terça-feira, 10 de setembro de 2013

Haikai do Viandante (157)

Benvenuto Benvenuti - Aurora no paul (1926)

Vai-se a noite fria
e no segredo da aurora
chega a luz do dia.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A casa do desespero

Brull Carreras - Desierto de Atacama

O deserto é a casa do desespero. E o desespero, hoje em dia, está por todo o lado. Não vamos pensar, contudo, que a nossa solidão interior consiste na aceitação da derrota. Não podemos escapar de seja do que for por consentir tacitamente em sermos derrotados. O desespero é um abismo sem fundo. (Thomas Merton, Thoughts in Solitude)

Devemos pensar que a relação do homem com o deserto, com o vazio, pode ter uma dupla natureza. O vazio pode ser sentido como a casa do desespero, de um desespero que nasce da multiplicidade dos desejos frustrados, das ilusões desfeitas, da errância onde nos perdemos. Mas o vazio interior - a pobreza de espírito - pode ser o lugar da esperança. Esperança que nasce ao libertarmo-nos de tudo o que é ilusório, irreal e, na verdade, irrelevante. Este vazio é aquele que tem o poder de transformar em lugar de esperança aquilo que a vida contemporânea tem o condão de tornar em casa de desespero.

domingo, 8 de setembro de 2013

Tornar-se vazio

Guillermo Pérez Villalta - O reino do vazio (1993-94)

Assim, qualquer de vós, que não renunciar a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo. (Lucas, 14:33)

Alguém, mais informado sobre a História do Ocidente, poderá perguntar como se pôde edificar uma civilização estruturada na propriedade a partir de uma religião que prega a mais radical das renúncias. Esta perplexidade, porém, não é a essencial. O mais importante é compreender o desafio tão inumano que é lançado ao homem. Renunciar a tudo significa renunciar a tudo e não apenas a algumas coisas mais ou menos desaconselháveis moralmente. No desafio lançado por Cristo, não há qualquer moralização. Não se trata apenas de abandonar as coisas más. Também as boas devem ser objecto de renúncia. Tornemo-nos vazios, é a injunção que o texto de Lucas regista. Não se trata só de renunciar à propriedade privada, aos bens materiais, às coisas que, desde cedo, dizemos que são nossas. Posso renunciar a tudo isso e, no entanto, ainda não ter renunciado a nada. Tornar-se vazio significa renunciar a si mesmo, entrar no reino da pura aceitação do acontecer.

sábado, 7 de setembro de 2013

Dia de mercado

Nicanor Piñole - Dia de mercado

Tempos houve em que havia um dia de mercado. Isso significava que os outros dias seriam dedicados a outras coisas. Hoje todos os dias se tornaram dias de mercado e os homens não sabem fazer outra coisa senão comprar e vender. A necessidade transformou-se em obsessão. Um vício contra a natureza. Ora a natureza é, como ensinou Baudelaire, um templo. Não tarda que, como os vendilhões do templo, sejamos expulsos pela força do chicote.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Poemas do Viandante (432)

Gustav Klimt - Adão e Eva (1905-6)

432. Os cabelos descem-te em fúria pelos ombros

Os cabelos descem-te em fúria pelos ombros
e o silêncio da tarde descai estrangulado pelo corpo:
rumor de folhagem, aroma de neve, água cintilante
sobre o fruto maduro que anuncia o outono.

Abro um livro ao acaso e desfolho-te, a cicatriz
desenha um rio, a fronteira, o alvor da maçã.
A palavra chega, negra e terrível, esboço de geada,
promessa perdida na sombra azul da manhã.

Abres a janela e olhas a névoa sobre os pomares.
Nus, os ombros esperam pelo deslizar da mão.
Ao longe, ouvem-se corvos, o uivo branco do amor.
O teu corpo amanhece no deslumbrado sangue do meu.

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Tornar-se ninguém

Georgia O'keeffe - Black Cross with Red Sky (1929)

A cruz, na história, é o último lugar, e o crucificado não tem nenhum, é um 'não lugar', foi despojado: é um ninguém, mas João vê essa humilhação extrema como verdadeira exaltação. (Bento XVI)

Tornar-se ninguém. Quando, no Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, Telmo, ao escutar a voz do Romeiro, pergunta «Romeiro, quem és tu?», D. João de Portugal responde-lhe «Ninguém, Telmo; ninguém; pois se já nem tu me reconheces.» Esta experiência de humilhação suprema (a humilhação do não reconhecimento) de um elemento da aristocracia portuguesa nasce do descalabro de Alcácer-Quibir. Ela é marcada pela aniquilação do papel social e pela queda da máscara construída na interacção comunitária. Esta aniquilação - mero acidente na vida das sociedades, resultado de um desaire, mas nunca um projecto de vida - é o projecto central do cristianismo, projecto centrado na exemplo do modelo crístico.

O texto citado de Bento XVI tem uma tonalidade interessante. Ao falar da cruz como o último lugar, não fala de forma abstracta e descontextualizada. A cruz é o último lugar na história, nesse lugar que regista as metamorfoses das comunidades humanas, os feitos dos homens, a glória que lhes toca. Contrariamente ao entendimento nietzschiano, o cristianismo, com a sua cruz e o projecto de tornar a pessoa em ninguém, não é uma negação da vida, mas um crítica impiedosa, ao mostrar a sua irrelevância, às estruturas e hierarquias que a dinâmica social projecta nas comunidades, incluindo as religiosas, diminuindo-lhes a verdadeira vitalidade. A vida não está em ser o primeiro, o mais importante, mas em tornar-se ninguém, em libertar-se da máscara que a vida social impõe, em ocupar um não lugar. Qual o lugar da vida verdadeira? É o não lugar, aquele que para ser ocupado exige que alguém se torne ninguém, que se transforme nesse a quem ninguém reconhece.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Tempos de crepúsculo

Carlo Carra - Depois do pôr-do-sol (1927)

Nada simboliza melhor os nossos tempos do que o crepúsculo que anuncia a noite. Há ainda um resto de luz, mas a sua força e vigor desapareceu há muito. Aquilo que era claro tornou-se - e está a tornar-se cada vez mais rapidamente - obscuro. A terra é agora um lugar de errância, de onde desapareceu a força orientadora. A preocupação com a vida material é a noite onde o impulso do espírito enfraquece e quase soçobra na escuridão das trevas.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

O mistério do mal

Marc Chagall - Caim e Abel (1911)

A narrativa bíblica sobre Caim e Abel não nos fala apenas do traumático que é a ruptura da fraternidade. É certo que o episódio desenha o modelo de todas as guerras - civis e outras -, mas há mais do que isso. Há duas camadas de sentido presentes. Numa primeira, a mais superficial, vê-se Caim ressentido com Abel e Deus perante a diferença com que são tratados. Uma leitura sociológica diria que a diferenciação entre os homens é causa de ressentimento e geradora de perturbações no comportamento dos indivíduos e na ordem pública. Não deixando de fazer sentido, esta leitura é limitada e tornaria o agrado de Deus para com Abel uma mera injustiça. 

Em Génesis 4: 6-7 é dito a Caim e perante o seu ressentimento: "Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te (...)”. Fica sugerido uma falta prévia, a prática de um mal não determinado, que terá estado na origem na diferenciação de tratamento dado às oferendas de Abel e de Caim. É esta misteriosa falta prévia que é o núcleo da história de Caim e Abel. O mal, esse mal originário, é misterioso. E é ele que dá que pensar, pois gera os outros, como aqueles que se simbolizam no homicídio de Abel pelo irmão e todos os que decorrem na relação entre seres humanos. Isto significa, também, que a diferenciação é já o resultado da acção do mal.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Seguir o seu caminho

Camille Corot - Le Chemin de la gare à Ville-d`Avray (1874)

Mas, passando pelo meio deles, Jesus seguiu o seu caminho. (Lucas 4:30)

O versículo citado de Lucas traz o modelo de todo o autêntico viandante. O viandante - e todo o ser racional é convocado a sê-lo - não é aquele que permanece entre os seus concidadãos, embora não os evite. O viandante passa pelo meio deles, entre as suas querelas e os seus limites ideológicos, e segue um caminho que é especificamente seu. Se o Cristo - segundo a tradição do cristianismo - se constituiu no modelo a ser seguido pelos homens, isso não significa que todos os homens devam praticar os mesmos actos narrados nos textos neotestamentários. Significa que, como Ele e à sua imagem, devem seguir o caminho que é seu e apenas seu, que lhes compete pela sua natureza, e não qualquer outro. 

domingo, 1 de setembro de 2013

Haikai do Viandante (156)

Prince Eugéne de Suéde - Uma noite de Verão (1895)

Terrível mistério
o da noite de luar:
abismo e império.