sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Haikai do Viandante (9)


o sol sobre a água -
uma planície de fogo
nuvens a arder

Poemas do Viandante

239. Ifigénia

no quadro de tiepolo
a lâmina no ventre
sussurra-me a armada
levada pelo vento

e os aqueus partem para a guerra
vão viris e livres
navegam num mar de sangue
que desceu do teu corpo
e limpou a terra

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Poemas do Viandante

238. Ulisses

pobre ulisses o mar encapelado
é uma sombra suave
sobre o teu ombro
e a ira do deus
um refrigério na tarde

penélope escolheu
e as núpcias de ferro
estão consumadas

não suspires ainda
a noite só agora começa

domingo, 30 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

237. VIDA

a vida – a noite a trouxe ­–
um mistério
de silêncio
promessa de luz
cântico de água
no fogo do
pensamento

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Haikai do Viandante (8)


nas margens do rio
desliza feroz a mágoa - 
prisão e voragem

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Haikai do Viandante (7)


abre-se ao terror
da noite a velha árvore - 
murmúrios de luz

domingo, 23 de outubro de 2011

Haikai do Viandante (6)


Chuva de Outono
enche a noite de cansaço.
Um punhal na lua.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Um espectáculo odioso


A miserável morte de Muammar Kadhafi, mais uma das execuções, pela plebe em delírio, de inúmeros ditadores mais ou menos odiosos, a que tenho assistido ao longo da minha vida, deixa-me, como sempre, um traço de amargura no fundo do coração. Compreendo que numa cultura fundada na lei de talião se possa comemorar com exuberância este tipo de acontecimentos. Mas a minha consciência de ocidental, mesmo que o Ocidente tenha cometido inúmeras atrocidades, sente uma veemente repulsa por estas iniquidades. São duas as fontes culturais da minha repulsa. Por um lado, a ética da justa medida aprendida com os gregos. A justa medida, interpretada nos nossos dias, significa a sensatez da pena, a racionalidade de um processo jurídico a que o réu deve ser submetido, mesmo que ele nunca o tenha permitido aos seus adversários. Mas a lei da razão herdada dos gregos, na cultura Ocidental, foi enriquecida pelo convívio com a grande novidade cristã, o perdão do inimigo, a lei do amor como princípio fundamental das condutas individuais. Este é o núcleo duro dos valores éticos fundamentais do Ocidente. É este núcleo que deve ser cultivado quotidianamente, mesmo, ou ainda mais, numa sociedade que, como a nossa, está a perder o norte. A razoabilidade aristotélica e o sacrifício do Cristo são o suficiente para tudo julgar, condenar e perdoar. O perdão não significa a eliminação da pena, mas a sua razoabilidade e a sua limitação, de forma a que a pena não seja um acto de vingança. Kadhafi tinha direito àquilo que terá negado a muitos, a ser julgado por um tribunal independente, num processo justo.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Poemas do Viandante

236. SERENIDADE

chegaram os dias propícios
a aragem toca
o arvoredo
um gato corre
e o sol recolhe-se
para lá dos montes

no silêncio da noite
respiro
e deixo vir a tua voz
cantar sobre a luz
que dardeja
a serenidade

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Últimos dias

Brjullow: Der letzte Tag von Pompeji


Sabe, porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos. Porque haverá homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afecto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela.  (S. Paulo, 2 Timóteo, 3: 1-5) 

A meditação sobre a expressão últimos dias é fundamental na tradição cristã. Se entendermos por últimos dias aquelas que antecedem a parusia de Cristo, a sua segunda vinda, então todos os dias são os últimos dias. A possibilidade do retorno de Cristo na alma do homem não é um acontecimento distante. Isso implicaria a temporalidade e o decurso histórico. Mas o fundamental não estará nesse fim da história, onde Cristo retorna, mas no que está para além da história e da temporalidade. Eternamente, Cristo está a retornar para julgar os vivos e os mortos. Por isso, a descrição paulina dos últimos dias aplica-se tanto à época em que viveu como à nossa, ou a qualquer outra. Esses últimos dias serão trabalhosos, pois a vinda de Cristo, a sua descida na alma humana é obstaculizada pelo amor-próprio nas múltiplas modalidades que Paulo de Tarso descreve. Vivemos, de facto, os últimos dias, e vivemos a corrupção fundada no egoísmo. Isso é verdade socialmente, mas também o é para cada um de nós. Daí, a necessidade da conversão do ego ao totalmente Outro, a esse vazio que espera o nosso vazio para o preencher.