Se o homem é aquele que percorre a floresta, como lenhador ou guarda-florestal, a mulher é a própria floresta. A floresta não é um sítio onde, vinda do exterior, a mulher penetre e procure um caminho. O caminho da mulher é o reconhecimento da sua própria natureza florestal, com os múltiplos caminhos que a atravessam, com a obscuridade que lhe pertence, mas também com as árvores, os fetos, os líquenes e os musgos. Labiríntica, selvagem, suave, ameaçadora e disponível para ser trilhada. O homem percorre a floresta, intui caminhos, tenta orientar-se. A viagem na floresta, para o homem, é um caminho, uma peregrinação. Para a mulher a única viagem na floresta é a da coincidência consigo mesma, o estar plenamente em si, um ser-se na florestidade que a constitui, com os seus trilhos, perigos e segredos. A floresta é o símbolo da eterna inocência feminina; para o homem, é a oportunidade de, ao percorrer os trilhos florestais, tornar-se inocente.
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
Poemas do Viandante
200. SPES (XII)
vasos descoloridos
flores de jardim
as velhas aspidistras
tocadas pela secura
o rumor
de um gato no umbral
senta-se à mesa
e há pão e vinho
e o murmúrio do vento
é uma fresta de luz
a voz suave
de uma canção
vasos descoloridos
flores de jardim
as velhas aspidistras
tocadas pela secura
o rumor
de um gato no umbral
a sombra
dos que partiramsenta-se à mesa
e há pão e vinho
e o murmúrio do vento
é uma fresta de luz
a voz suave
de uma canção
terça-feira, 23 de agosto de 2011
A outra floresta
A floresta é, também, a metáfora do labirinto. Melhor, floresta e labirinto acabam, de forma metafórica, por se interdesignarem, sendo possível utilizar qualquer um dos termos para denotar a referência do outro. Sendo a floresta, tradicionalmente, o produto espontâneo da natureza (embora, há muito isso não seja assim) e o labirinto uma construção humana, o que permite o transporte de uma designação para a referência habitualmente denotada pelo o outro termo é a ideia de caminho. São os caminhos que não são claros, a que falta uma certa luz racional. Os caminhos que atravessam a floresta ou que compõem o labirinto não se deixam iluminar pelo cálculo ou outro tipo de operações do entendimento. Um outro operar do espírito é necessário para encontrar o caminho e persistir nele, seja na floresta ou no labirinto.
Se tomarmos, por outro lado, o labirinto como termo da mediação, sem dificuldade se pode estabelecer conexão entre a floresta e os seus caminhos que conduzem a lado algum e o mundo social em que os seres humanos, apesar da racionalidade com que cada um traça o caminho dos seus interesses (embora esta visão liberal da existência seja puramente utópica), acabam por andar à deriva e se tornam uma espécie em contínua errância. De facto, o lebenswelt, tomado na sua globalidade, não deixa de ser uma verdadeira floresta, cujos caminhos só na aparência podem ser percorridos segundo a luz da razão. A dificuldade do viandante é suspender o uso da bússola sem perder a orientação ou, dito de outro modo, suspender o uso da razão sem se tornar irracional.
Poemas do Viandante
199. SPES (XI)
e deixar vir
a aurora
sobre os prados
exaustos
do coração
canta nestes dedos
a tua pele
sob o império
da minha mão
tocar-te a fímbria
dos seiose deixar vir
a aurora
sobre os prados
exaustos
do coração
o anjo ergue-se
e caminhacanta nestes dedos
a tua pele
sob o império
da minha mão
segunda-feira, 22 de agosto de 2011
Poemas do Viandante
198. SPES (X)
o súbito desejo
da tua boca
abre-se no espírito
e é vento que retine
luz que ecoa
uma voz de sal
no oceano
onde o corpo
desagua
o súbito desejo
da tua boca
abre-se no espírito
e é vento que retine
luz que ecoa
uma voz de sal
no oceano
onde o corpo
desagua
domingo, 21 de agosto de 2011
Holzwege
Holz [madeira, lenha] é um nome antigo para Wald [floresta]. Na floresta[Holz] há caminhos que, o mais as vezes sinuosos, terminam perdendo-se, subitamente, no não trilhado. Chamam-se caminhos de floresta [Holzwege]. Cada um segue separado, mas na mesma floresta [Wald]. Parece, muitas vezes, que um é igual ao outro. Porém, apenas parece ser assim. Lenhadores e guardas-florestais conhecem os caminhos. Sabem o que significa estar metido num caminho de floresta. (Martin Heidegger, Caminhos da Floresta)
Se em certas histórias infantis o caminho da floresta conduz não a um certo lugar, mas a um encontro, os caminhos da floresta de que fala Heidegger não asseguram sequer esse encontro. São como muito bem traduzem os franceses chemins qui ne mènent nulle part. Quem visitou a Floresta Negra e percorreu os trilhos que a atravessam - esses trilhos que envolvem a cabana, em Todtnauberg, que foi de Martin Heidegger e hoje pertence aos filhos - percebe o que o filósofo diz quando se refere ao não trilhado. A floresta torna-se a metáfora do não dito, do não pensado e do não vivido. Essa metáfora, porém, é a que permite abir um caminho no não trilhado. Quanto mais pensamos nesse não trilhado, mais tomamos consciência de que a floresta é também o lugar da errância. Perder-se na floresta pode acontecer a quem não tem a sabedoria do lenhador ou do guarda-florestal.
A sabedoria do lenhador ou do guarda-florestal é uma estranha sabedoria. Não deriva do saber que vem do livro, nem mesmo dos livros sagrados, mas da experiência da própria floresta. Só adentrando-se nela, só correndo o risco da errância, só mesmo fazendo a experiência da errância é que alguém chega à sabedoria dos trabalhadores da floresta. Num mundo em que o trabalho tem tão pouco valor, quem quererá rebaixar-se à condição de um simples lenhador ou guarda-florestal? Quem aceitar essa condição, todavia, poderá escutar ainda, na volúpia do tempo, as palavras de Heraclito: Quem não espera o inesperado, nunca o encontrará.
Poemas do Viandante
197. SPES (IX)
o jardim fenece
no descuido
dos dias
e o medo ressoa
pela madrugada
os campos vazios
encapelados de ervas
o jardim fenece
no descuido
dos dias
e o medo ressoa
pela madrugada
o grito do corvo
ensombra de trevasos campos vazios
encapelados de ervas
sábado, 20 de agosto de 2011
Da simplicidade da vida
Uma das marcas do tempo que nos cabe viver é a complexidade. Refiro-me aqui à complexidade das formas de vida. Mesmo nas camadas populacionais menos diferenciadas, a vida tornou-se complexa e artificiosa. A relação directa e simples com a Terra, com os outros e, quando existe, com o sagrado praticamente desapareceu. A teia social, a influência dos mass media, as exigências crescentes que cada um acha dever ter para consigo e para com os outros acabaram por erguer uma barreira incomensurável e praticamente intransponível. Do lado de fora dessa fronteira fica a vida simples, a simplicidade existencial, a qual sempre foi o fundamento de uma relação recta com a verdade e a vida.
A vida simples é uma vida disciplinada e regular, longe do tumulto e da algazarra em que se transformou a vida moderna. Ora o grande problema é que ao escrever isto não se está a descrever uma prática mas a identificar uma ideia reguladora. Diz-se que a vida deve ser vivida dessa forma e não que ela é efectivamente vivida assim. O artifício, a complicação, a complexidade como estratégia de diferenciação e afirmação do ego espreitam de todo o lado e caem, como lobos, sobre o ser humano, mesmo sobre aquele que há muito descobriu os limites da materialidade da existência. Um primeiro passo será o descomplexificar a relação de cada um consigo mesmo. Antes de pregar novas formas de existência social, o mais importante é dar à sua vida um caminho de simplicidade e de pobreza, sendo a pobreza do espírito, esse exercício de humildade perante a verdade, a mais importante e profícua forma de pobreza.
Poemas do Viandante
196. SPES (VIII)
um deus canta
e nas aldeias
repicam sinos
como pássaros
no alvoroço
da primavera
sexta-feira, 19 de agosto de 2011
Poemas do Viandante
195. SPES (VII)
o voo do milhafre
no azul do céu
tece no horizonte
árvores e pedras
risca de silêncio
o teu nome
no rumor
da água da fonte
o voo do milhafre
no azul do céu
tece no horizonte
árvores e pedras
risca de silêncio
o teu nome
no rumor
da água da fonte
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