa oclusão. O fechamento da janela não resulta, contudo, de uma decisão. Ele é, mais que tudo, o resultado de um processo que começa talvez antes do nascimento. Toda a educação visa solidificar o fechamento de si e reforçar as portadas da janela. Por vezes, alguém, sem saber claramente a razão, arromba a janela e sai de si. É aí que começa a arte, a filosofia ou a experiência mística. Todas elas são o fruto de um acto de violência, de uma insubordinação contra a ordem que encerra o homem na clausura de si mesmo.