quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Silêncio


Silenciar o tumulto do pensamento, deixar lentamente que ele se desvaneça, e esperar na escuridão do espírito que uma palavra venha iluminar as trevas. O que vier virá na liberdade, livre e inesgotável, tão inesgotável como o silêncio que sobre o espírito cai.

Poemas do Viandante

194. SPES (VI)

tocar-te o ventre
sob o véu
da noite
e deixar a rosa
florescer
na surpresa
desses lábios
batidos pelo mar

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O caminho da saberdoria

Aussi la deuxième chose certaine que nous savons sur la Vierge, c'est que sa sainteté est extrêment secrète.

Et pourtant je peux trouver Notre-Dame si je demeure, moi aussi, caché en Dieu en qui elle est cachée. Le meileur moyen de la connaître, c'est de partager son humilité, sa discrètion, sa pauvreté, son effacement et sa solitude ; et la connaître ainsi, c'est trouver la sagesse. [Thomas Merton, Semences de contemplation

Na tradição platónica, o exercício da filosofia é literalmente um amor à sabedoria (sophia), amor que conduz à ascese que prepara o filósofo para a reminiscência das Ideias. O cristianismo acabou por designar a sabedoria de Deus por sophia. Aparentemente, a Virgem nada tem a ver com a sophia, mas descobre-se, no texto de Merton, a profunda ligação de Maria à sabedoria. Ela é um caminho para a sageza. Um caminho secreto que o viandante deve seguir realizando em si mesmo aquilo que a Virgem é oculta em Deus. Humildade, discrição, pobreza, apagamento e solidão não são apenas virtudes morais, mas um caminho de conhecimento e sabedoria.

O segredo da santidade da Virgem reside aqui mesmo. O segredo não se deve a nada de essencialmente oculto que uma qualquer iniciação deva revelar, mas no facto dessa santidade e dessa sabedoria residir toda ela nesse apagamento de traços pessoais, de elementos da subjectividade, para que apenas aí se manifesta a autêntica sabedoria. A sabedoria de Maria está toda ela na redução a nada. Desse modo, Maria é um método, na acepção grega do termo, um caminho para aquilo que é a sabedoria. A sabedoria de Maria reside no facto de ela não possuir qualquer sabedoria própria, ser pobre de espírito, para que o Espírito nela se manifeste na glória da sua sabedoria.

Poemas do Viandante

193. SPES (V)

ó serena tarde
em que tudo
adormece
traz-me
as tílias cansadas
e a esperança comovida
onde a tua face
ruboresce

terça-feira, 16 de agosto de 2011

O sujeito da acção

A função sintáctica do sujeito numa oração contém um paradoxo. Esse paradoxo está já presente na designação de sujeito. Na voz activa, o sujeito é aquele que pratica a acção. A ideia de praticar a acção pressupõe um princípio de iniciativa, uma capacidade de fazer acontecer qualquer coisa no curso dos acontecimentos. Esta ligação do sujeito à iniciativa parece revelar um princípio de liberdade. Livres são aqueles que estão capacitados para fazer acontecer alguma coisa. O paradoxo não se manifesta, como se poderia esperar, na transição para a voz passiva, onde o sujeito sofre a acção. O paradoxo está na própria voz activa. A relação do sujeito com o verbo que denota a acção é o centro desse paradoxo. Parece que a acção depende da liberdade do sujeito, que este é soberano no seu agir. Mas se meditarmos sobre essa relação, depressa se torna evidente a submissão do sujeito à acção que pratica, e descobrimos a dependência e passividade do sujeito relativamente à acção. A ideia de que a liberdade reside nesse poder de iniciar algo através da acção sofre um duro revés. Ao agir, o sujeito descobre-se passivo perante a sua própria acção, que o subjuga e o submete, isto é, que o torna sujeito a ela. Não é apenas a voz passiva que evidencia a natureza passiva do sujeito, a própria voz activa acaba por relevar que o próprio agente não é mais que um mero paciente.

Daí que algumas tradições falem da liberdade de uma forma paradoxal. O agir não agindo do taoísmo ou conhecer não conhecendo da mística apofática cristã são formas de sublinhar a situação paradoxal do sujeito. A liberdade começa por ser, deste modo, não a capacidade de agir ou de realizar de um sujeito, mas o resultado de um processo de libertação do sujeito relativamente à sua subjectividade e ao seu ser sujeito. Um libertação não apenas da passividade denotada na voz passiva, mas da própria actividade. O agir deverá, então, ser entendido como um processo em que quem age se deve libertar dessa mesma acção. Isto não significa que o resultado será a presença de um sujeito puro e desprendido de qualquer acção. Signifca antes o deixar fluir da acção sem ver nela e sob ela uma substância que a pratica, um sujeito poderoso, capacitado para produzir algo novo no mundo. Libertação da acção significa a libertação da acção de um sujeito e de uma subjectividade que a limitam.

Poemas do Viandante

192. SPES (IV)

o corpo rasgado
a pele sulcada
pelas chuvas
de setembro
o cheiro do vinho
a arder
na névoa do passado

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

191. SPES (III)

ser assim tão simples
ter poucas palavras
repeti-las
infinitamente
e esperar
que os teus dedos
um dia poisem
como aves
nos meus

domingo, 14 de agosto de 2011

Cuidar do Jardim do Éden

Se o mundo pode ser visto como um enorme mosteiro, como devem os homens, enquanto monges, comportar-se nele? Duas tradições podem ser observadas. Por um lado, a que deriva de Platão e vê o mundo à imagem da caverna, como um lugar de terrível ignorância e insensatez. Outra tradição, porém, recorda-nos que o mundo é o verdadeiro Jardim do Éden, e que se o não sentimos enquanto tal é porque pervertemos a relação que com ele mantínhamos e, desse modo, pervertemos a relação com Deus e com os outros homens. A tradição platónica propõem, como salvação, a viagem extra-mundana, onde a realidade tal como ela é se revelaria na sua verdade ao viajante. A tradição judaica-cristã é menos metafísica, pois sublinha que o Jardim do Éden é aqui mesmo, nesta Terra. E se esta surge aos nossos olhos como uma obscura caverna, o problema não está na Terra mas em nós que pervertemos a relação originária. Seria um equívoco pensar que a tarefa essencial residiria numa dedicação ao mundo e curar as perversões sociais e ambientais. Cabe ao homem cuidar do Jardim do Éden, mas isso significa antes do mais que lhe cabe pôr fim à relação distorcida e pervertida que ele tem com o mundo, Deus e os outros. Cuidar do Jardim do Éden começa por ser uma trabalho sobre si mesmo, uma conversão de atitude, uma abertura contemplativa sobre si, os outros, Deus e o mundo. E será este trabalho contemplativo que ensinará a cada um não apenas a ver o mundo como o Jardim do Éden, mas como deverá tratar daquilo que a vontade do Altíssimo lhe pôs ao seu cuidado. Cuidar do Jardim do Éden não é, em primeiro lugar, um projecto de acção e um plano de actividades a inscrever no curso do mundo. Pelo contrário, começa pela contemplação e toda a acção deve ainda ser não só uma emanação da contemplação, mas pura contemplação, como se em cada gesto se abrisse perante nós a revelação do sagrado.

sábado, 13 de agosto de 2011

Poemas do Viandante

190. SPES (II)

caem as primeiras folhas
ainda os pássaros cantam
no engodo do verão

o vento traz
o odor da infância
as cores que desciam
da serra
e ateavam o mundo
na surpresa
do teu olhar

Do mundo e do convento

Uma longa tradição habituou-nos a opor mundo e convento, fazendo do primeiro o lugar onde se desenvolve a vida profana - talvez se devesse dizer a profanidade da vida - e do segundo, o lugar de oração e santificação, de experiência do sagrado. Mas esta oposição - ou mesmo a mera diferenciação - contém em si muito de artificial. Em primeiro lugar, porque o convento é um microcosmos que se constitui e está no mundo. Este não cessa nas paredes conventuais. Pelo contrário, trespassa-as. Mais, existe dentro delas de pleno direito, como se fosse impossível expulsá-lo. Um microcosmos não deixa de ser um cosmos e de estar nele. Em segundo lugar, porém, podemos fazer a leitura oposta. O próprio mundo pode ser lido como um gigantesco convento, onde cada cada ser humano se encontra em reclusão, onde foi convocado para a experiência de libertação, a experiência do Absoluto, dessa liberdade que nos liberta em primeiro lugar da sujeição a nós mesmos. O convento é apenas uma simbolização do mundo ao qual fomos chamados a realizar o mistério da nossa humanidade. Em última análise, estar fora ou dentro do convento acaba por ser indiferente. O apelo e a injunção que nos são dirigidos são os mesmos, a metamorfose da profanidade da vida na sua sacralidade, a conversão da servidão em liberdade.