Já longe na jornada, o viandante pergunta-se: qual é a tua via? Busca dentro de si, busca perplexo no silêncio da noite, busca o que ele bem sabe desde há muito. A sua via não é do encontro amoroso com o divino. Há no caminho do amor algo que o deixa sempre frio, como se o excesso de sentimento ou de afecto fosse um obstáculo ao próprio caminhar. Vários são os caminhos e cada um só pode percorrer o seu próprio, aquele a que foi chamado.
segunda-feira, 15 de junho de 2009
domingo, 14 de junho de 2009
Poemas do Viandante (25)
25. VENTO
sopra o vento
na ramagem
do quintal
um corpo
um anjo
a luz
que se apaga
se passa o umbral
sopra o vento
na ramagem
do quintal
um corpo
um anjo
a luz
que se apaga
se passa o umbral
sábado, 13 de junho de 2009
Viagem
Ser viandante é apenas estar em viagem, mas a viagem é infinita, não tem princípio nem fim. Um dia, surpreendemo-nos na viagem, mas ainda não percebemos que estamos a viajar, pois não sabemos de onde viemos nem para onde vamos. Temos a ilusória esperança de encontrar uma meta para onde caminhar. Mas enquanto caminhamos e caminhamos, enquanto nos vamos perdendo no caminho e, filhos pródigos, retornamos ao viajar, começamos a pensar que nada há para além do viajar. Talvez haja ainda, nesse momento, a necessidade de uma trégua, a busca de uma finalidade, a ânsia de um fim. Isso, porém, é a voz da nostalgia dos verdes anos. Com o tempo descobre-se que é uma doença benigna, com o passar dos dias e dos anos acabará por passar. Por fim, revela-se no viajar a essência do viandante. Nessa luz, ele sabe que não se dirige para lado nenhum, pois não há qualquer lado onde ir, descobre que ir ou permanecer são exactamente a mesma coisa, são ainda e só a viagem.
sexta-feira, 12 de junho de 2009
Poemas do Viandante (24)
24. FOGO
fogo
penumbra
desta mão
nome
tão veloz
dói
se toca
a ausência
foge de nós
fogo
penumbra
desta mão
nome
tão veloz
dói
se toca
a ausência
foge de nós
quinta-feira, 11 de junho de 2009
O Corpo de Deus
Dia de Corpo de Deus, dia de afirmação da presença substancial do corpo e do sangue de Cristo na hóstia consagrada. Mas o que de mais fundo agora podemos pressentir, para lá do mistério eucarístico, é a sagração do corpo. Estranha visão esta. Não será o cristianismo a religião adversa do corpo e da carne? Mas como pensar então no corpo de Deus? Como estabelecer a conexão entre Deus e corpo? O corpo de Cristo simboliza o carácter divino do próprio corpo. E o corpo não é apenas corporalidade reduzida à mera extensão, reduzida a uma geometria tri-dimensional. O corpo e o sangue enviam-nos para a ideia de carne, de corpo vivo, mas também aqui não estamos perante uma dimensão puramente biológica. O corpo é mais do que um elemento físico e biológico, o corpo humano, com tudo o que contém, é um mistério e um caminho que leva o homem para além daquilo que é meramente humano, ou, dito de outra forma, sendo humano é, por isso mesmo, sobre-humano.
quarta-feira, 10 de junho de 2009
Poemas do Viandante (23)
23. imponderável
imponderável
imponderável
sopro do
vento
um rasto de
água
na porta da casa
na porta da casa
um grito uma
mão
a voz do tormento
segunda-feira, 8 de junho de 2009
Poemas do Viandante (22)
22. venha o que vier
venha o que vier
e o pobre o coração
treme corre desagua
nas areias do mar
treme corre desagua
nas areias do mar
na luz do dia
na sombra da lua
virá o que vier
sábado, 6 de junho de 2009
Meditação e arte
Diz Merton: "Aprendamos a meditar no papel. O desenho e a escrita são formas de meditação." Como compreender a palavra do cisterciense? Talvez percebendo que na meditação como na arte não é o sujeito que é o centro e o autor, mas que qualquer coisa se revela nesse seu meditar ou criar, e aquilo que se revela aí é o verdadeiro autor. O sujeito não passará então de um mediador onde aquele ou aquilo que se deve revelar se revelará. Por isso, a meditação e a arte exigem o desapego e o apagamento do sujeito.
quinta-feira, 4 de junho de 2009
Poemas do Viandante (21)
21. a sombra
a sombra
desvanece-se
a sombra
desvanece-se
uma casa
uma promessa
uma promessa
a mão que se
estende
mal amanhece
A morada do cansaço
Escrevo agora da morada do cansaço. É uma casa turva de onde o olhar sai com dificuldade, mas é nela que nasce uma súbita volúpia, como se a quebra física fosse uma porta para uma estranha dimensão metafísica. Exausto o viandante quer descansar, mas é aí que vem a hora de retomar caminho. Caminhemos por entre a astenia e escutemos o que se canta nas novas paisagens que, abertas na morada do cansaço, chegam.
segunda-feira, 1 de junho de 2009
Poemas do Viandante (20)
20. corações
corações
barcos irrevogáveis
abrem no mar
esteiras de cristal
símbolos segredos
um leve sinal
corações
barcos irrevogáveis
abrem no mar
esteiras de cristal
símbolos segredos
um leve sinal
domingo, 31 de maio de 2009
Segredo
Ser-se si mesmo. Mas como ser si mesmo se não sei quem sou? A resposta, porém, não está no "conhece-te a ti mesmo" socrático, mas no esquecimento de si, nesse mergulhar na escuridão e nela encontrar aquilo que em mim é mais do que eu. Ser si mesmo então é ser mais do que eu, é ser pura e simplesmente, é abrir-se, romper a clausura do ser e deixar que ele venha. O meu segredo é não ter segredo nenhum, mas ser todo e completamente secreto. Ser-me é ser o segredo que me habita.
sábado, 30 de maio de 2009
Poemas do Viandante (19)
19. eis a casa
eis a casa
eis a casa
onde te penso
na mesa
pão e vinho
talher de prata
toalha de linho
talher de prata
toalha de linho
sexta-feira, 29 de maio de 2009
O inútil protesto
Agir e não desejar o fruto da acção, fazer o que deve ser feito e não esperar recompensa, quebrar a lógica do dom. Doar mas sem expectativa de receber, sem protesto pela ausência de reconhecimento. Entregar tudo nas mãos daquele que tudo superintende, mesmo se Ele não se move, não planeia, não espera. Quem está no mundo deve agir, mas deve agir como se contemplasse, como se não agisse. Mas será o viandante capaz de tal entrega? Quantos protesto inúteis contra o que acontece, como se o acontecer não fosse ainda manifestação de uma vontade que a tudo ultrapassa?
quinta-feira, 28 de maio de 2009
Poemas do Viandante (18)
18. avisto o verão
avisto o verão
túnica púrpura
e cabeça de oiro
quando chega
tudo ferve
a boca amarga
as ervas secas
os pinhais a arder
Tristan und Isolde
Oiço agora a cena final de Tristan und Isolde, de Wagner. Como é possível que um homem tenha feito aquilo? Como na pura imanência se inscreve a absoluta transcendência? Ali, na mais funda contenção, desenham-se mil mundos possíveis, como se Deus descesse naqueles acordes e trouxesse a densidade da sua dor para a compartilhar connosco. A dor de Deus feita música, uma dor que chama por nós na noite negra, uma dor que abre o mundo à terna alegria.
quarta-feira, 27 de maio de 2009
Poemas do Viandante (17)
17. a vara sobre a terra
a vara sobre a terra
a mão cheia de sal
um risco de azul
aberto no céu
sob o silêncio de coral
a vara sobre a terra
a mão cheia de sal
um risco de azul
aberto no céu
sob o silêncio de coral
Perder tudo
Abandonar, abandonar tudo, perder inclusive Deus. Aí, na extrema derrelicção, abre-se um caminho, escuro caminho, envolto em trevas e negra luz. Não é um caminho que o caminhante faça, pelo contrário. É o caminho que torna o caminhante em caminhante, o absorve no vácuo que nasce do abandono.
segunda-feira, 25 de maio de 2009
Poemas do Viandante (16)
16. sinal no deserto
sinal no deserto
ave de sombra
flor que se abre
a voz tão perto
flor que se abre
a voz tão perto
domingo, 24 de maio de 2009
Espanto
Como deixar que o espanto venha e nos arranque da insensata sensatez com que a vida toldou o espírito? O hábito cresce como uma sombra sobre o desconhecido e sob o véu desta sombra o desconhecido toma a aparência do mais conhecido. Na mais intensa luz do conhecimento abre-se secreto o segredo do desconhecido. Todo o conhecimento humano é revelação. Revelar significa mostrar e, ao mesmo tempo, tornar a velar, a ocultar. O espanto não será então a deriva de um espírito inconstante, mas a atenção suprema ao instante, àquele instante em que o divino se revela, se mostra e se oculta, se dá a nós e nós, na insensata preocupação de o capturar, o perdemos.
sexta-feira, 22 de maio de 2009
Poemas do Viandante (15)
15. sombras na viagem
sombras na viagem
paixões de salitre
mar incendiado
se abro os olhos
sombras na viagem
paixões de salitre
mar incendiado
na madrugada
se abro os olhos
tudo vibra
névoa e melancolia
a memória derrotada
a memória derrotada
quinta-feira, 21 de maio de 2009
A voz que cantará
Um passo mais, um desbravar de horizonte, um abrir-se ao desconhecido que há no fundo de si. Conhecemos demasiado e em todo o conhecimento há uma ocultação. Envoltos no orgulho da vitória cognitiva, esquecemos esse fundo obscuro de onde provém toda a luz. Abrir-se ao desconhecido que há em si é mergulhar nas trevas mais densas. Ali esperamos a voz que cantará pela meia-noite.
quarta-feira, 20 de maio de 2009
Poemas do Viandante (14)
14. não fora o medo
não fora o medo
e eu cantaria
a tua face
sombra desmedida
no alvoroço
da eternidade
não fora o medo
e eu cantaria
a tua face
sombra desmedida
no alvoroço
da eternidade
terça-feira, 19 de maio de 2009
Dissipação
Um dia entregue à pura exterioridade, uma quase impossibilidade de conjugar a pessoa em que sou com as exigências que a vida em sociedade impõe. Há muitas formas de calvário, e aquilo que para uns é motivo de prazer e felicidade pode ser para outros o transporte de pesada cruz. Mas agora que medito e olho para a dissipação do dia, descubro aí um passo mais para Aquele que ultrapassa as dores e os prazeres, ou que faz de cada dor e de cada prazer um caminho para Si. Como me atrevo a dizer que a dissipação é dissipação?
segunda-feira, 18 de maio de 2009
Poemas do Viandante (13)
13. sentado no molhe
sentado no molhe
ou viajando
sentado no molhe
ou viajando
de cais em cais
oiço pássaros
conto estrelas
e nessa harmonia
o coração abre-se
oiço pássaros
conto estrelas
e nessa harmonia
o coração abre-se
uma sombra
um castelo
a fonte onde
um castelo
a fonte onde
a dor amanhece
Ser e querer
Deus é um prodígio: Ele é o que Ele quer, / E quer o que Ele é, sem medida nem finalidade (Angelus Silesius, O Viajante Querubínico I, 40). Eis a medida de todo o homem, Deus a perfeita coincidência do ser e do querer, uma coincidência incomensurável e gratuita. Neste espelho descubro os meus limites: não sou aquilo que quero e não quero aquilo que sou. Aqui nasce toda a moral: eu devo ser aquilo que quero. Mas se eu nada quiser e se eu nada for? Quem será em mim e quem em mim quererá?
domingo, 17 de maio de 2009
Morte e ressurreição
Morte e ressurreição, a estranha promessa sobre a qual um mundo foi construído. Mas a nossa estranheza repousa apenas na desatenção com que olhamos a vida. A cada instante vivemos a Sexta-feira Santa e o Domingo de Páscoa, a cada instante a morte é condição de possibilidade da ressurreição. A promessa da ressurreição não nasce, desta forma, de uma possibilidade metafísica, de uma especulação fundada na imaginação, mas da pura atenção ao acontecer. A ressurreição tem uma génese empírica, génese essa que nasce da contemplação do devir temporal. Onde o tempo actua, eu vejo a morte triunfar e no mesmo instante observo a ressurreição que aniquila morte. A ressurreição é a morte da morte, e a vida não mais do que esse perpétuo jogo, que o tempo traz e oculta.
sábado, 16 de maio de 2009
Poemas do Viandante (12)
12. caminho
caminho
como caminham
os mendigos
porta em porta
à espera
à espera
de uma rosa
de um raio de luz
da noite
de um raio de luz
da noite
o que me leve para ti
sexta-feira, 15 de maio de 2009
Saber demais
Saber da luz e ser cego, conhecer o som e ser surdo. Como fugir desta condição onde o não saber cresce dentro de tudo o que se sabe? Não vale a pena o estratagema do velho Sócrates, o só sei que nada sei. Não devia ele um galo a Asclépio? Não, eu sei de mais, todos sabemos demasiado. De tanto sabermos, já nada sabemos. É na luz que cresce a escuridão, é no som que cresce o silêncio. É no oásis que se eleva o deserto. Pudera eu aniquilar todo o meu saber e tornar-me cego e surdo no deserto ardente.
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Poemas do Viandante (11)
11. caem palavras
caem palavras
breves sinais
um retrato
uma cifra
a noite rasurada
a noite rasurada
pelo cais
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