terça-feira, 26 de julho de 2016

Poemas do Viandante (562)

Franz Marc - Cavalo a sonhar

562. o cavalo sonha-se

o cavalo sonha-se
pesado no
pesadelo da noite
e vê-se vergado
ao peso do sono
ao temor da terra
pisada pelos
cascos fogosos
que acendem o
ardente ardor
da cavalgada

Dançar numa casa de loucos

George Wesley Bellows - Dance in a Madhouse (1917)

Dançar numa casa de loucos poderia ser uma metáfora sobre os transtornos - e eles são sem fim - da vida no mundo. No verdade, porém, a metáfora ilumina a vida espiritual. Num mundo caótico e irrazoável, a vida do espírito é como uma dança, na qual os que dançam se entregam, sem premeditação ou projecto, ao ritmo da música num espaço tornado caótico pela presença de todos os que dançam.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Haikai do Viandante (290)

Claude Monet - Summer, Field of Poppies (1875)

campos de papoilas
o sol bravio do verão
uma sombra cai

domingo, 24 de julho de 2016

No mundo dos híbridos

Max Ernst - La bicicleta gramínea (1920-21)

A aventura espiritual da arte moderna, tantas vezes mal entendida, tem a sua raiz na liberdade do espírito. É esta liberdade, servida pela faculdade da imaginação produtora, que permite um exercício de hibridação como aquele que o quadro de Max Ernst mostra: hibridar o reino dos artefactos mecânicos com o reino vegetal. Esta produção híbridos têm uma longa tradição que remonta às antigas mitologias. Ela revela-nos que, para além da estrita necessidade - que na arte tomou a forma da imitação, uma servidão ao dado -, existe um reino que, não sendo do domínio do caos nem da arbitrariedade, revela uma ordem mais livre e mais inesperada. Uma ordem onde o espírito, como o vento, sopra onde e como quer.

sábado, 23 de julho de 2016

Poemas do Viandante (561)

Winifred Nicholson - Abstracct sequence (Variation on Cyclamen and Primula) (1935-36)

561. frias florescem

frias florescem
as flores sibilantes
na sílaba
deste sábado
e na cintilação
do cíclame
reflecte-se
a prímula
da primavera

sexta-feira, 22 de julho de 2016

A flor cortada

Giuseppe Pelizza Da Volpedo - Flor cortada (1896-1902)

Sonhei-as. Durante meses, tive o mesmo sonho. Um bosque ameno e um cortejo matinal de raparigas vestidas de branco. À entrada dispunham-se em procissão e caminhavam. Iam em silêncio. Quando chegavam ao centro do bosque, eu acordava e nunca descobria aonde iam. Uma noite, decidi não me deitar e, pela aurora, entrei no bosque. No centro, havia uma clareira. Escondi-me. Acabaram por chegar. A luz sombreada iluminava-as. Eram belas como no sonho. A que vinha na frente cortou uma flor e, para meu espanto e terror, saiu da clareira. Caminhou para mim e estendeu-me a mão. Esperávamos por ti, disse. Olhei. Era o meu rosto que eu via na flor cortada.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

O canto do cisne

Ignacio Díaz Olano - Cisnes (1927)

Sabe-se há muito que a lenda do canto do cisne (estes seria mudos, mas antes de morrer entoariam o mais belo dos cantos) não corresponde a qualquer realidade. Esta não verdade empírica não deixa, porém, de conter a sua verdade. Um dado mundo espiritual, ao entregar-se na noite da história, entoa a sua mais bela canção. Mais do que anunciar as trevas que se aproximam, o canto do cisne sublinha a esperança do dia que, terminada a noite, triunfará no esplendor da aurora. O canto do cisne não é uma canção de morte mas de esperança.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

A casa do Homem

Felix Vallotton - In the Shadow (1916)

Pensamos, em primeiro lugar, a sombra como o lugar do mal. Este não suportaria a sua exposição à luz, que o denunciaria, e recolhe-se na sombra para exercer o seu império. Num segundo momento, constatamos que a pura luz seria insuportável mesmo para o bem. A intensidade da luz tornar-nos-ia cegos. Por fim, percebemos que a sombra é o lugar do homem, tanto para o mal como para o bem. Nem as trevas absolutas nem a pura a luz, mas a sombra. É neste registo sombrio que uns caminham de claridade em claridade, mas sempre sob a protecção da sombra, e outros vão de escuridão em escuridão, mas ainda e sempre na forma de sombra, cada vez mais densa. A sombra é a casa do homem sobre a Terra.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Poemas do Viandante (560)

Kazimir Malevich - Círculo Negro (1923-29)

560. o círculo negro

o círculo negro
de malevich
é lua nova
aluada e perdida
no fundo frio
e esconso
de um universo
sem sóis que
no desvão do dia
de luz o iluminem

(19/07/2016)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Sem bandeiras

Lorenzo Viani - All'ombra della bandiera

O espírito não tem bandeiras nem causas. Manifesta-se de diversos modos - na arte, na religião, na filosofia - e estes modos de manifestação são as únicas limitações que admite. Erguer uma bandeira ou arvorar uma causa - mesmo que artística, ou religiosa ou filosófica - é limitar-se a um ponto de vista particular de tal modo que deixa de ser vida espiritual. Causas e bandeiras sombreiam um solo juncados de morte. A pátria do espírito é a vida infinita.