sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Um caminho de vida

Salvador Dali - Cavaleiros do Apocalipse (1970)

Há múltiplas formas de pensar a simbologia dos quatro cavaleiros e respectivos cavalos que surgem no Apocalipse de João. Os símbolos são verdadeiros depósitos de sentido, permitindo encontrar neles significações contraditórias. A lógica que os rege, se de lógica podemos falar, não se coaduna com a interdição da contradição e com o terceiro excluído. No símbolo, identidade e contradição coabitam e o terceiro está incluído. Podemos ver nesses símbolos do texto de João a profecia de terríveis desgraças, mas não será desapropriado de compreender neles uma indicação do caminho espiritual, marcos na viagem do viandante que procura aquilo que por ele chama, aquilo que, numa outra linguagem, se poderá dizer o caminho da vida feliz. 

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Poemas do Viandante (489)

Adolphe-William Bouguereau - Evening mood (1882)

489. canto a distância de onde

canto a distância de onde
te vejo

deixo-a crescer no fundo
de mim

para que de ti se me acorde
o desejo

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Tarefas ociosas

Filippo de Pisis - O arqueólogo (1928)

Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus mortos (Mateus 8:22)

A viagem não é um assunto de arqueólogos, esse entretenimento do mundo moderno onde os mortos se entregam à tarefa de desenterrar os mortos. Se já era vã e ociosa a tarefa dos mortos a sepultar os seus mortos, o que se poderá dizer desta inclinação mórbida pelo que está morto? Seguir o caminho do espírito é procurar o que está vivo, é seguir a via que conduz à verdade e à vida.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

O caminho principal

Paul Klee - Caminhos principais e caminhos laterais (1929)

Só a ilusão pode levar o viandante a distinguir entre caminhos principais e caminhos laterais. Seduzidos pelas aparências, os homens traçam estranhos mapas e entregam-se a taxionomias insensatas. Quando a aparência mais densa começa a dissolver-se, o viandante descobre que todos os caminhos são o caminho principal, desde que ele, naquela hora, o esteja a percorrer.

domingo, 14 de dezembro de 2014

O caminho da restauração

JCM - Mitologias (Restauração) (2007)

A cultura ocidental assenta toda ela num estranho pressuposto, o da vida como um projecto de restauração. Herdada da cultura judaico-cristã, a narrativa vetero-testamentária da queda encontra nos textos neo-testamentários o seu complemento na ideia de restauração, em Cristo, do estado adâmico prévio à queda na condição humana. Num tempo em que as percepções de fim do mundo assediam a cultura ocidental, o retorno aos textos fundadores poderá abrir um outro caminho de meditação. A queda e a restauração são os constituintes de uma vida que ganha o seu sentido na tensão entre estes dois pólos. Se a queda parece não ter fim, então é preciso recordar a promessa da restauração.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Poemas do Viandante (488)

Ferdinand Hodler - O dia (uma figura) (1896)

488. toda a inocência que espera

toda a inocência que espera
o anoitecer

toda a ânsia que se exalta
na fria noite

toda a beleza que para ti
me fez nascer

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A abertura infinita

JCM - Mitologias (ó mar salgado...) (2008)

O fascínio que o mar exerce sobre a alma tem a sua raiz na conexão que o espírito faz entre a vastidão das águas e duas ideias que parecem ser parte integrante dessa alma, a abertura e o infinito. Sento-me nas areias e olho a água e, na rebentação reiterada das ondas, oiço o infinito a abrir-se diante de mim, como se chamasse pelo meu nome, aquele nome que só ele sabe.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Rasgar a penumbra

Lyonel Feininger - Calle en penumbras

Rasgar a penumbra para que a luz venha, não de súbito, mas lentamente, à medida que se avança no caminho e que os olhos vão suportando novas e mais intensas claridades.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Estrela polar

Salvador Dali - Visiones de la Eternidad (1936-7)

Ver tudo "sub species aeternitas", mas a vida exige inscrever cada acção no tempo. A viagem é sempre a tensão entre a visão do eterno e a contaminação da temporalidade. O essencial é saber o que faz de estrela polar, se o eterno se o temporal.

domingo, 7 de dezembro de 2014

A relação com a paisagem

Meyer Schapiro - Abstract Landscape (1971)

Há sempre, na viagem existencial, uma dupla relação do viandante com a paisagem, relação marcada pelo afastamento e pela proximidade. Ao longe, a paisagem surge depurada, quase uma ideia, uma linha abstracta no horizonte. Ao tornar-se próxima, a paisagem vai perdendo a sua natureza ideal e ganha a pulsação daquilo que está vivo e se abre para acolher quem assim se aproxima.