quarta-feira, 6 de maio de 2015

Colher o que semeou

Kazimir Malevich - In the field (1911-12)

Também o viandante é um lavrador. A viagem é a sua forma de trabalhar a terra, de a semear e de cuidar das plantas. Tudo é feito em conformidade com as estações e os rigores do tempo. Nos dias de intempérie recolhe-se em casa e medita, para, logo que o tempo amaine, se fazer à estrada e colher aquilo que semeou.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Permanecer no Absoluto

Jiri Georg Dokoupil - Cristo (1986)

Se alguém permanece em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto, porque sem Mim nada podeis fazer. (João 15:5)

O enigma da vida espiritual reside todo ele na afirmação paradoxal de uma impotência. O homem, desligado do Absoluto, nada pode. O paradoxo é que o homem, na sua relatividade e na sua hostilidade ao absoluto, pode e com esse poder rasga o mundo. Ora o poder que João refere não é esse que nasce da iniciativa humana é um outro poder. Dele sabemos apenas que resulta da ligação ao Absoluto e que é frutuoso. O resto é enigmático. Este enigma não é resolúvel pela razão mas pela acção, a qual está consignada no verbo permanecer. Como pode o relativo permanecer no Absoluto?

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Casas de adobe

Edward Hopper - Adobe Houses (1925)

Casas de adobe. Os homens sonham com palácios e julgam que neles se funda o mundo. Não sabem, porém, que mesmo uma casa de adobe pode ser já um excesso. O viandante deve, se vive num palácio, aprender a viver aí como se vivesse numa casa de adobe. E se vive numa casa de adobe deve aprender a viver como se fosse um sem abrigo, pois na viagem que lhe cabe nada o pode abrigar das intempéries que sobre ele desabam.

domingo, 3 de maio de 2015

O anseio pelo invisível

Wassily Kandinsky - Amarelo - Vermelho - Azul (1935)

Aristóteles, logo no início da Metafísica, sublinhava a preferência dos homens pela visão, não apenas para efeitos práticos mas também porque ela permite-nos conhecer mais objectos e revela-nos mais diferenças que outros órgãos dos sentidos. O fascínio da visão, porém, pode ocultar ao homem os objectos e as diferenças que a visão não capta. Uma parte da pintura da contemporânea pode ser explicada como uma luta paradoxal contra o visível para tornar visível o que o não o é. Este anseio pelo invisível é a essência da viagem espiritual.

sábado, 2 de maio de 2015

Poemas do Viandante (506)

Emil Hansen - Light Sea-Mood (1901)

506. um poema de água e luz

um poema de água e luz
aberto no mar

desenha ligeiras ondas
na paz destes dias

onde palavras cifradas
trazem o silêncio

com que escondes o teu corpo
do vento e do frio

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Aprender a anoitecer

Max Klinger - Noite

A noite carrega consigo múltiplas e antagónicas simbolizações. É inútil esboçá-las sequer. Inerente, porém, ao fascínio da noite é também a expectativa da vinda do dia e da luz. João da Cruz tematiza a noite escura como esse sentimento de abandono que o crente sente na viagem espiritual. Mas como pode o homem perdido no mundo, guiado pela luz natural dos sentidos e da razão, entrar sequer nessa escura noite de que fala o místico castelhano? Talvez a resposta esteja ainda na noite. Terá de aprender a anoitecer, aprender a ver a luz dos sentidos e a da razão como pura obscuridade e obstáculo no caminho.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Sem porta nem janelas

Juan Rulfo - Barda tirada en un campo verde

Muros, linhas divisórias, estremas, fronteiras, um exercício continuado de territorialidade, um jogo de exclusão e inclusão, uma campanha sem fim contra o medo. Mas não é na máxima segurança que está a autêntica insegurança? Não é ali, onde tudo está fechado, que o vento não corre? Enquanto o espírito viver murado e preso a fronteiras não escutará a voz que por ele chama. Surdo e errante julgará que a vida só será possível na oclusão e no fechamento de si.  Pobre mónade, sem porta nem janelas.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

A condição humana

Susan Rothenberg - Beggar (1982)

Os homens, no jogo de comparações e invejas que entre si tecem, estão convencidos de que a riqueza, esse excesso de possibilidade de consumir, é o que há de mais desejável na existência. Vivem atormentados pelo espectro da indigência, de se tornarem, literalmente, mendigos. O que eles desconhecem é que a mendicância é a sua verdadeira e única condição. Não porque lhes faltem bens materiais, mas porque a carência é constitutiva do seu ser. A única condição verdadeiramente humana é a de ser mendigo. Uns iludem-se enchendo-se de bens, outros assumem a sua condição e aprendem a rogar o que lhes falta.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Os dias frios

Lucien Lévy-Dhurmer - Bruxelas, sob o efeito da neve (1900)

São os dias frios os mais propícios para o espírito se recolher dentro de si. A exuberância do calor é substituída pela austeridade que o frio traz e nos leva a centrar no mundo interior. Libertos da distracções que o tempo quente sempre exige, entregamo-nos à mais pura das asceses, aquela que nos leva ao silêncio e deixa falar em nós a voz que nos chama.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Haikai do Viandante (230)

Francis Picabia - Amanecer en la bruma, Montiguy (1905)

árvores azuis
esperam entre as brumas
o sol dos pauis

domingo, 26 de abril de 2015

Do servo e do amigo

Egon Schiele - The Friends (Round Table), Small (1918)

Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai. (João 15:15)

Educados por uma cultura assente há muito na dialéctica do senhor e do escravo proveniente da lição de Hegel, tornámo-nos incapazes de perceber uma outra forma de dissolução dessa relação. No versículo de João tanto a relação entre senhor e servo como a relação que transforma os homens em amigos está mediada pelo conhecimento, mas um conhecimento dado pela revelação. O servo é servo porque não sabe o que faz o seu senhor. A lei - neste caso a lei mosaica - é uma lei que, pela sua exterioridade e imposição pelo Senhor, faz dos homens servos. Mas a revelação que Cristo traz consigo faz daqueles que a ouviram amigos e não servos. E como já sabia Aristóteles só é possível amizade entre aqueles que são iguais.

sábado, 25 de abril de 2015

Inscrito no olhar

Georges Braque - O porto de Le Havre (1903)

O velho enigma de um barco a chegar ao porto. Sentado, o viandante vê-o chegar e sente nele o mundo que deixou para trás e que, ao ser abandonado, escondeu-se nos olhos da tripulação e, secreto e sonâmbulo, prepara-se para aportar numa nova pátria. É assim que o viandante, ao cruzar-se com outros viandantes, vê o mundo de onde vêm. Está-lhes inscrito no olhar, nesse olhar que é abismo e fundo do infinito do ser.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Estátua de sal

Raoul Dufy - Paisagem  de Munique (1909)

E a mulher de Lot olhou para trás e ficou convertida numa estátua de sal. (Génesis 19:26)

O passado tem um terrível poder de sedução. Quadros ou fotografias de um tempo que passou, com o mistério que todo o passado contém pelo simples facto de ter passado, retêm o espírito e dão-lhe a ilusão que a verdade que busca ou a casa que procura residem nesse tempo inacessível e belo na sua inacessibilidade. Esta nostalgia do passado não é, para a vida do espírito apenas uma ilusão. É um perigo. Como a mulher de Lot, também o espírito que olha para trás corre o risco de se solidificar e converter numa inútil estátua de sal.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Poemas do Viandante (505)

Francis Bacon - Man Turning on the Light (1973-74)

505. este vazio que se abre

este vazio que se abre
no centro do mundo

a luz que se desvanece
nas margens da terra

escondem o mar inóspito
onde me afundo

a amarga e sombria mão
que ali me encerra

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Levado pelo vento

Darío de Regoyos y Valdés - Una calle de Córdoba

Uma rua que de súbito se fecha e se torna em mistério. São assim os caminhos do viandante, ir por ruas que se fecham num enigma. Penetrar no mistério que se abre como uma avenida. Assim caminha, de mistério em mistério, de rua em rua, levado pelo vento que sopra onde quer.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Da viagem e da errância

Ferdinand Hodler - Ahasver, el judío errante (1910)

Distinguimos claramente viagem e errância. Na viagem, o viandante desloca-se de um lugar para outro, o ponto de partida e o ponto de chegada estão claramente definidos.Na errância, o vagabundo não tem destino, erra por aqui e por ali ao acaso. A clareza desta distinção, porém, é o sintoma da sua fragilidade. A errância é parte integrante da viagem. Quantas vezes aquele que julga saber de onde vem e para onde vai é um verdadeiro vagabundo? Quantas vezes o vagabundo descobre que partiu de um lugar e que um outro o espera? A isto poderíamos chamar uma meditação sobre o pecado.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Mapas e territórios

Frantisek Kupka - Arquitectura filosófica (1913-1923)

Quando ouvimos falar de arquitectura filosófica pensamos de imediato numa densa rede de conceitos organizada e sistemática. Como é que o viandante lida com tal dispositivo intelectual? Ficará seduzido e pensará que a sua viagem é produzir ideias? Esse é um perigo. Contudo não se devem rejeitar essas redes de conceitos. São mapas para a viagem. Indicam o caminho do espírito mas não são a própria vida do espírito. Quem, na plena posse da sua razão, confundirá mapas com o territórios?

domingo, 19 de abril de 2015

A janela aberta

Pierre Bonnard - La fenêtre ouverte (1921)

Tudo na vida dos homens tem o poder de se tornar símbolo de alguma coisa que o ultrapassa. Uma janela aberta não é apenas uma janela aberta mas o símbolo metafísico de uma abertura para a transcendência. A janela é a abertura simbólica que permite ao viandante transitar da imanência à transcendência, aventurando-se no além com todos os perigos e todas as promessas  que esse além contém.

sábado, 18 de abril de 2015

Um jubiloso amanhecer

Albert Dubois-Pillet - The Marne River at Dawn (1888)

Quando a luz rompe as trevas - nessa hora jubilosa do amanhecer - tudo parece ainda possível. O corpo e o espírito sentem-se tocados por uma promessa e a alma regurgita de energia. Mas tudo começa logo a decair, como se a promessa fosse esquecida e o ânimo se dispersasse nas horas que passam. Chega então o tempo em que o viandante se deve superar e esperar a graça que o fará continuar na viagem, como se cada hora fosse ainda e sempre um jubiloso amanhecer.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

O homem livre

Felix Vallotton - The Wind (1910)

O vento sopra onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito.  (João 3:8)

Nunca deixa de me espantar a visão da liberdade trazida por João. A liberdade do espírito é analogada ao vento e este é visto como possuindo uma vontade que determina onde soprar. O homem perfeitamente livre - aquele que nasceu do espírito - não apenas possui uma vontade livre, mas move-se numa outra dimensão que não a da necessidade, a dimensão que cabe aos homens que apenas nasceram da carne. Move-se de e para onde toda a necessidade cessou. 

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Haikai do Viandante (229)

Meyer Schapiro - Abstraction (1963)

mundos de carvão
abrem-se na primavera
luz que te espera

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Do bárbaro e do civilizado

Alejandro Xul Solar - Bárbaros (1926)

Habituámo-nos, devido a uma longa tradição, a pensar o bárbaro por oposição ao civilizado. E o civilizado é aquele que possui a virtude da racionalidade cívica. Se olharmos, porém, com atenção para essa racionalidade cívica em acção descobrimos de imediato quanto ela é bárbara, destituída de espírito, fundada na alienação de si mesmo ou na redução à máscara com que escondemos a nossa impotência para responder à voz que nos chama.

terça-feira, 14 de abril de 2015

Paisagens desconhecidas

Jean Metzinger - Landscape (1904)

O estranho silêncio das paisagens desconhecidas abre-se perante o espanto do viandante. E ele não sabe o que mais admirar, se a novidade com que os seus olhos se deparam ou se o silêncio com que é recebido. E assim penetra no desconhecido à espera de um sinal que lhe indique o caminho ou de uma voz que o chame.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Do abandono de si

Roberto Matta - Uma situação grave (1946)

Nas mais graves situações o nosso impulso é agarrarmo-nos a nós mesmos e mobilizar, no sentido militar do termo, todas as nossas forças para enfrentarmos o inimigo que nos assedia. Mas haverá um outro caminho, aquele em nos soltamos e abandonamos completamente e nos entregamos à Vontade que nos ultrapassa e que, perante o abandono da nossa, quererá em nós.

domingo, 12 de abril de 2015

Poemas do Viandante (504)

Edward Hopper - Morning Sun (1952)

504. no trânsito destes dias

no trânsito destes dias
cresce uma sombra

traz nela uma promessa
de frutos ao vento

traz nela uma melodia
feita de luz e rosas

no trânsito destes dias
sol e esquecimento 

sábado, 11 de abril de 2015

Ofícios e profissões

Joaquín Mir - Carpinteiro

O que distingue um antigo ofício de um profissão moderna? Esta ou é meramente rotineira ou exige conhecimento técnico; por vezes, ambas as coisas. Nela, porém, tudo se reduz à eficácia, nada mais possibilitando ao homem do que um contacto superficial e, muitas vezes, patológico com o mundo material. Os antigos ofícios continham neles uma possibilidade que se nos tornou estranha. Pelo afeiçoamento da matéria, pela excelência e virtuosismo dos actos, o artesão tinha a possibilidade de encontrar no seu quotidiano o caminho onde poderia realizar a viagem espiritual. Um ofício era um caminho possível para o espírito, uma profissão é uma corrida sem destino nem proveito para a alma.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Esquecer a sua natureza

Juán José Vera - Ansiedad (1951)

A ansiedade é compreendida, geralmente, como uma perturbação provocada pela eminência de um perigo ou de alguma coisa desagradável ao indivíduo. Se nos adentrarmos na arqueologia do termo encontramos a disposição para a inquietação. Ora esta disposição para estar inquieto tem o seu centro não no que está fora do indivíduo mas naquilo que ele traz em si e ocultou de si mesmo. O perigo de se alienar da sua verdadeira natureza, o perigo de se esquecer de si. 

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Filhos pródigos

Aristide Maillol - L'enfant prodigue (1889)

Por vezes surge a pergunta: quem é o viandante? A resposta é muito simples. O viandante é o filho pródigo que procura a casa onde nasceu, que busca acolher-se ao lar e à pátria onde pertence. Na verdade, cada um de nós é um filho pródigo e, por isso, está a caminho de casa. Cada um de nós é um viandante.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Os quatro elementos

Ivonne Sánchez Barea - Aire I (1997)

A velha doutrina dos quatro elementos - terra, água, ar e fogo - tinha, na sua ingenuidade e inocência míticas, um potencial de descrição da realidade mais elevado do que aquilo que se pensa hoje em dia. Certamente, esse potencial não estava ligado a uma descrição física do universo, mas a uma descrição do homem, dos seus estados múltiplos possíveis. Não se pode dizer que esses elementos caracterizassem diversas formas de espírito humano, mas antes que seriam metáforas que designavam formas de ser que continham tanto o corpo como o espírito. Fundamentalmente, são metáforas das possíveis metamorfoses psicossomáticas, no sentido grego dos termos presentes nesta palavra, pelas quais pode o ser humano passar,

terça-feira, 7 de abril de 2015

Designações vazias

Agnes Martin - A rosa (1964)

A pintura contemporânea tende a estabelecer uma relação arbitrária entre o quadro e a designação que lhe é atribuída. Esta arbitrariedade deriva do choque entre o que é visível e a palavra. Talvez a finalidade desta estratégia seja a de marcar a diferença abissal entre o pictórico e a sua interpretação, já que toda a denominação pode ser pensada como interpretação. O espectador, desconcertado, tem de encontrar um caminho para a experiência estética e esquecer a palavra. Isto, contudo, é apenas um dos lados do problema. O outro é a revelação do carácter vazio - um vazio de grande plasticidade - da própria linguagem, onde as palavras estão disponíveis para acolher aquilo que se possa colocar dentro delas. O que é válido para a arte é válido para qualquer forma da vida do espírito, nomeadamente para a experiência religiosa. Entre as palavras e a experiência há um abismo, o qual é ocultado por uma crença mágica nas palavras. Elas, porém, são apenas designações vazias a que cabe dar, pela experiência efectiva, conteúdo e verdade.