terça-feira, 31 de maio de 2016

Portas e metáforas

Pierre Bonnard - La Porte Ouverte (1910)

A porta aberta funciona muitas vezes, fundamentalmente, na linguagem corrente, como uma metáfora. Esta contaminação pela linguagem quotidiana roubou-lhe o brilho metafórico. No entanto, a expressão continua a ser essencial para compreender a própria metáfora. Esta é interpretada, por norma, na base da analogia. Se dissermos, porém, que a metáfora é uma porta aberta, talvez estejamos mais perto de perceber o que nela se joga. Semeadas no texto, as metáforas são portas por onde entramos num outro mundo, num mundo que a literalidade esconde ao espírito mas que este, através, dos ardis da imaginação abre, para que neles possamos encontrar o nosso lugar.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Poemas do Viandante (548)

Mark Tobey – À Cheval la Nuit (1958)

548. um cavalo cavalga

um cavalo cavalga
a noite
relincha na sombra
escura e estreita
ergue o
peito ao voo
da águia alada
e galopa
com asas de névoa
as
noites de novembro

domingo, 29 de maio de 2016

O jogo do afastamento e do retorno

Giorgio de Chirico - Ritorno del fliglio prodigo (1965)

O jogo do afastamento e do retorno ocupa um lugar central na vida dos homens. O afastamento significa a ruptura com a inocência originária, uma inocência feita de inconsciência, de não conhecimento, de ignorância. A ruptura abre o homem para a experiência e para os limites que esta lhe mostra. Tendo experimentado os limites, o homem retorna a si, à sua inocência. Agora, porém, a uma inocência que conhece a culpa e que se torna continuamente inocente. Uma inocência que sabe o que são as mãos sujas. Uma inocência que, conhecendo a culpa trazida pela experiência, sabe que a bela alma da inocência originária é uma ilusão. A parábola do filho pródigo não trata de outra coisa.

sábado, 28 de maio de 2016

Da animação

Francis Picabia - Animação (1914)

O uso corrente do termo animação liga-o à ideia de alegria e de entusiasmo. Animação, porém, remete para a essência da vida espiritual. Toda esta é um contínuo dar alma e, ao dar alma, dá-se vida. Animação é o acto pelo qual a vida se extrai da não-vida. A alegria e o entusiasmo não são a efectiva animação, mas uma sua consequência, o resultado de uma operação criadora.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Esquecer o nome

Lagoa Henriques - Sem título (1974)

Cheguei aqui, a este lugar vazio, a esta terra de fumo e cinza. Sou um espectro abandonado na margem do rio, na floresta ardida pelos incêndios, os grandes incêndios de Verão. Era um corpo, a gravidade agia sobre mim e a terrível necessidade prendia-me à terra. Agora estou livre, mas já não sei o meu nome. Ao esquecer-me do nome, perdi o corpo. Não o sabia, mas o corpo é uma emanação, uma sólida emanação, do nome. Quem ama o corpo, deve cuidar do nome, pronunciá-lo a cada instante, para não o esquecer. Talvez não amasse o corpo e, por isso, deixei de recitar o nome. Agora estou aqui, leve e livre, na margem do rio, e, calem-se, não, não quero saber como me chamava.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Poemas do Viandante (547)

Paul Klee - Before the Snow (1929)

547. um floco de neve

       um floco de neve
     flutua
na sombra
divina do dia
             sweet snow
           sweet snow
e desce e desce
     no sweet sono
   no sweet sonho
a neve fria

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Haikai do Viandante (284)

Claude Gellée - Seaport at Sunset (1639)

o dia morre lento
e amarelo sobre o mar
noite no horizonte

terça-feira, 24 de maio de 2016

Da leitura

Fernand Léger - A leitura (1924)

O ensino da leitura, por necessidade de eficiência, acaba por matar aquilo que é essencial no acto de ler. Ler é, antes de mais, um acto de decifração, a revelação do que está escrito. A eficiência adquirida no acto de ler naturaliza a leitura (a partir de certo grau performativo, ler parece uma coisa natural) e rouba-lha o sentido de penetração num mistério cifrado. Este não é o único problema. Decorrente dele, está a oclusão da leitura em si mesma, como se ela apenas servisse para a transmissão de uma mensagem ou a fruição de um prazer estético, na leitura literária. A leitura como decifração deve ser, contudo, um modelo ou arquétipo que se deve transferir para toda a realidade, a exterior e a interior. Tomar tudo como signo e cifra implica então que sejamos, de forma consciente, leitores contínuos do mistério do mundo e do enigma que cada um é para si mesmo.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Da simbolização da experiência

Maurice Denis - Le Calvaire (La montée au Calvaire) (1889 )

Em sociedades secularizadas como as nossas tende-se a perder de vista como a simbólica veiculada pelas religiões, metamorfoseada pela arte, fornece modelos fundamentais para compreender a vida e enquadrar a experiência existencial dos homens. Atente-se no quadro reproduzido de Maurice Denis. Na ideia de calvário pensamos o sofrimento e a morte. Tendemos, porém, a esquecer que ele representa uma ascensão. Se dermos atenção a essa ideia de subida, compreendemos então que todo o ultrapassar-se, todo o ascender a uma condição não humana, se faz sob o signo do sofrimento e da morte. O sofrimento de se abandonar o que se conhece e a morte daquilo que, por hábito e convenção social, se julga ser. 

domingo, 22 de maio de 2016

Poemas do Viandante (546)

Franz Ehrlich - Azul e amarelo com um extremo branco (1930)

546. ouve-se o azul cantar

ouve-se o azul cantar
na luz
amargamarela
tão pura
do velho violino
que vibra
no triângulo triste
de um perfume
quasianil quasiazul