41. A FRONTEIRA
a folhagem
batida pelo vento
o chão de areia
a casa vergada
pelo tempo
assim escutava
o sopro a bater
no canavial
a fronteira
que subtraía
de um o outro
coração
segunda-feira, 31 de agosto de 2009
domingo, 30 de agosto de 2009
Despotismo das circunstâncias
Um mês longe dos afazeres habituais, mas mesmo assim submetido ao despotismo das circunstâncias. O sentimento desse despotismo é a medida da ausência de liberdade.
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
Poemas do Viandante (40)
40. GRITO DE SILÊNCIO
um grito
de silêncio
na cortina
do mar
sombra de água
cardume de limos
nuvem trazida
pela maré
um grito
de silêncio
na cortina
do mar
sombra de água
cardume de limos
nuvem trazida
pela maré
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
De Quedar a En-Gaddi
Das tendas de Quedar ao horto de En-Gaddi, será ainda um caminho que se desenha, uma viagem que se abre, uma luz que paira sobre a sombra do mundo? Vai o Viandante das trevas para as trevas, mas nele há a esperança de luz, a súbita presença da tua face, o odor a desprender-se de teus olhos. De Quedar a En-Gaddi é o meu caminho, entre vinhas que não guardaste, entre rebanhos cansados de meio-dia, entre as tuas mãos enegrecidas pelo sol. De noite saí de Quedar, declinava o astro quando me mataste a sede em En-Gaddi.
quarta-feira, 26 de agosto de 2009
Poemas do Viandante (39)
39. TRAIÇÃO
traição
rumor
sopro
ou vento
mancha
de solidão
na árvore
em flor
traição
rumor
sopro
ou vento
mancha
de solidão
na árvore
em flor
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
O devaneio de uma sombra
Mergulhar em si mesmo e esquecer-se de si. Procurar a vida do espírito não é procurar a satisfação dos seus desejos, nem encontrar um caminho para ultrapassar as suas frustrações, ou para realizar o não realizado dos seus projectos. Mergulhar em si para ver os seus desejos, as suas frustrações, os seus projectos como aquilo que eles são: um devaneio de uma sombra. Quem dará importância ao devaneio de uma sombra? Ao aceitar o devaneio enquanto devaneio, poder-se-á ir mais além no caminho, agora mais substancial.
domingo, 23 de agosto de 2009
Poemas do Viandante (38)
38. NÃO PERTENÇO AQUI
sem memória
caminho
olho os goivos
e as flores
que trazes
entre mãos
mas não pertenço aqui
e volto à estrada
esqueci os sinais
e o lugar
onde guardava
os segredos
como se fossem
violetas
sem memória
caminho
olho os goivos
e as flores
que trazes
entre mãos
mas não pertenço aqui
e volto à estrada
esqueci os sinais
e o lugar
onde guardava
os segredos
como se fossem
violetas
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
Da sedução - II
Na sedução há um atrair que é um tornar próximo fundado, ao mesmo tempo, na dinâmica do ficar cativo e iluminado, na tensão entre luz e trevas. Mas esta compreensão da sedução está alicerçada numa outra coisa. Seduzir provém do latim seducere que significa “levar para o lado”. Que experiência encontramos aqui e que poderemos reportar ao sentido hodierno de sedução? Na sedução ecoa a inclinação. Ser levado para o lado é ser inclinado por e para qualquer coisa. A inclinação na ética kantiana tem uma conotação negativa, pois ela resulta sempre de uma submissão à sensibilidade e de uma posição não autónoma. Mas em si mesma a inclinação não pressupõe a natureza daquilo para onde somos inclinados. O que está em jogo, de facto, é que na sedução há uma ruptura com a esfera própria e um transcender-se, transcendência que pode ser captada na ideia de inclinação. Na sedução, ao inclinar-me, sou levado para o lado, mas este lateralizar não implicar um perder-se no caminho. Depende daquilo que me inclina e me faz sair de mim e procurar um caminho. Pode ser mesmo o início do caminhar, pois este implica sempre um deslocar-se de um lado para outro.
domingo, 16 de agosto de 2009
Poemas do Viandante (37)
37. O LUGAR
uma dor
no silêncio da tarde
um caminho
um fogo
apenas o lugar
onde
te aguardo
uma dor
no silêncio da tarde
um caminho
um fogo
apenas o lugar
onde
te aguardo
sábado, 15 de agosto de 2009
Da sedução - I
Poder-se-á pensar a relação entre o caminho e a sedução? Será que caminhamos porque o caminho nos seduz? No cerne do uso corrente, a sedução é vista a partir de uma ambiguidade semântica. Por um lado, há todo o campo da atracção, daquilo que nos atrai e cativa ou deslumbra. Por outro, há o espaço semântico que nos fala do perder o caminho, do desencaminhar (engano, corrupção, suborno, desonra, etc.). Neste último sentido, a sedução é aquilo que nos desencaminha, que faz perder a via, que, em última instância, nos perde. O primeiro sentido de sedução, porém, traz uma outra perspectiva. O seduzir, ao ser um atrair, significa um fazer aproximar, tornar mais próximo. O que nos seduz torna-nos próximos da fonte de sedução. Em todo o seduzir há uma aproximação. O sedutor e o seduzido tornam-se assim o próximo um do outro. Mas o campo semântico do seduzir enquanto atracção é também ele ambíguo. O que atrai é aquilo que nos cativa e nos deslumbra. Dito de outra maneira, o que nos prende e o que nos ilumina. Na aproximação que nos torna próximos há as trevas da prisão e o deslumbramento da luz. A sedução não é puro deslumbramento, mas um jogo onde trevas e luz, cativar e iluminar, subsistem em tensão. A tensão torna-se a energia do caminhar, seja do espírito para Deus, seja de um espírito para outro espírito, ou de um corpo em direcção a outro corpo, que o aguarda.
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
Poemas do Viandante (36)
36. BARCO
o barco
leva-o o mar
em ondas
de espuma
salpicadas de mágoa
pobre
coração cansado
perdido na luz
preso ao naufrágio
o barco
leva-o o mar
em ondas
de espuma
salpicadas de mágoa
pobre
coração cansado
perdido na luz
preso ao naufrágio
O desinteresse do particular
Poderemos ver as coisas como elas são em si mesmas? Se eu abandonar qualquer interesse sobre o que vejo, aquilo que vejo manifestar-se-á no seu ser? Se os interesses particulares introduzem um enviesamento da visão, a sua supressão será o suficiente para que o que se manifesta perante mim se revele em sua verdade? Mas se abandono os interesses particulares, aquilo que chamo de meu, o que restará de mim? E o que restará das coisas que se manifestam? E isto não é um problema teórico da gnoseologia, mas uma questão prática de interesse vital. Caminhar abandonando todo o interesse que me constitui, despir-me de toda a propriedade, preparar-me para a revelação das coisas, não é uma mera questão conceptual, mas o próprio acto de caminhar. A viagem é sempre um agir em direcção aquilo que é. Mas o que é aquilo que é?
segunda-feira, 3 de agosto de 2009
Poemas do Viandante (35)
35. HÁLITO
deixa o hálito
tocar a mão
será nuvem
lâmpada
seara
de violetas
a abrir-se
para o verão
deixa o hálito
tocar a mão
será nuvem
lâmpada
seara
de violetas
a abrir-se
para o verão
sábado, 1 de agosto de 2009
Contemplação
Há uma hora em que nos devemos interrogar sobre o caminho. Não sobre o caminho em si, mas sobre o nosso interesse nesse caminho. Será ele a via que nos diz respeito, ou não passará de uma forma de alienação da consciência. É muito fina a fronteira que separa a autenticidade da representação dessa autenticidade. De certa maneira, ou antes de uma maneira que jamais suspeitou, Marx tinha razão. A religião é um ópio, uma forma de alienação. Mas o fundamental dessa alienação não reside em relações sociais pervertidas, mas na perversão da relação do homem com Deus. A própria contemplação pode ser apenas uma máscara para enfeitar e reforçar a egoidade, uma espécie de coroa de glória e um passaporte para a distinção e a diferenciação. Aqui a distinção e a diferenciação são formas de afirmação perante os outros egos, o sublinhar e o reforçar da nossa crença na existência do nosso. A contemplação pode não ser mais do que o mero jogo onde se representa o papel de contemplativo, uma forma subtil de alienação do si mais fundamental que nos habita e um exercício de puro egoísmo.
sexta-feira, 31 de julho de 2009
Poemas do Viandante (34)
34. INCLINAÇÃO
não sei
se olho
se canto
a luz vacila
escuto
e tudo para ti
é senda
caminho
feroz inclinação
não sei
se olho
se canto
a luz vacila
escuto
e tudo para ti
é senda
caminho
feroz inclinação
quinta-feira, 30 de julho de 2009
O mistério do amor
O mistério do amor. Não me refiro ao amor divino, mas ao amor humano, ao amor erótico. O amor divino é uma metáfora humana, demasiado humana, para dar a pensar e a viver a atracção que o espírito sente pela fonte da existência. Mas esta metafórica tem o condão de ocultar a dificuldade de se permanecer perante o próprio amor humano, daquele que serve de termo comparativo para sustentar a metáfora do amor divino. O facto é que há uma obscuridade a envolver o próprio amor humano, como se o amor erótico fosse uma metáfora assente num termo comparativo desconhecido. Quase poderíamos dizer que o amor humano é mais misterioso que o divino. Se quisermos falar da experiência erótica, apenas a dimensão equívoca da metáfora permite o discurso. Um discurso puramente denotativo sobre eros é de tal insipidez que não há amante que nele se reconheça. A presença de um corpo a outro, o jogo dos sentidos, a tensão do desejo, a desordem dos corpos, o fluir hormonal, a atracção dos espíritos, todos esses movimentos que a Física, a Química, a Biologia, a Anatomia e a Psicologia podem descrever, são enquanto tais insignificantes. A sua significância emerge através do poder evocador da palavra, e a palavra só é evocadora se ela se desconvoca da denotação e aceita o desafio de dizer o não dito, o inédito, o não dizível. Dizer o não-dizível, uma impossibilidade lógica, é a face discursiva do jogo erótico, também ele habitado no seu cerne por uma impossibilidade. É este não-possível que é a sua condição de possibilidade. Só o impossível torna possível o amor. A questão remanescente será: mas que impossível é este?
quarta-feira, 22 de julho de 2009
Poemas do Viandante (33)
33. RECOMEÇO
na sombra
passos
oiço-os
ao entardecer
e recomeço
o caminho
volto
a nascer
na sombra
passos
oiço-os
ao entardecer
e recomeço
o caminho
volto
a nascer
Da humilhação
Ter a obrigação de fazer uma coisa absolutamente estúpida é uma prova para a nossa humildade. Pensamos que aquilo que em nós resiste é a nossa inteligência, a razão que acompanha os nossos pontos de vista. Tudo isso é reconfortante para o nosso pequeno ego, mas a verdade é outra. O que resiste em nós é o orgulho, o ego próprio inflacionado perante a estupidez do ego que nos superintende. O que fala em nós nessa resistência é a falta de humildade. É humilhante ter de fazer coisas estúpidas só porque outros, que têm poder para tal, no-lo impõem. Mas essa é uma oportunidade para nos desprendermos de nós mesmos, para nos desligarmos das nossas considerações sobre a natureza superior da nossa pequena máscara e aceitar aquilo que Ele nos envia.
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segunda-feira, 13 de julho de 2009
sábado, 11 de julho de 2009
Caminhos
Como poderemos aprender o caminho? Caminhando. Nesse estar aí aprendemos a direcção. Isso não significa que não nos equivoquemos, que não soframos derrotas e humilhações. Significa apenas que os equívocos, as derrotas e as humilhações fazem parte do caminho e dirigem-nos na direcção que espera por nós. Um retrocesso nunca é apenas um retrocesso, um engano na encruzilhada é um passo na direcção certa. Todos os caminhos fazem parte do caminho e seja qual for a estrada que escolhamos O que espera por nós lá se encontra à nossa espera.
quinta-feira, 9 de julho de 2009
Poemas do Viandante (31)
31. CONSTELAÇÕES DE AVES
constelações de aves
acendem-se
nos céus
e na terra
os astros
são fogo
jamais ardeu
constelações de aves
acendem-se
nos céus
e na terra
os astros
são fogo
jamais ardeu
quarta-feira, 8 de julho de 2009
Seja feita a Vossa vontade
Escreve Eckhart."Deus deseja que em todas as coisas renunciemos à nossa vontade." O que significa, porém, essa renúncia? Antes de mais, significa a renúncia ao particular, ao subjectivo, ao perspectivístico, ao relativo. Desapossar-se de si, renunciar à vontade própria, significa, então abrir-se ao que não tem limites, ao que não é particular, ao universal e ao absoluto. Isso não pode ser compreendido, todavia, como uma afirmação da natureza absoluta da criatura, mas apenas a afirmação da sua possibilidade de participar naquilo que a ultrapassa. A vontade própria encerra-nos na pequenez da nossa propriedade. Renunciar a ela é abrir-se aquilo que lhe é incomensurável. A vontade própria é uma prisão. Renunciar a ela é renunciar à servidão. Seja feita a Vossa vontade, foi isto que o Cristo veio dizer aos homens. Dito de outra maneira: sede livres.
terça-feira, 30 de junho de 2009
Poemas do Viandante (30)
30. SEGREDO
um sussurro
sopra
entre mãos
e um segredo
desprende-se
da terra
em aluvião
um sussurro
sopra
entre mãos
e um segredo
desprende-se
da terra
em aluvião
segunda-feira, 29 de junho de 2009
Luz e trevas
"A luz brilha nas trevas, e as trevas não a compreenderam." Como poderemos compreender a luz se nos habituámos desde o nascimento às trevas? E todos os passos, por luminosos que pareçam, são ainda um adentrar nas trevas. Mas as trevas não são apenas a ausência de luz, elas são o lugar onde a luz brilha e ao brilhar tão intensamente torna em trevas aquilo onde brilha. Adentrar nas trevas é ainda um caminho para a luz, porventura o único caminho que resta.
sexta-feira, 26 de junho de 2009
Poemas do Viandante (29)
29. A ROSA
deixo a palavra
pedra abandonada
ao vento
e canto-te
antes de a rosa
abrir
desfolhada
deixo a palavra
pedra abandonada
ao vento
e canto-te
antes de a rosa
abrir
desfolhada
sábado, 20 de junho de 2009
Poemas do Viandante (28)
28. SE
se o anjo
fala na noite
e nas trevas
olha o coração
como respirar
o frio do inverno
o terror
duma manhã
de verão
se o anjo
fala na noite
e nas trevas
olha o coração
como respirar
o frio do inverno
o terror
duma manhã
de verão
sexta-feira, 19 de junho de 2009
Criar e ser criado
"O poeta entra em si mesmo para criar. O contemplativo entre em Deus para ser criado." (Th. Merton) Se o caminho para entrar em Deus for o de entrar em si mesmo, então o acto de criar e o de ser criado confundem-se e o artista criador não é mais do que criação, imagem e semelhança daquele que o cria. E aqui podemos surpreender um sentido novo da mimésis grega. A mimésis, a imitação, não residiria essencialmente na criação de uma cópia da realidade natural, mas na imitação do gesto criador. O artista cria à imagem e semelhança do Criador, desse Criador que continuamente me cria. Em arte, nomeadamente em poesia, a mimésis do real empírico é absolutamente secundária relativamente a esse mimésis mais originária, a da identificação do artista com o Deus criador. Sendo assim, todo o acto artístico tem uma dimensão litúrgica na qual o artista imita ritualmente o gesto criador de Deus, O celebra e O cultua. Por isso, não há arte profana. Toda a verdadeira arte pertence ao domínio do sagrado, tenha ou não o artista consciência disso.
quarta-feira, 17 de junho de 2009
Poemas do Viandante (27)
27. VELHA CANÇÃO
sem medida
quem tudo mede
uma vara
uma sombra
a palavra de gelo
na velha canção
oiço-a crepitar
sem medida
quem tudo mede
uma vara
uma sombra
a palavra de gelo
na velha canção
oiço-a crepitar
terça-feira, 16 de junho de 2009
Poemas do Viandante (26)
26. OIÇO-OS CANTAR
pássaros
no colmo
do telhado
oiço-os cantar
no sono leve
e frio
se adormecem
ao luar
pássaros
no colmo
do telhado
oiço-os cantar
no sono leve
e frio
se adormecem
ao luar
A maior ilusão
A maior ilusão é aquela que reside na confiança de que as coisas são como nós julgamos que são. De um momento para outro, tudo rui e a realidade mostra-se totalmente outra, surpreendente. Como poderemos nós guiar-nos pela ânsia da estabilidade, se mesmo o que temos por mais certo não é senão incerto. Abrir o espírito para a incerteza do mundo e deixar vir essa incerteza no seu ser incerto. Nada esperar, nada desejar, mas aceitar aquilo que for enviado.
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