segunda-feira, 31 de março de 2014

Poemas do Viandante (453)

Nicolás Lekuona - La calle de nadie, 1932

453. Uma sombra pela rua

Uma sombra pela rua
desce sem destino.

Leva o peso do passado
e a luz do presente.

Leva o prazer e a mágoa 
a elegia e o hino.

Leva o coração cansado
e o amor ausente.

domingo, 30 de março de 2014

O reino das sombras

Istvan Hanga - Ombre et appareil (ca. 1933)

Uma das ilusões dos amantes da técnica - e quem não o é, nos dias de hoje? - está na crença de que ela poderá ajudar o homem a sair da caverna platónica, onde apenas vê a sombra da realidade. Um telescópio, um microscópio, uma câmara de filmar ou de fotografar, enfim qualquer um dos mil dispositivos que são inventados para intensificar o poder dos nossos sentidos... Mas por mais intensos que estes se tornem graças ao poder da técnica, o que lhes é dado são sempre sombras. Gigantescas ou microscópicas, mas ainda e sempre sombras. Não suportariam a realidade.

sábado, 29 de março de 2014

Haikai do Viandante (181)


a sombra anuncia
na lonjura da floresta
o raiar do dia

sexta-feira, 28 de março de 2014

Da vida frutuosa

Edward Weston - Meraux Plantation House, Louisiana (1941)

Há certamente qualquer coisa errada numa vida que deixa como herança a ruína. Quando os homens centram a sua existência na materialidade do mundo, não demorará muito que essa materialidade seja reduzida a destroços e que tudo não seja mais que pó. O problema, porém, não está na materialidade. Quantas obras do espírito, obras que um dia foram aclamadas como intemporais, se viram vergadas pelo peso do tempo e se transformaram em poeira, um traço da vaidade humana inscrito na parede do mundo? Como pode uma vida frutificar e deixar uma herança? Talvez aquela que comece por abandonar qualquer pretensão à grandeza e à construção de qualquer herança.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Fugir ao mistério

Paul Wolf - Frankfurt (1929)

Haverá coisa mais temível do que a uniformidade da multidão? Não é apenas o espírito crítico que desaparece quando o homem mergulha no rebanho. O pior é o fechamento que o estar-em-multidão representa. Fechamento a quê? Ao mistério. A multidão exige espectáculo. Só a sábia solidão permite ao homem confrontar-se com o mistério de tudo o que existe. Mas não será para fugir a esse mistério que o homem anseia pela uniformidade da multidão?

quarta-feira, 26 de março de 2014

Perder as escamas

Esteban Vicente - Descubrimiento (1922)

São múltiplos os caminhos que, na viagem que cabe a cada um, se podem tomar. Não é certo que esses caminhos, ao bifurcar-se, não acabem por levar ao mesmo lugar. Um desses caminhos pode ser denominado o caminho da verdade. Não devemos, todavia, tomar a verdade como o acordo entre o nosso discurso - ou as nossas representações - com a realidade. Devemos tomá-lo no sentido grego de ἀλήθεια (alétheia), de desvelamento. A viagem é um desvelamento, o tirar o véu que nos impede de ver, a contínua revelação. Estar comprometido com a viagem no caminho da verdade não é uma questão cognitiva ou discursiva, mas existencial. Viajar significa que o viandante se dispõe a perder as escamas que, cobrindo-lhe os olhos, o impedem de ver.

terça-feira, 25 de março de 2014

Num campo de refugiados

Henri Cartier-Bresson - INDIA. Punjab. Kurukshetra. A refugee camp for 300.000 people. Refugees exercising in the camp to drive away lethargy and despair. Autumn 1947

Na tradição católica, a terra é vista, muitas vezes, como um vale de lágrimas, um lugar de exílio para uma alma criada para uma outra pátria que não a terrestre. Se esquecermos o vale de lágrimas e nos ficarmos pela ideia de exílio, perdemos o que é essencial nessa ideia, o facto de os homens, na terra, estarem, todos eles, num campo de refugiados, onde precisam de afastar a letargia e o desespero.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Sombra da morte

Roger Fenton - Valley of the Shadow of Death (1855)

A sombra da morte não acompanha o viandante apenas em alguns trechos da viagem, lugares mais sombrios ou com história lúgubre. Ela é a companheira inseparável daquele que se faz ao caminho. Por vezes, conselheira previdente; outras, o inimigo a derrotar. Retorna sempre, certa da vitória, mas no coração do viandante brilha, uma e outra vez, a esperança de que a vida acabará por triunfar.

domingo, 23 de março de 2014

O maior dos perigos

Robert Capa - BARCELONA, Spain. Running for shelter during an air raid alarm, January 1939.

A vida dos homens, por um hábito ancestral ancorado na tradição, é constituída em torno do abrigo. A eminência do perigo inscreveu-se nos genes e nos hábitos e, mal se suspeita uma ameaça, logo começa a corrida para o lugar de protecção. Esquece o homem, porém, que o abrigo não é outra coisa senão a caverna platónica. Esta pode-nos abrigar dos perigos, mas também nos abriga do choque com a realidade e com aquilo que, efectivamente, nos desafia. Quantas vezes o abrigo é, pela sua excessiva protecção, o lugar do maior dos perigos, o da negação da realidade.

sábado, 22 de março de 2014

Solidão e fragilidade

STEFANO RELLANDINI - REUTERS - Veneza, capital da região do Veneto

Retomemos a solidão, agora para a compreender a partir da fragilidade do homem. A solidão, a solidão essencial, não pode ser compreendida nem como a prova da força e de afirmação orgulhosa do homem, nem como o sintoma de uma fraqueza tal que o torna inapto para a vida com os outros. A fragilidade que está sob a solidão pode ser compreendida a partir do equilíbrio do barqueiro sobre as águas. A solidão, a solidão essencial, é sempre o difícil equilíbrio de alguém sobre as águas da sua própria fragilidade. A solidão manifesta-se, deste modo, como um bem precioso que, pela sua fragilidade e a fragilidade onde assenta, se pode perder e tornar irrecuperável.