sexta-feira, 20 de setembro de 2013

O eco do Espírito

Hans Baldung Grien - Adão e Eva (1511)

Há muito que a Igreja Católica viva obcecada com o sexo. Ao longo dos tempos, a paranóia com o comportamento sexual das pessoas adultas substituiu o papel de acolhimento e, acima de tudo, de criação de espaços para uma experiência espiritual profunda. Pela primeira vez, na minha vida, vejo um Papa a dizer estas evidências. Estas posições de Francisco, embora não de forma explícita, sublinham duas coisas essenciais nos tempos de hoje. Em primeiro lugar, o respeito pela autonomia das pessoas e pelas suas decisões privadas. Em segundo lugar, a necessidade de colocar a Igreja não no lugar do professor de moral, mas no de peregrino que acolhe outros peregrinos, aqueles que se perderam na errância, os viandantes transviados, os filhos pródigos. Em suma, todos nós. Não para lhes dar lições de moral, mas para os ajudar na viagem. Nas palavras de Francisco ouve-se o eco do Espírito.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Dança báquica

André Louis Derain - Bacchic Dance (1906)

A terra dança. O espírito da terra ergue-se, ganha figura, multiplica-se em corpos, e os corpos dançam e dançam, como se aspirassem a não ser corpos, mas apenas a terra pura que, inebriada e sem destino, espera que o céu desça sobre ela e a tome para sempre nos seus braços.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Haikai do Viandante (158)

John Ruskin - A River in the Highlands (1847)

Um sulco na terra.
Das montanhas desce a água
e a vida que encerra.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Da imobilidade na natureza

Karl Schmidt-Rottluff - Natureza-morta no espaço (1950)

A representação imóvel de frutas, flores, utensílios quotidianos, etc. tomou, na História da Pintura, a designação de natureza-morta. O que encontramos, porém, nas representações pictóricas de naturezas-mortas é a suspensão do movimento, a imobilidade, o repouso. O que pode ser inquietante para o espírito é, porém, a suspeita de que esta imobilidade não seja a da morte mas a expressão máxima da vida. Na suspensão do movimento, na mais pura quietude, as coisas dão-se no seu ser. São como os corpos de dois amantes. A verdade do seu amor não reside na dinâmica do jogo sexual mas na imobilidade que os convoca a tal dinâmica, no repouso em que se fundem e se subtraem ao movimento e ao tempo. Na imobilidade das coisas e dos seres encontramos um reflexo da eternidade.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Da experiência pura

Georgia O'keeffe - Abstracción, rosa blanca n. 2 (1927)

Vê-se muitas vezes a experiência como um princípio de contaminação daquilo que é puro, como fonte de mácula que lança uma sombra sobre a brancura da inocência primordial. Será, no entanto, esta inocência tão pura e imaculada? Será a abstinência daquilo que a vida nos propõe o sinal de uma perfeição? Não será antes a forma como agimos e como nos entregamos às diversas experiências existenciais que decidem da pureza e inocência destas? Não é a abstinência que nos torna puros, mas nós que tornamos, ou não, puras e inocentes as experiências a que nos entregamos.

domingo, 15 de setembro de 2013

O cavaleiro místico

Odilon Redon - Le Chevalier Mystique (c. 1892)

Toda a viagem é um desejo de participação no mistério. Não no mistério entendido como problema. Esse, a ciência coloca-o e, com a ajuda da razão e da experiência, resolve-o. Nenhum problema científico é um verdadeiro mistério, pois não passa de uma construção da razão, a que a razão, tarde ou cedo, responderá. O verdadeiro mistério afronta a razão, impõe-se-lhe, arrasta-a para uma negra noite. O viandante que sente o apelo do mistério não espera resolvê-lo, nem encontrar-lhe uma solução, o esboço de uma resposta. Cavalga na vida seguindo o eco misterioso. Não espera o triunfo da luz sobre as trevas. Não espera. segue apenas o seu destino. É o cavaleiro místico.

sábado, 14 de setembro de 2013

Responsabilidade infinita

Miquel Rivera Bagur - Assossec (1989)

Quantas vezes nos interrogamos sobre o que, na via que toda a vida é, está em aberto, disponível para a nossa livre iniciativa, e o que está pré-determinado. Esquecemos que essa interrogação é humana, demasiado humana, e como tal está sujeita às limitações da nossa razão. E se a liberdade e a determinação coincidissem, se aquilo que eu faço dependesse da minha liberdade, mas ao mesmo tempo estivesse já determinado? A nossa razão escandaliza-se com tal possibilidade, mas o fundamental do caminho de qualquer viandante não será escandaloso? O caminho que cada um traça na amplitude do território é obra da sua livre iniciativa, mas teria ele possibilidade de traçar outro? Não será a liberdade essa responsabilidade infinita de descobrirmos o que nos convoca e determina?

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Poemas do Viandante (433)

Pablo Picasso - Dos desnudos y un gato (1902-3)

433. Um rasto de água ardia sobre o corpo

Um rasto de água arde sobre o corpo,
cresce mansamente dentro dos olhos,
salta-me húmido pelos lábios.
Pequeno fruto trazido pela aurora,
um jogo de volúpias azuis ao anoitecer.

Enlouqueço nas trevas, ébrio do teu cheiro,
quando a ausência se desenha
e sinto o estrangulado desejo da rosa,
a fria e frágil flor em que te desfolhas.
Luz, labareda, sangue e fogo.

Um sismo desliza-te pelo ondular do ventre,
se eu chego na lonjura do tempo,
se te cavalgo no cerrado campo do corpo.
Uma silhueta vem na sombra do silêncio:
toca-te os olhos, desce sobre o mar.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Abrir o espaço

Lajos Kassák - Composição dinâmica (1918)

Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam. (Lucas 6:27)

Podemos perceber a vida - e o que é a via de qualquer viandante senão a vida? - como uma composição dinâmica de forças. O ódio que responde ao ódio traça uma dada composição, na qual o espaço  e os caminhos desaparecem pelo choque dos corpos. Amar os inimigos e fazer bem aos que nos odeiam são formas de abrir o espaço e produzir uma nova composição dinâmica de forças. Não de forças que se anulam na morte que toda a violência representa, mas de forças que se adicionam e criam caminhos que nos levam onde temos de ir, onde somos esperados.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

As imagens do espírito

Giorgio Morandi - Paisagem (1913)

Acreditamos facilmente que, ao vermos uma certa paisagem, a imagem que construímos é uma projecção do mundo no nosso espírito, de um mundo que entra em nós pelos olhos. Esta crença kantiana na passividade dos sentidos impede-nos de perceber que a visão é um portal de duplo sentido, que também o conteúdo do espírito se projecta no mundo, através do olhar, fabricando paisagens que esse mesmo olhar traz depois para dentro de si. Não são inócuas para a sanidade do mundo as imagens que o espírito fabrica. Não são indiferentes para a viagem que espera o Viandante, pois são elas que podem tornar o caminho mais ou menos transitável.