quarta-feira, 3 de abril de 2013

Serenidade

Alphonse Osbert - Serenidade (1901)

Se interrogarmos o dicionário sobre o sentido do termo serenidade, ele, como é normal num qualquer dicionário, envia-nos para uma resposta sempre decepcionante. Serenidade é a qualidade ou o estado de estar sereno. Sereno, por seu turno, é um adjectivo que qualifica algo ou alguém como estando calmo, sossegado, tranquilo, ameno, feliz. Perante tão frugal explicação do significado de serenidade, podemos perguntar como foi possível que Martin Heidegger, a dado momento do desenvolvimento do seu percurso filosófico, tivesse posto a serenidade (Gelassenheit) como a essência do pensamento. 

A essência de uma coisa é aquilo que, nessa coisa, faz com que ela seja o que é e não seja outra coisa qualquer. Isto significa que o pensamento é pensamento porque ele é a emanação da serenidade. Só a partir do estado de serenidade podemos pensar. Na formulação heideggeriana há, porém, qualquer coisa de perturbante. O que desencadeia o pensamento não é a dúvida ou o espanto, sintomas de inquietação e desassossego, mas o seu contrário.

A explicação desta posição reside em Heidegger ter abandonado a ideia de um pensamento representativo. Não é já a preocupação com a determinação de uma representação da realidade que se ajuste a esta mesma realidade, mas antes a serenidade de quem escuta o ser porque lhe pertence. Em vez de um pensamento representativo, fundado em conceitos abstractos que procuram a adequar-se ao real, temos um pensamento que medita a partir da escuta daquilo que é.

É nesta meditação que a filosofia se aproxima da poesia e constituem ambas um exercício de escuta e de atenção ao ser. Para escutarmos o rumor do ser, para estarmos atentos à epifania do ser, é necessário que deixemos para trás a inquietação, o desassossego, a perturbação mundana. A serenidade é, desse modo, a condição de possibilidade de toda a verdadeira meditação, seja ela filosófica ou poética. É na serenidade que a meditação filosófica ascende ao estatuto de oração, de uma oração de graças pelo estar na existência e pela escuta do rumor misterioso do ser, que está muito para além das nossas representações da realidade.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Bavardage

Federico Zandomeneghi - Bavardage

Talvez o maior perigo para o espírito seja a bavardage. A tagarelice infinita toma conta da alma e apodera-se do espírito, derramando as suas seduções no sentimento e na vontade. A bavardage é o sintoma de uma impotência, a impotência de nos calarmos, de fazer imperar o silêncio interior. Não há bavardage mais fútil do que aquela que se passa em nós, quando estamos calados. A barvardage não precisa de duas poessoas. Basta uma, basta que nos entreguemos à corrente da consciência e deixemos que as nossas associações criem um universo paralelo, tecido de palavras e imagens, um universo onde a desatenção àquilo que é se torna a característica central. Há quem pense que aqueles que silenciosamente se entregam aos seus pensamentos são pessoas muito espirituais. Um puro equívoco. São apenas pessoas que se distraem do essencial entregues a um universo onde, narcisicamente, tagarelam consigo mesmas, são pessoas em que o ruído e a poluição sonora passou de fora para dentro.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Haikai do viandante (134)

Karl Friedrich Schinkel - The Garden of Sarastro by Moonlight (1815)

Sagrado jardim
onde a lua revela a noite
que acordou em mim.

domingo, 31 de março de 2013

Páscoa e tempo

Caspar David Friedrich - Easter morning (1833)


O mistério pascal, a morte e a ressurreição. Por vezes diz-se "tempo de Páscoa", mas nunca se percebe nessa declaração a tautologia nela presente. Pensamos que há um tempo de Páscoa, outro de Natal, um de Carnaval, ou pensamos em tempos profanos, como aqueles onde, nos dias de hoje, decorre a vida dos homens. Isso ajuda-nos a falhar a compreensão da tautologia. Entre cada instante e a Páscoa cristã há uma semelhança que talvez seja pertubadora. A Páscoa dos cristãos é marcada pela morte de Cristo e a sua ressurreição. Ora esta narrativa plasmada no tempo, entre sexta-feira e domingo de madrugada, permite apreender a essência do instante temporal. Nas Confissões (IX, 14), Agostinho de Hipona, enfrenta o tempo com uma aporia: "Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a perguntar, já não sei." Uma aporia é o sintoma de uma dificuldade, quando não de um mistério.

O que acontece em cada instante é uma morte e uma ressurreição. Na cruz do instante (cruz, pois lá se cruzam passado e futuro) crucifica-se o ser que somos mas que deixamos de ser, morremos para o que fomos, que passa a ser apenas memória e algo passível de rememoração. Mas essa morte é a condição de possibilidade da vida que está a chegar. Morremos e ressuscitamos, instantaneamente. A Páscoa ao sacralizar esse instante de morte e ressurreição dá-lhe uma dimensão absoluta. Na mais relativa das relatividades, o instante, encontramos a dimensão do absoluto. Ao morrermos, ressuscitamos para a eternidade. Esta já está aí, embora sejamos cegos para o que está aí. A Páscoa talvez não seja mais do que um exercício de abertura dos olhos ou de focalização do olhar.

sábado, 30 de março de 2013

Sonetos do Viandante (21)

Raoul Dufy - O jardim abandonado (1913)

21. Todas estas palavras sem sentido

Todas estas palavras sem sentido,
As cores que contigo se dissipam,
O rumor destes tempos de silêncio,
Sábados de Aleluia sem segredos.

Sangra-me solitário coração,
Leva-me as palavras que teria
Para te dizer nesta hora azul,
Velha noite de cânticos selvagens.

Estranhos os caminhos que te esperam,
As casas destelhadas e vazias,
O jardim donde as flores exumadas

Crescem como cadáveres adiados.
Um murmúrio explode na fronteira
Que separa do meu  o teu desejo.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Caminhos do espírito

Gustav Klimt - Beech Forest I (1902)

A beleza da terra juncada pelas folhas mortas é o sinal que traz a certeza de que outras folhas amanhã nascerão. Há um momento na vida em que se aprende a ver na própria morte o sinal da vida triunfante. Quantas vezes é necessário descer ao mais fundo cepticismo para que uma luz nasça no espírito e traga a certeza que a floresta se cobrirá de novo pelo verde mais radioso? Trevas e luz, cepticismo e certeza, são apenas etapas a que o espírito, no caminho que é o seu, deve percorrer na sua livre necessidade ou na sua necessária liberdade.

quinta-feira, 28 de março de 2013

A intenção pura

Carlos Schwartz - Purificación (1998)

Antes da festa da Páscoa, Jesus, sabendo bem que tinha chegado a sua hora da passagem deste mundo para o Pai, Ele, que amara os seus que estavam no mundo, levou o seu amor por eles até ao extremo. O diabo já tinha metido no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, a decisão de o entregar. Enquanto celebravam a ceia, Jesus, sabendo perfeitamente que o Pai tudo lhe pusera nas mãos, e que saíra de Deus e para Deus voltava, levantou-se da mesa, tirou o manto, tomou uma toalha e atou-a à cintura. Depois deitou água na bacia e começou a lavar os pés aos discípulos e a enxugá-los com a toalha que atara à cintura. Chegou, pois, a Simão Pedro. Este disse-lhe: «Senhor, Tu é que me lavas os pés?» Jesus respondeu-lhe: «O que Eu estou a fazer tu não o entendes por agora, mas hás-de compreendê-lo depois.» Disse-lhe Pedro: «Não! Tu nunca me hás-de lavar os pés!» Replicou-lhe Jesus: «Se Eu não te lavar, nada terás a haver comigo.» Disse-lhe, então, Simão Pedro: «Ó Senhor! Não só os pés, mas também as mãos e a cabeça!» Respondeu-lhe Jesus: «Quem tomou banho não precisa de lavar senão os pés, pois está todo limpo. E vós estais limpos, mas não todos.» Ele bem sabia quem o ia entregar; por isso é que lhe disse: 'Nem todos estais limpos'. Depois de lhes ter lavado os pés e de ter posto o manto, voltou a sentar-se à mesa e disse-lhes: «Compreendeis o que vos fiz? Vós chamais-me 'o Mestre' e 'o Senhor', e dizeis bem, porque o sou. Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também. (João 13,1-15) [Comentário de Teresa de Lisieux aqui]

No texto de João cruzam-se, de forma inopinada, duas acções rituais, a ceia e o lava-pés. Pode-se pensar a ceia pascal como simbolizando um ritual de reforço da vida comunitária (embora a simbólica que lhe está associada é de tal maneira poderosa que o seu significado é inesgotável) e o lava-pés como um ritual de purificação, uma purificação que se inscreve já no âmbito de uma purificação anterior (Quem tomou banho não precisa de lavar senão os pés, pois está todo limpo), talvez o baptismo.

Três indicações parecem claras. A persistência de uma comunidade está ligada a uma conduta de purificação contínua. Em segundo lugar, o ritual purificador estabelece uma interacção entre o que purifica e aquele que é purificado. Ninguém se purifica a si mesmo, mas é purificado pelo Outro. Por fim, assistimos a uma subversão da ordem hierárquica presente na comunidade.

A comunidade em causa não é uma comunidade política, embora se inscreva nela. Os textos evangélicos estão cheios de referência à presença obsidiante de uma comunidade mais alargada que a comunidade constituída pelo Mestre e pelos discípulos. Isto não significa que se esteja perante uma contra-comunidade ou uma comunidade alternativa. Significa que a comunidade instituída por Cristo se inscreve na outra como o ideal dessa própria comunidade, como símbolo de uma comunidade justa que vive segundo a verdade.

Esta comunidade que é pela sua realidade símbolo ideal de qualquer comunidade humana exige, no seu compromisso com a justiça moral e a verdade, um processo contínuo de purificação. A justiça e a verdade só se tornam acessíveis pela purificação da intenção. O que é surpreendente é que a intenção pura não é dada a priori, mas resulta de um processo de interacção entre o homem e Deus, na pessoa de Cristo. Não sou eu que me purifico, mas o Cristo que há em mim ou que está presente na comunidade.

Purificar é um serviço que o mais elevado, o que é puro, presta aos homens e, por isso, é Cristo que lava os pés aos discípulos e não o contrário. A hierarquia humana é subvertida por Cristo. O mais elevado serve os menos elevados. O Mestre e Senhor veio para servir, para que os homens fossem purificados da errância que é estar no mundo sujeito às vicissitudes da existência empírica. Curiosamente, esta subversão da normal hierarquia humana tem por finalidade instituir na comunidade uma igualdade entre os seus membros: Ora, se Eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Na verdade, dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também. O poder purificador é transmitido à comunidade na figura do outro. São os outros que me tornam puro e esse é o seu serviço, bem como o meu é purificar os outros. A purificação da intenção de cada um reside na sua capacidade de descentramento e de escuta. Não há intenção pura no solipsismo ou na afirmação narcísica da sua suposta pureza.
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Com o comentário de hoje termina a aventura, pois foi uma verdadeira aventura, de comentar os textos evangélicos propostos pela tradição católica para cada dia da Quaresma, a qual termina também hoje. Como se disse (aqui), os comentários não se inscrevem nem no campo da liturgia nem da teologia, áreas para as quais o comentador não tem qualquer competência. Os comentários inscrevem-se numa leitura espiritual e filosófica de textos capitais da cultura ocidental, numa tentativa de os retirar da recepção habitual, que os foi banalizando e trivializando, e de apreender o espírito que neles sopra e o escândalo que eles, ainda hoje, poderiam provocar. Escândalo para a razão e não para a vida social, pois esta tornou-se estranha aos textos. Estranheza proveniente tanto da indiferença como de certa recepção religiosa que os banaliza e trivializa ao ponto deles, com a sua enorme potência escandalizadora, não provocarem já – falo em termos gerais e não em casos particulares – quaisquer sobressaltos na consciência. Aconteceu com estes textos o mesmo que, segundo a estética de Walter Benjamin, aconteceu com as obras de arte na época da sua reprodutibilidade técnica, perderam a aura. Estes comentários foram uma tentativa – por parte do comentador – de recuperação – pelo menos, para si – dessa aura perdida.

quarta-feira, 27 de março de 2013

A hora que se aproxima

Salvador Dali - A persistência da memória (1931)

Naquele tempo, um dos Doze, chamado Judas Iscariotes, foi ter com os sumos sacerdotes e disse-lhes: «Quanto me dareis, se eu vo-lo entregar?» Eles garantiram-lhe trinta moedas de prata. E, a partir de então, Judas procurava uma oportunidade para entregar Jesus. No primeiro dia da festa dos Ázimos, os discípulos foram ter com Jesus e perguntaram-lhe: «Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?» Ele respondeu: «Ide à cidade, a casa de um certo homem e dizei-lhe: 'O Mestre manda dizer: O meu tempo está próximo; é em tua casa que quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos.’» Os discípulos fizeram como Jesus lhes ordenara e prepararam a Páscoa. Ao cair da tarde, sentou-se à mesa com os Doze. Enquanto comiam, disse: «Em verdade vos digo: Um de vós me há-de entregar.» Profundamente entristecidos, começaram a perguntar-lhe, cada um por sua vez: «Porventura serei eu, Senhor?» Ele respondeu: «O que mete comigo a mão no prato, esse me entregará. O Filho do Homem segue o seu caminho, como está escrito acerca dele; mas ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser entregue. Seria melhor para esse homem não ter nascido!» Judas, o traidor, tomou a palavra e perguntou: «Porventura serei eu, Mestre?» «Tu o disseste» respondeu Jesus. (Mateus 26,14-25) [Comentário de Catarina de Sena aqui]

Em parte, o conteúdo do texto de Mateus foi já comentado aqui e aqui. Não se retornará à questão colocada pelo acto de Judas. Comentar-se-á apenas o estranho versículo 18: Ele respondeu: «Ide à cidade, a casa de um certo homem e dizei-lhe: 'O Mestre manda dizer: O meu tempo está próximo; é em tua casa que quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos.’» A estranheza do versículo deriva da conexão entre “um certo homem” e aquilo que lhe deve ser dito.

As perguntas que surgem são óbvias. Quem será esse tal homem, que o texto apresenta de forma tão indeterminada? A importância desta figura invisível não advém apenas do facto de ser na casa dele que Cristo quer celebrar a Páscoa com os discípulos, embora o facto de ser aí precisamente e não noutro lugar não seja coisa despicienda. Esse alguém parece ter uma capacidade de compreensão do mistério crístico muito acima dos próprios discípulos, pois entende a expressão “o meu tempo está próximo”, a qual funciona como uma verdadeira senha que o leva a abrir a porta para  que seja aí realizada a Última Ceia. Quem é homem? O que sabe ele para que entenda a senha? Que relação tem ele, que não é um dos discípulos, com o próprio Cristo?

Kαιρος μου εγγυς εστιν, esta é a expressão grega do texto recebido que pode ser traduzida por a minha hora aproxima-se. É preciso distinguir entre kairos e cronos. Ambos podem ser traduzidos por tempo. Contudo, cronos remete para um tempo cosmológico que os calendários tentar fixar e dar sentido. Já kairos é o tempo existencial, e a expressão designa a hora certa ou própria de um determinado acontecer. Isto significa que aquela hora que se aproxima não se inscreve tanto na cronologia do cosmos ou da própria história humana, mas é da dimensão da irrupção de um acontecer decisivo que aguarda a hora oportuna.

Quando se diz que esse acontecer que pertence ao kairos não se inscreve na história humana, diz-se algo de muito parcial, diz-se que ele não pertence ao normal decurso dos acontecimentos sociais. Esse acontecer, todavia, acaba por se tornar inaugural dessa mesma história, pois desenha – e a história do Ocidente é a sua comprovação – um antes e um depois, ao qual toda uma civilização acabará por reportar os acontecimentos históricos.

Retorne-se à questão – que parece absolutamente decisiva – sobre a identidade daquele homem a quem os discípulos levaram o recado do mestre. A palavra grega presente no texto é δεῖνα. Ora este termo é usado quando não se especifica quem é a pessoa de quem se fala. Podemos dizer que é um espaço vazio à espera de ser preenchido por alguém com uma dada biografia. Reformule-se a questão: a quem levaram, na cidade, os discípulos  o recado do mestre, a quem foi apresentada a senha? Esse espaço biográfico vazio parece estar vago para ser preenchido com o nome de cada um de nós.

Para além da misteriosa figura histórica do dono da casa onde a Páscoa será comida, é a cada homem que o Mestre anuncia – e a anuncia a cada instante – que a Sua hora se aproxima. A cada momento é apresentada a senha – a minha hora aproxima-se – a cada homem. Esta senha solicita uma determinada resposta: abrir-lhe a casa (essa metáfora do nosso próprio ser) para que o mistério seja consumado no mais fundo e no mais secreto de cada um. Podemos negar, fugir, até trair, mas a hora que se aproxima é também a nossa hora.