segunda-feira, 20 de junho de 2016

Relógios e rios

André Louis Derain - Big Ben (1906)

Não percebe por que falo da sensatez dos londrinos? Não sei onde li, se é que alguma vez a li, a ideia de que todos os relógios trazem consigo um princípio de irrealidade. Não está a compreender? A questão é simples. Os relógios obedecem a uma lógica cíclica. Os ponteiros retornam, no tempo aprazado, ao mesmo lugar, como se fossem uma promessa do eterno retorno do mesmo. Veja, porém, como o Big Ben se combina com o fluir do rio. Para que não nos deixemos embalar pela doce ilusão da eternidade, o fluxo das águas, com a palavra de Heraclito ao longe, lembra-nos, sensatamente, minha amiga, que não mais viveremos este momento.

domingo, 19 de junho de 2016

Poemas do Viandante (553)

Manuel Quejido - 24 Levitaciones (1972-73)

553. leves levitam

leves levitam
os levitadores
e o tempo
breve
em que puros
se erguem
aos céus
pára imponderável
na mão
que lavra na terra
a queda
dos graves

sábado, 18 de junho de 2016

Ser ninguém

Frantisek Kupka - Elogio (1912, 1919-23)

Não sei o que lhe diga. Acha, então, injusto a ausência de um elogio. Dar-lhe-ia ânimo e, diz-me, precisa de ânimo. Compreendo a sua necessidade de reconhecimento, mas não partilho a carência. Não pense que sobre mim caem elogios. Não caem, pode crer. Aliás, faço tudo para que não cheguem. Se alguém me faz um elogio, eu agradeço. Prefiro, porém, que o evitem. Não quero ser reconhecido? Um dia aspirei a isso, mas o tempo ensinou-me outra coisa. Mais importante do que o reconhecimento é ser desconhecido, é ser ninguém. Quando você, um dia, for ninguém, talvez mereça um elogio. Talvez.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Haikai do Viandante (286)

Charles Bentey - A Squall Approaching the Northern French Coast

cai a tempestade
sobre a costa fria e pálida
aves à deriva

quinta-feira, 16 de junho de 2016

O anjo músico

Raúl Soldi - Ángel músico I (1960)

Também eu duvidava da história. Ouvi-a, tal como o meu amigo, por acaso. Aos domingos, antes de almoço, ia ao café. Numa dessas idas, sentei-me na mesa habitual. Ao lado, alguém contava o episódio. O homem fremia de excitação e falava, como acontece nessas ocasiões, alto. Desisti de ler o jornal e sorri da fábula do anjo. Quando cheguei a casa, naquele tempo vivia sozinho, ouvi uma estranha música. Estremeci, o som chegava do meu quarto. Ao abrir a porta, deparo-me com um anjo a tocar violoncelo. Sentada na borda da cama, uma mulher. Nunca a vira. Sobre o anjo músico não tenho provas. Quanto à invasora desconhecida, acabei por casar com ela.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Poemas do Viandante (552)

Georgia O'keeffe - The dark iris nº II (1926)

552. um frio quase

um frio quase
frívolo
desce em mim
trazido no vento
do verão
no sopro
resplandecente
dos lírios irisados
de luz e maio

terça-feira, 14 de junho de 2016

Composição cósmica

Oscar Dominguez - Composição cósmica (1938)

Olhamos o mundo e tomamos aquilo que apreendemos como sendo a realidade objectiva. Não vemos que grande parte do que chamamos real é trabalho do nosso próprio espírito. O mundo para nós não passa de um grande trabalho de tecelagem, a realização das nossa faculdades sob o efeito dos estímulos externos, um exercício espiritual, aparentemente, espontâneo, um trabalho de composição cósmica.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

A grande batalha

Yves Klein - La Grande Bataille

Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz. Não vo-la dou como o mundo a dá. (João 14:27)

A vida é entendida, muitas vezes, através da metáfora da guerra. É compreendida como uma sucessão de batalhas. Por maiores que sejam os conflitos que um ser humano atravessa na existência, está ainda perante pequenas batalhas. A grande batalha é a da paz que foi doada aos homens, lhes foi deixada em herança. Grandes são os perigos que ela traz consigo, pois o maior dos perigos está ligado ao que é misterioso, e nada é mais misterioso do que essa paz que o homem herdou e que o mundo não compreende.

domingo, 12 de junho de 2016

A dinâmica das formas

Gino Severini - Dinamismo de formas

A arte capta muitas vezes aquilo que é o núcleo essencial da vida do espírito. A dinâmica das formas é o sinal de que a vida espiritual não encontra repousa em qualquer forma em que se manifeste. O espírito instaura uma forma e logo encontra nela um limite que anseia ultrapassar. Incansável, deixa-se guiar, na vida formal que é sempre a sua, pelo desejo daquilo que não tem forma e, dessa a-formalidade, chama por ele.

sábado, 11 de junho de 2016

Poemas do Viandante (551)

Friedl Dicker - Forme négative et forme positive dans un champ de force (1941)

551. sou um sim

sou um sim
ao dizer não
e tudo o que digo
se o digo
se o calo
se o trago em mim
ainda é
um não
que me diz
sou assim