Mergulhar no mar incriado da divindade pura, diz Angelus Silesius. Apenas isso e nada mais do que isso. Mas como entrar nessa água? Saber-nos-emos despir para que o mar não nos confunda? Se se despir completamente, se tirar uma a uma as peças de roupa que o revestem e mascaram, haverá ainda uma distinção entre aquele que mergulha e a água desse mar incriado onde mergulhará? Despir-se de si, abandonar-se, tornar-se vazio; o mar aí estará no puro esplendor do que não tem começo nem fim.
segunda-feira, 11 de maio de 2009
domingo, 10 de maio de 2009
Poemas do Viandante (9)
9. falam poetas
sonham sonhos
falam poetas
do exótico fruto
e cantam
e cantam
a seda do oriente
sonham sonhos
de veludo
e de tâmaras
e de tâmaras
a taça ardente
sábado, 9 de maio de 2009
Da conduta viciosa
Há na conduta viciosa qualquer coisa que merece meditação. Não refiro o vício nas suas dimensões moral e social, ou mesmo na dimensão ética, se distinguimos esta, de natureza mais pessoal, da moral, de natureza mais colectiva ou gregária. A dimensão que merece meditação é a do espírito. No vício, através dos processos de iteração inerentes à conduta viciosa, o espírito fecha-se nesse acto de pura repetição, já sem consciência, de uma conduta marcada pela necessidade. O vício começa então por ser uma prisão onde o espírito aliena a liberdade. Ao alienar a liberdade afasta-se da sua natureza. O vício antes de ser um problema do indivíduo na sua relação consigo e com os outros é um problema do espírito, que assim é negado. Mas por que há essa necessidade de alienar o espírito? Porque este é atraído por uma luz que o ultrapassa e lhe dá ser. Mas essa luz tão obscura e espessa, e ao mesmo tempo excessivamente luminosa, faz o espírito tremer. Perante este "temor e tremor", o espírito foge de si e defende-se na alienação do vício, isto é, da conduta que prende o espírito na terra estranha da necessidade e da pura repetição da nulidade. O vício é o exercício contínuo de fuga perante o único real efectivamente real.
sexta-feira, 8 de maio de 2009
Poemas do Viandante (8)
8. partiram
partiram
entre acenos
e gritos
na madrugada
os barcos iam
leves e serenos
a vida
menos que nada
quinta-feira, 7 de maio de 2009
Poemas do Viandante (7)
7. esse olhar
um rumor
esse olhar
onde pétalas
caíam
caíam
um rumor
se acendia
inclinava-se
inclinava-se
para o meu
sem fronteiras
sem fronteiras
sem melancolia
O mundo
O mundo não é uma ameaça à vida do espírito. Apenas a forma como se está no mundo a ameaça. Não vale a pena fugir para o deserto ou encerrar-se na clausura. Também aí está o mundo. Está, talvez, de uma forma mais aguda e dilacerante. O mundo é a habitação do homem e foi dado a este para que ele aí estivesse e permanecesse não num lugar hostil, mas como se estivesse em sua própria casa. Fugir do mundo é assim fugir da casa que herdámos. O problema que nasce então é o da forma como habitamos aquilo que nos foi dado habitar. A ideia de dádiva é já o primeiro sintoma de como devemos aí estar: cuidar do que nos foi doado. Mas esse cuidar não significa que o espírito se prenda à coisa doada, mas se erga ao doador e, na luz que deste emana, olhar cada gesto com que preenchemos o mundo.
quarta-feira, 6 de maio de 2009
Poemas do Viandante (6)
6. se uma folha breve
se uma folha breve
da árvore se vai
uma estrela treme
e logo logo cai
Estar em vigília
Thomas Merton diz, em Semences de contemplation, que "não esperamos na contemplação, evadir-nos da luta, da angústia ou da dúvida." Procurar o caminho do espírito não é uma estratégia de alienação. Se me ponho a caminho não é para fazer disso um analgésico para as dores que o mundo, ou a vida, ou as ilusões que eu próprio crio. Pôr-se a caminho é manter-se atento e desperto. Em vigília. Estar em vigília é abrir-se para o conflito entre a minha mundanidade e aquilo que está para além dela e nela se oculta. Estar em vigília é aceitar plenamente a angústia da incerteza ou o tormento da dúvida sobre o caminho que se tomou. O caminho do espírito não é uma diminuição da nossa natureza humana. Pelo contrário, é o começo de nos tornarmos verdadeira e completamente humanos.
terça-feira, 5 de maio de 2009
Poemas do Viandante (5)
5. cai a flor
cai a flor
da amendoeira
e nos barcos
e nos barcos
o pavilhão arvorado
se sabes a cor do tempo
desenha uma flor
se sabes a cor do tempo
desenha uma flor
no oceano
da eternidade
segunda-feira, 4 de maio de 2009
Eu não sou eu
Eu não sou eu. Terrível infracção do princípio de contradição. É por aqui que talvez comece o caminho. Ilógico caminho, dir-se-á. Sim, é ilógico o caminho que vai do eu que eu não sou para aquele que, não o sabendo, sou-o. Talvez toda a lógica, essa obra assente na tautologia da identidade e na exclusão da contradição, tenha por finalidade assegurar que esse eu que não sou pareça ter uma existência própria, e possua uma realidade efectiva. Mas a via verdadeira deverá começar pela contradição, pela negação de si, pela experiência de que não sou o eu que estou convicto ser. Não preciso de me afirmar nem de me confirmar. A única coisa que preciso é de desconfirmação. O medo, porém, dessa desconfirmação do meu eu é tanto que logo me agarro a ele e o exibo aos olhos dos outros para que eles o confirmem perante mim. Eu não sou eu, eis o terrível portal que temo passar. Para lá dessa limiar espera-me a escuridão ou a luz mais intensa.
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