quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Do caminho

Max Klinger - O caminho

Toma-se com frequência o caminho como metáfora indicativa de um percurso de vida, de uma aventura espiritual, de uma demanda da verdade. No entanto, dever-se-ia ser mais sensível à ideia heideggeriana de caminhos que levam a lado nenhum. Esse é o verdadeiro caminho. Não há lado algum aonde ir, nem lado algum de onde sair, pois o lugar de partida e o sítio de chegada são um e o mesmo. 

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

A escolha

Hermen Anglada-Camarasa - As opalas (1904)

Não sei se as sonhei. Há muito que não distingo sonho e realidade. Não é esta o fruto do nosso desejo ou do nosso temor? Sentava-me na varanda e olhava a floresta. Apaziguava-me. Uma noite distingui algumas configurações luminosas, uma luz leitosa com reflexos irisados. O fenómeno repetia-se em noites de lua-nova. Inquieto, decidi ver o que era. Quando me aproximei, descobri seis estátuas femininas. Não soube identificar o material. O coração tremeu ao não perceber de onde vinha a luz que as iluminava. Quando toquei na primeira, ela disse: os teus olhos iluminaram-nos, agora os teus dedos dão-me vida. Escolheste-me.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

A metáfora da criação

Frantisek Kupka - Criação (1911-20)

Normalmente, vê-se a criação do mundo por Deus, narrada no Génesis bíblico, ou como um facto histórico (o fundamentalismo cristão ou outro), ou como uma alegoria onde se transmite, por imagens, o trabalho de Deus na criação do mundo (o cristianismo aberto à modernidade), ou como uma mera ilusão proveniente da superstição (o ateísmo). A criação pode ser vista, porém, como uma metáfora, uma metáfora utilizada para designar algo que não tem nome. 

E o que não tem nome, neste caso, é o mistério da emergência do mundo. A metáfora não diz nada acerca do conteúdo desse mistério. No entanto, ela dá-nos uma indicação. Indica-nos que esse mistério dá que pensar ao homem. Ela não nos diz nada do que se passou, mas diz-nos que isso nos interessa radicalmente. A criação, enquanto metáfora, aponta menos para uma hipotética actividade de Deus no passado e mais para uma preocupação humana sempre aberta ao futuro. A meditação dessa metáfora não é apenas estética. É também existencial. Compromete aquele que medita nela não com uma fé mas com a própria existência. Daí a sua força.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (572)

Franz Marc - Animal in Landscape (Painting with Bulls II) (1914)

572. touros terríveis

touros terríveis
touros
pintam a paisagem
de sangue
e ocre
e no ócio
do seu furor
desenham
um vitral de vidro
uma salina de sal

(09/08/2016)

domingo, 4 de setembro de 2016

Do obstáculo

Béla Uitz - Luta (1922)

Na vida material dos homens, a ideia de luta tem um lugar central. Está associada ao esforço com que alguém pretende realizar um projecto, à sua capacidade de ultrapassar obstáculos e de imprimir, no mundo, a sua impressão. A capacidade para lutar é vista como virtuosa. Na vida espiritual, porém, a necessidade de lutar é ainda o sintoma de um excesso de materialidade e de uma visão de si oposto ao outro e ao mundo. Não se trata de vencer obstáculos, mas de compreender que não existe nem aquele que quer ultrapassar o obstáculo nem o obstáculo a ser ultrapassado. Essa cisão é ainda uma ilusão da vida material. Obstáculo e obstaculizado são uma e a mesma coisa. Não há impressão alguma a imprimir no mundo.

sábado, 3 de setembro de 2016

O regresso

Giorgio de Chirico - O enigma da chegada da tarde (1912)

Sentia-se um velho Orfeu. Não, não era o luto pela morte de qualquer Eurídice. Nem sequer a consciência da sua fraqueza ao não ser capaz de suster a tentação do olhar. Quando a tarde caía, era impelido, como Orfeu o fora para a lira, a sentar-se ao piano. Deixava as mãos perderem-se nas teclas. Improvisava. Na música, doía-lhe o enigma do entardecer. Os sons tornavam-se água, um oceano sem fim. Então, ele entrava no grande navio. Fugia. Fugia do mistério do poente, do enigma do entardecer. O outro lado do mar esperava-o. Chegada a noite, exultava, o exílio terminara. Era a sua pátria.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (295)

Piet Mondrian - Sheepfold in the Evening (1906)

no campo anoitece
as ovelhas no redil
sombra sobre sombra

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (571)

Jackson Pollock - Convergence (1952)

571. moléculas movem-se

moléculas convergem
num oceano
de mágoa
giram e rodam
rodopiam
traçam
um lago
de sombra
no
                silêncio
e na
                solidão

(05/08/2016)

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Inquietações e incertezas

Luis Prades - Ángeles inquietantes (1964)

A inquietação não é apenas um mero estado psicológico. Ela é também uma experiência existencial. A inquietação traduz uma crença profunda alicerçada na certeza de que o mundo é tal como estamos habituados. Quando a realidade se torna incerta, a incerteza traduz-se na inquietação. Deparam-se então dois caminhos ao viandante. O primeiro liga-se à tentativa de recuperar o mundo da certeza, para que a crença não se desfaça e a inquietação desapareça. Este é um caminho reactivo. O segundo caminho funda-se na aceitação da incerteza, no fazer dela a estrada por onde se vai, e aceita que a nossa crença na estabilidade do mundo é uma projecção da nossa necessidade de segurança e nada tem a ver com a realidade. Este é o caminho do espírito, que aprende que o vento soprar onde quer.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Eclipses e conversões

José María Yturralde - Eclipse (1996)

E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1:5)

O acto da conversão está longe de pertencer apenas ao domínio da religião. Ele é inerente a toda a vida espiritual do homem. Thomas S. Kuhn vê a transição, na ciência, de uma matriz disciplinar a outra como uma conversão, pela qual o cientista passa a olhar a realidade e a ciência de uma outra perspectiva. Encontramos isso também na arte e até em fenómenos mais prosaicos como a política. A conversão é sempre a adopção de um outro ponto de vista. Ela não é, contudo, apenas isso. É também o desfazer de um eclipse, a remoção de um objecto opaco que oculta a fonte luminosa. Não se trata apenas de olhar de outra maneira. A própria luz também é outra. Toda a vida espiritual do homem começa - e continua - com o enfrentar de um eclipse, um eclipse onde um ego obscurece a luz que vem do ipse, de si mesmo.