quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Pontos de contacto

Frantisek Kupka - Pontos de contacto (1934)

A expressão ponto de contacto traz nela uma carga semântica que se presta a uma simbolização da experiência, a qual transcende, pela sua própria natureza, a fisicalidade do tacto e do contacto. Contactar, literalmente, é uma dupla experiência. Passiva, pois recebe-se algo de um corpo exterior, e activa, já que tem uma dimensão exploratória de outros corpos. A vida espiritual é, ela própria, marcada por pontos de contacto, onde o viandante recebe algo que vem gratuitamente a ele, mas onde também é activo na abertura para aquilo que pode descer sobre ele. A viagem não é outra coisa senão um percurso que liga os múltiplos pontos de contacto.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Haikai do Viandante (242)

Prince Eugéne de Suéde - A Summer Night (1895)

noite de verão
frio crepúsculo da terra
sombra e solidão

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Um café

Edward Hopper - Autómata (1927)

Uma bebida naquele sítio estranho, numa terra que vira pela primeira vez. Ao entrar, pensou: está tudo acabado. Um café, pediu, numa voz mecânica, quase sem olhar para a rapariga que a escutava. Um café, e deixou o pensamento vaguear pelo passado, pelos cafés onde entrara nessa vida que acabara. Sentiu a chávena na mão, o calor que lhe subia pelo braço, o cheiro que se desprendia e parecia querer penetrá-la, tomar conta dos seus sentidos. Bebeu o café, lentamente, muito lentamente. A princípio, fê-lo num gesto automático, mas alguma coisa acordou nela. Aquele sabor espesso parecia novo, como fosse a primeira vez que o saboreava. Deixou-se invadir pela novidade, que logo se apossou do seu peito. Ao acabar o café, soube que estava equivocada. Tudo começava agora e o mundo abria-se com uma outra cor, a sua cor.

domingo, 2 de agosto de 2015

Condenados à errância

Ferdinand Hodler - Ahasver, el judío errante (1910)

A história, que se começou a espalhar, ainda na Idade Média, de Ahasver, o judeu errante, é sintomática da vida espiritual e diz respeito a todos homens e não apenas aos que têm a particularidade de serem judeus. Faz parte de um repositório de experiências universais. A narrativa, em resumo, conta que Ahasver ridicularizou Cristo quando este fazia o caminho que o conduziria à crucificação. Recebeu, em troca, a maldição de errar mundo fora até à parusia do Cristo, isto é, até à segunda vinda, em glória, do Messias.

Que sentido podemos encontrar nesta narrativa? Se abstrairmos de uma interpretação histórico-racionalista, encontramos um caminho hermenêutico possível. Ahasver ri-se do seu desejo de vida espiritual (sendo esta figurada na ascese que conduz Cristo à morte na cruz). É este desprezo que o perde e o leva a errar até que se encontre a si mesmo, encontre a sua verdadeira natureza (a qual é configurada, na narrativa, na parusia de Cristo). A história de Ahasver não fala de um judeu particular que cometeu uma certa acção num dado momento histórico. Fala de todos e de cada um de nós que, ao desprezarmos a vida do espírito, nos condenamos à errância.

sábado, 1 de agosto de 2015

Quarta-feira de cinzas

Henri Rousseau - Carnival Evening (1886)

Tomaram o caminho da floresta. Ao chegar a uma clareira, o luar indicou-lhes que era ali o seu lugar. O vento desaparecera e as nuvens ficaram imóveis, para que a lua, a velha companheira do desejo e do mistério, não deixasse de os iluminar. Tudo era silêncio à sua volta. Olharam-se então pela primeira vez. Os olhos levaram tempo a habituarem-se à sombria luz que os envolvia. Quanto mais se olhavam maior era noite que crescia dentro deles. Sem se desfitarem, tiraram a máscara. Depois despiram-se. Estavam nus, um perante o outro, olhos nos olhos, a lua sobre os corpos e a noite, a noite de carnaval, apoderou-se de cada um. Na aurora de quarta-feira, os primeiros lenhadores, ao entrarem na clareira, viram, sob o silêncio do dia que nasce, um monte de cinzas. Ao lado, duas máscaras de carnaval.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Brisa e vendaval

Angel Planells - Acordeonista (1971)

Onde fala o espírito? Sabemos que ele é como o vento, sopra onde quer. Mas entre todas as artes que o homem inventou para que o espírito nelas falasse, é na música onde ele sopra mais tempestuosamente. Na música - mesmo na mais simples - o espírito tanto pode ser brisa suave como vendaval, que desfigura o mundo dos homens, para que seja de novo configurado.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Poemas do Viandante (516)

Thomas Cole - Expulsión. Luna y luz de fuego (1828)

516. pobre cantores do estio

pobres cantores do estio
do ardor e do fogo

que sabeis vós de incêndios
na fímbria do mar

que sabeis vós do silêncio
que crepita pálido

na terra presa na neve
no frio de dezembro

quarta-feira, 29 de julho de 2015

A dialéctica do arrependimento

Ignacio Díaz Olano - Arrependida (1895-96)

A religião, a justiça, a própria vida comum têm um dos seus alicerces na prática do arrependimento. Contritos, os que se arrependem de alguma coisa, ostentam um firme propósito de não mais tornar a fazê-la. Em tudo isto, porém, há uma perversidade que está longe de ser percebida. Ao arrependimento está subjacente a crença de que se é melhor, uma revolta contra a sua própria condição, uma recusa de aceitação de si, uma afirmação de um poder do eu, poder esse que está na base, e foi a mola propulsora, do próprio acto que conduz ao arrependimento e à contrição.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Metamorfose e metanoia

Jackson Pollock - Alchemy (1947)

A viagem do espírito - quero dizer: a vida que somos solicitados a viver - é, na verdade, um processo alquímico, para usar uma metáfora ao gosto revivalista desta época, um processo de transformação do que é vulgar e vil no ser humano em algo que seja nobre e elevado. É uma metamorfose do espírito servil num espírito livre. A questão, porém, é que este caminho só começa se houver uma metanoia, uma conversão. Isto significa que se adopte um outro ponto de vista sobre a vida. A natureza dá-nos um programa em que ela se reproduz e persiste. Conversão significa, porém, que o homem descobre para além da natureza dada, marcada pela estrita necessidade, uma outra natureza, aquela que o solicita a ser mais do que mera necessidade, que lhe dá o imperativo de ser livre.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Fechar e abrir

Alfonso Bonifacio - A traves de la ventana (1995)

Quando pensamos em janelas somos levados por considerações acerca da sua utilidade ou do seu valor estético no enquadramento do edifício que as alberga. Não pensamos - ou pelo menos não pensamos de imediato - que elas resultam de uma espécie de contrato entre entre o espaço privado e o espaço público, entre a intimidade e a publicidade. Esse contrato, de tão difícil negociação, responde, na verdade, a uma necessidade do espírito humano, a um ritmo da vida espiritual. A vida deve ser um balanceamento entre o dentro e o fora, entre o íntimo e o público, entre a reclusão meditativa, secreta e íntima, e o mergulhar activo no mundo que está para além reclusão doméstica. A janela é, deste modo, um símbolo da nossa condição, ao ter o poder paradoxal - paradoxo presente em todos os símbolos - de nos fechar e de nos abrir ao mundo.