segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (393)

Edward Burne Jones - La Estrella de Belén (1890)

393. Vai chegar a noite definitiva e primeira

Vai chegar a noite definitiva e primeira,
a que nunca vem, a que nunca regressa,
a noite que não parte nem chega.
O silêncio acolhe os seus passos,
uma estrela suspende o fôlego
e abre-se como um farol no horizonte.

Os anjos deixaram de levitar,
os reis perderam-se no deserto
e os pastores esqueceram os rebanhos.
A vida oscila entre tumultuosas margens
e dezembro quase morto ergue-se
para que no homem haja Deus por imagem.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (114)

Alexander Cozens - A Wooded Path

Árvores e luz,
senda aberta na floresta.
Sombra, sombria sombra.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Do Advento ao Natal

Robert Campin - The Annunciation (1420-1440)

Poder-se-á pensar que, com a vinda do Natal, estamos a chegar ao fim do Advento. O Advento é sempre um tempo de expectativa, a expectativa da chegada. Se ultrapassarmos uma leitura racionalizante da simbólica cristã, poderemos compreender que o Advento não é uma mera época onde se prepara a vindo do Cristo, mas símbolo de uma expectativa eterna da chegada do também eterno Natal desse Cristo. Isto permite-nos pensar que todos os momentos do ano litúrgico são sombras temporais, símbolos materiais e relativos, de um conjunto de símbolos eternos e absolutos. Sao símbolos de outros símbolos. A sua imersão no tempo histórico e no tempo litúrgico comporta, então, uma ambiguidade. 

Por um lado, torna compreensível à razão e ao sentimento dos homens um conjunto de mistérios que não são nem racionais nem afectivos, que não pertencem ao tempo mas àquilo que está para além do tempo. Esse tornar acessível à dimensão psicológica do homem aquilo que ele não pode compreender significa uma convocação. Convocação para se elevar do que é sensível, afectivo e racional  para aquilo que ultrapassa a compreensão permitida pelo uso habitual do psiquismo humano. Convocação para o homem se elevar da dimensão histórica à dimensão da eternidade. Estes símbolos que estruturam, no cristianismo, a dimensão temporal da vida humana são aberturas para o que não é temporal, portas por onde o viandante poderá entrar e elevar-se ao mistério eterno do Ser.

Por outro lado, o facto desses símbolos se terem historicizado e ganho um lugar no calendário - no calendário litúrgico e no calendário civil - pode ter o efeito de obstruir a compreensão para a natureza fundamentalmente simbólica desses acontecimentos e reduzi-los a puros eventos históricos idênticos à queda do Império Romano ou a derrota de Napoleão em Waterloo. Reduzidos a acontecimentos históricos plasmados no calendário civil e litúrgico, os símbolos presentes no cristianismo tornar-se-ão a referência a coisas relativas e passageiras, cuja realidade ontológica não diferirá daquela que têm os acontecimentos humanos. Por isso, será importante recordar que este Advento que se aproxima do fim não é mais do que a sombra de um Advento eterno, expectativa e esperança absolutas.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (113)

Camille Pissarro - A View from Louveciennes (1870)

Uma nuvem rompe
a brancura azul do céu.
Presságio de inverno.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (392)

Asher Brown Durand - A Pastoral Scene (1858)

392. Quando olho as paisagens campestres

Quando olho as paisagens campestres,
penso no lento extermínio da terra,
nas ruas secas e vazias da cidade,
na perfeição que tudo levou.

E, em mim, acorda-se o vozear dos sinos,
o traço escuro de uma silhueta,
uns cabelos brancos sob o sol de janeiro,
alguém que passava curvado pelo tempo.

Pego em tudo isso e deixo coalhar a memória,
apago a luz que ela trazia consigo,
e carrego o peso das horas
para o esconder no silêncio do campo.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (391)

Louis-Welden Hawkins - Procesión de las almas o Navidad, cuadro místico (1893)

391. O sopro silencioso de quem passa

O sopro silencioso de quem passa
e traz uma luz sobre a terra.
O rumor de um olhar na madrugada
e o barqueiro que exausto te espera.
A canção dedilhada num coreto
e o sinal breve que nos escapa.

Se fosse o meu destino ser poeta,
sob os umbrais escreveria
longas cartas de amor,
um tratado sobre a alma
e o texto breve de um epitáfio.

Mas aquele que escreve não tem destino,
mero sopro no silêncio tardio,
rumor de água e sinal de passagem.
De nada lhe vale a memória
nem as preces que ao coração exaltam.
Escreve na vida minguada
e aguarda a noite para que os olhos se fechem.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Da pobreza e da miséria

Jacob Lawrence - The Migration Series. Panel 10: They were very poor (1940-41)

Só a partir do momento em que a pobreza se tornou uma noção exclusivamente económica é que se passou a opor, sem qualquer desvio, à riqueza. O conceito de pobreza teve uma amplitude metafísica, hoje perdida, que encontramos nos grandes místicos (por exemplo em mestre Eckhardt) e em Espinosa que nos fala da potentia da pobreza. Nesta aceção, os pobres viviam da sua própria pobreza, da sua perfeição intrínseca. E que riqueza era essa? A autonomia total, a força imensa de quem não tem nada e não quer nada e, por isso, escapa à apropriação e à lógica da propriedade. Assim entendida, a pobreza não se opõe à riqueza, mas à miséria. [António Guerreiro, Atual (Expresso de 15/12/2012), p. 36].

Todo o texto de António Guerreiro merece ser lido. Não diria, com o autor, que a pobreza teve uma amplitude metafísica, mas que ela constituiu e constitui - pois apesar de tudo não se perdeu por completo - um exercício físico e psicológico destinado a preparar o ser humano para a experiência, essa sim, metafísica. Esta experiência metafísica é aquilo que os místicos chamam a união com Deus, na qual o homem se abre para que desça sobre ele a presença do Absoluto. Tornar-se pobre significa nada ter, nada querer e nada poder, uma ascese de desprendimento e de desapossamento de si mesmo. 

A riqueza que essa pobreza permite, contudo, não é a que deriva da "sua perfeição intrínseca", pois, neste caso, era ainda colocar-se na esfera da propriedade, na esfera onde se possui a sua própria perfeição. Aquilo, porém, que é exigido ao homem é que a sua própria perfeição seja abandonada, pois não passa de uma ilusão do ego, de uma estratégia egoísta. A única riqueza reside na graça que o homem recebe do Alto, cuja presença ou ausência é completamente imprevisível, pois o Espírito, como se sabe, sopra onde quer.

Este era um ideal regulador que conduzia alguns homens e mulheres ao convento e, ao mesmo tempo, servia de farol que indicava a rota que os homens que viviam no século, entregues às paixões do mundo, deveriam seguir ou, em última análise, aspirar. A verdadeira riqueza era, desse modo, aquilo que não possuíamos, aquilo que uma dádiva gratuita fazia descer sobre os homens e que, por instantes, os raptava da sua radical pobreza (aquela que deriva de serem feitos de pó) e os elevava à luz do Absoluto e do Eterno. Num tempo de advento, é bom não esquecer tudo isto, pois na economia simbólica do cristianismo, não é por acaso que o Filho de Deus - curiosamente chamado, o Filho do Homem - nasce no ambiente mais pobre que se possa imaginar. Não é a pobreza que é o essencial, mas aquilo que desce sobre ela.

Mas esta pobreza e aqueles que a ela se entregam nunca podem advogar a miséria que atinge os homens fruto da avidez e do egoísmo de outros homens. Aquilo que as nossas sociedades produzem não são pobres, mas miseráveis. Miseráveis porque destituídos dos elementos materiais mínimos necessários a uma vida decente, mas também miseráveis, os outros, porque a cobiça da riqueza os torna incapazes de estabelecer laços com aqueles que forçam a tornar-se escravos. A verdadeira pobreza liberta o homem, mas a miséria escraviza-o. E as nossas sociedades são sociedades em que escravos e miseráveis ricos dirigem e sugam outros escravos desapossados pela violência ou pela artimanha da lei. É contra esta miséria que a pobreza do desprendimento se deve constituir como o padrão alternativo e a voz, ainda que silenciosa, acusadora.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Haikai do Viandante (112)

James Juszczyk - Brief (1974)

No céu um arco-íris.
As cores suspensas cantam
um mundo feliz.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Poemas do Viandante (390)

Vincent Van Gogh - Almiar en un día de lluvia (1890)

390. Não há rio que justifique tanta água

Não há rio que justifique tanta água
nem tristeza que acolha tamanha dor.
Tudo se dissolve nestes dias,
a vida como ela foi,
a esperança que a ilusão trazia,
a casa onde a estirpe foi sonhada.

No futuro, tudo será melhor, dizem.
Mas da minha janela só vejo folhas caídas
e nenhuma primavera as trará de volta.
Só vejo luzes amarelas
que iluminam a amargura que escorre do céu
e alaga ruas soturnas e vielas fechadas.

Encosto-me à vidraça e olho a água que cai
e tudo em mim se esvai,
escorre lentamente para o chão,
deixa uma mancha de sombra azul
no lugar branco e calcinado
onde um dia sobre a tua poisei a minha mão.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Uma economia do dom

Tiziano - La venida del Espíritu Santo (1545)

L'un possède le don de parler avec sagesse ; l'autre, avec science. Un autre, le don de la foi ; un autre, le don de guérison ; un autre, le don des miracles ; un autre, le don de prophétie ; un autre, le don de parles diverses langues ; un autre, le don de les interpréter. Or, c'est un seul et même Esprit qui opère toutes ces choses : Haec autem omnia operatur unus atque idem Spiritus. (Jean-Joseph Gaume (1865) Traité du Saint Esprit)

Esta tradição viva da Igreja Católica de atribuir o conjunto das capacidades e potências presentes nos indivíduos, sob a denominação de dons, ao Espírito Santo sublinha uma coisa que, nos dias de hoje, se tornou quase incompreensível. Nenhum mérito nos pertence pela posse dessas qualidades. Elas foram-nos doadas, como sublinha a própria palavra dom. Pode haver em nós algum mérito na manutenção e desenvolvimento desses dons, mas a sua posse ou a sua falta não deixam de constituir para o indivíduo um mistério, um verdadeiro mistério do Espírito Santo, para usar os termos da tradição cristã. 

Este carácter misterioso presente na herança ou nos dons recebidos tem três consequências. Uma primeira coloca-nos no nosso lugar. Por mais dotado que eu seja, isso nada tem a ver com um mérito pessoal do qual possa orgulhar-me. Uma segunda consequência sublinha que os dons, não sendo mérito meu, apelam para a sua realização segundo uma perspectiva de serviço aos outros. Por fim, o dom, por não ser origináriamente meu, implica o dever de o desenvolver e de o consumar na realização do bem que ele contém. O dom traz consigo o imperativo da sua realização, da realização do Espírito doador que nunca deixa de estar presente em cada um dos dons com que presenteia os indivíduos. 

Nesta economia do dom, para usar uma expressão que remete para Marcel Mauss, percebe-se que somos parte de uma cadeia de reciprocidades, a qual estrutura a comunidade humana enquanto tal. E aqui podemos pensar mais fundadamente no mistério do Espírito Santo como o mistério da instauração das comunidades humanas, nas quais ele toma corpo e carne através dos dons distribuídos gratuitamente.