terça-feira, 27 de agosto de 2024

Sonetos de Verão (9)

Celestino Alves, A Paisagem de Sines, 1964 (Gulbenkian)

Já declina o Estio, mas o calor,

insensato, ainda atormenta

a cidade, os homens e as aves.

Um caminho sem sol, alguém suplica.

 

Sob a tília espero o tempo fresco,

a passagem do vento que escapa

da montanha e rasga o horizonte

para a noite trazer suave bênção.

 

Tudo passa, na pressa de chegar

ao destino inscrito no silêncio

que habita o fundo de cada coisa.

 

Nos fios, pássaros negros aguardam

o sinal da partida para o Sul,

e eu oiço na morte a luz da vida.

 

Agosto de 2024


sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Sonetos de Verão (8)

João Queiroz, sem título, 2005 (Gulbenkian)

A ardência do dia cobre de fumo

o silêncio sombrio das avenidas,

o restolho das ruas rudes e sujas,

o espaço aberto destas praças.

 

Cavaleiros sem nome regressaram,

trazem velhas memórias fabricadas

nos rumores do tempo e nos fogos

pela morte feroz então acesos.

 

A cidade descobre-se perdida

num Verão insensato, num delíquio

de donzela cativa na inocência.

 

As muralhas da velha praça-forte

zumbem, pálidas, negras pelos anos.

Cavaleiros a morte aguardam.

 

Agosto de 2024

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Haikai urbano (75)

Bernard Plossu, Lisboa 88, 1988 (Gulbenkian)

Borboletas pálidas

nos recantos da cidade.

O peso da noite.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Signo sinal 20. Elementos

Carlos Calvet, Os 4 elementos, 1959 (Gulbenkian)
Onde existem esses quatro elementos que os antigos viam na origem de tudo? Água, terra, ar e fogo são sinais e símbolos, e como todos os sinais e todos os símbolos habitam em nós. Com eles, os homens construíram imagens do mundo e, depois, entraram nelas como se entrassem na sua própria casa.


sábado, 17 de agosto de 2024

Impressões 120. Cidade

Carlos Botelho, Ritmos de Lisboa, 1957
Uma cidade não é mais do que um conjunto de traços, leves impressões que se inscrevem na matéria do mundo, onduladas pelo ritmo do vento, pelo timbre de avenidas e praças, pelo eco do silêncio no coração de quem passa.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Sonetos de Verão (7)

Jenner Augusto, Barcos na praia (Gulbenkian)

Oiço o silvo do vento de Verão

no grasnar das gaivotas pela praia.

Verdes águas enrolam-se em ondas

de espuma rosada pela areia.

 

Passeante na pálida manhã,

solitário amante do silêncio,

no murmúrio do mar escuto o canto

das sereias, a voz azul dos céus.

 

Assim vou, meditando no segredo

encoberto na lenta luz das águas,

no veloz vento vindo com os barcos.

 

Um clamor na manhã abre o mundo

ao sigilo estático das mãos,

ao pulsar inquieto do amor.

 

Agosto de 2024


terça-feira, 13 de agosto de 2024

Micronarrativa (68) Sombra

Lee Friedlander, New York city, 1966

Absorto, caminha pela cidade. Enfrenta o desconhecido, abre o caminho entre a multidão, evita o turbilhão do tráfego. Não sente o corpo, pois o pensamento está concentrado em si mesmo, no desejo que lhe rumina na alma, na expectativa de chegar a onde o esperam, na esperança de encontrar a sombra que perdeu ao sair de casa.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Meditação breve (197) Realidade

Rui Filipe, Baixa-mar, 1973 (Gulbenkian)

A realidade de uma coisa diminui à medida que dela nos afastamos, torna-se difusa até desaparece do horizonte. Este é um pensamento trazido pelo hábito. Contudo, há uma outra experiência. Quanto mais nos aproximamos de uma coisa, menos a vemos. Podemos pensar então que a realidade de uma coisa aumenta conforme nos afastamos dela e, quando essa coisa desaparece do nosso horizonte e se torna em nada, devemos aceitar que é nesse nada que reside a sua realidade.

sábado, 10 de agosto de 2024

Sonetos de Verão (6)

Ana Maria Botelho, Le couple et l'instrument, 1980 (Gulbenkian)

Corpos velhos ao Sol do Verão cismam

em silêncio, meditam cruéis crimes.

A idade arrasta-os no rio

da memória, no mar do abandono.

 

As palavras usadas são andrajos,

roupas gastas, metáforas extintas

no vulcão desta língua, no fedor

com que corpos usados inda falam.

 

Cada crime pensado abre ruas

onde passam memórias arrastadas

na corrente das águas quase mudas.

 

Andrajosas metáforas proclamam

o retorno dos mortos revestidos

por antigas palavras rasuradas.

 

Agosto de 2024


quinta-feira, 8 de agosto de 2024

O sal do silêncio (116)

Marcelle Cahn, sem título, 1964 (Gulbenkian)

A lenta formação da paisagem faz-se sob o império do silêncio. O artista projecta a orografia do território, desenha a bacia hidrográfica, planta em pensamento uma floresta arcaica, onde inscreve algumas clareiras para que a luz solar chame, pela percussão do calor, o sal da vida animal.

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Pintura e haikus (41)

António Areal, sem título, 1961 (Gulbenkian)

Restos de memórias

flutuam num mar vermelho.

Mundos esquecidos.

domingo, 4 de agosto de 2024

Câmara discreta (22)

W. Eugene Smith, Steelworker, 1955

A câmara mostra a máscara negra que cobre o rosto daquele que trabalha o ferro, como se o operar sobre a matéria fosse um segredo que exigisse o velamento do operador, o mago que gera metamorfoses no mundo, o torna outro, abrindo caminhos insuspeitos, cheios de promessas, plenos de perigos. A face de quem tem tais poderes deve estar velada, para que o segredo que a habita não resplandeça nela e contamine quem a olhar, enchendo os incautos de pavores inúteis e de esperanças vãs.

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Sonetos de Verão (5)

Pierre de Chevannes, Jóvenes al borde del mar, 1879

Uma sombra na tarde de Verão,

uma mancha nas noites de Agosto.

Dias deslizam nos dias, o sol vai, vem,

inquieto, perdido no horizonte.

 

Relva verde desdobra-se no olhar.

Onde eram cabanas acanhadas,

crescem casas de pedra, luz e sal.

Na memória, apenas sol e mar.

 

A miragem das horas carregadas

com o peso da água, com a cal

das manhãs que de súbito se calam.

 

Cativei desses dias os rumores.

Raparigas despidas caminhavam

na rudeza do sol, presas ao mar.

 

Agosto de 2024


terça-feira, 30 de julho de 2024

A memória do ar (32)

Antoine Chintreuil, The Rain Shower, c. 1868

A chuva é uma anamnese líquida do ar. Desce dos céus e toca a terra com a promessa dos sonhos, o desejo dos frutos e o querer secreto que anima as forças que mantém o universo no caminho esboçado no início dos tempos. A chuva é o ar liquefeito na memória da natureza.

domingo, 28 de julho de 2024

Geometrias de fogo (32)

Fred Kradolfer, sem título, 1930 (Gulbenkian)

O fogo solar reparte-se na Terra, usa geometrias ocasionais para levar a luz e a sombra ao lugares em que os homens as esperam. Cansado, recolhe-se no ilimitado dos céus e oculto distribui as trevas como quem descansa e respira lentamente, até que, recomposto, volte à tarefa que um fado inexorável, na mecânica do universo, lhe destinou.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Sonetos de Verão (4)

José de Almada Negreiros, sem título, 1941 (Gulbenkian)

 Do Verão, saberemos nós a cor,

a certeza das tardes e das noites?

Saberemos da Lua a aparência,

quando Julho progride na jornada?

 

Estações são mistérios ilegíveis,

pelos anjos escritas num caderno

onde a luz resplandece e nos cega,

onde a noite cintila no silêncio.

 

Raparigas perpassam nos meus olhos,

trazem vestes de Estios muito antigos,

eram jovens e belas na memória,

 

eram filhas dum tempo onde Julho

refulgia nos seus olhos e ardia

na secreta paixão nos meus velada.

 

Julho de 2024

quarta-feira, 24 de julho de 2024

A sombra da água (32)

Henry Peach Robinson, Atlanta, 1896

A água da memória desce como uma sombra. Envolve mundos que desapareceram, destinos consumados, a certeza dos desejos triunfantes e dos que se perderam na mecânica dos corpos. Se abrirmos a sombra, como quem abre um embrulho delicado, descobriremos os mundos que vivem no silêncio dos genes herdados na hora em que fomos concebidos.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

O Espírito da Terra (32)

Nicolaus Schindler, Puszta-Motiv, 1908

A planura com que por vezes a terra se oferece aos homens é o sinal da luz que a habita. Ali, vibra a corda do refúgio e ecoa a voz de um chamamento, aquele que traz os homens da poeira do nada ao fogo da existência e que, extinto o incêndio, oferece a morada para o  cansaço do corpo.

sábado, 20 de julho de 2024

Sonetos de Verão (3)

Ana Hatherly, sem título, 1971 (Gulbenkian)

O livor destes dias faz de Julho

o mais ímpio dos meses de Verão.

Claras nuvens no céu são o prenúncio

do jardim onde as horas se recolhem.

 

Escondeu-se o Sol e dardejou

sem clemência os homens impudentes.

Vozes clamam ao longe, fatigadas,

rasgam turvos silêncios em sua dor.

 

Escondi o meu corpo na caverna

onde moram os sonhos e dormi,

esquecido dos dardos invencíveis.

 

É o áspero rumo que me leva

desta terra sem ruas, sem rumores,

ao local onde morre o Sol no mar.

 

Julho de 2024


domingo, 14 de julho de 2024

Signo sinal 19. Diluição

Rui Filipe, Baixa-Mar, 1973 (Gulbenkian) 

Tudo é sinal, a indicação de uma outra coisa, a promessa do que está ausente, indício do que passou. E nessa árdua tarefa de assinalar, o sinal dilui-se, perde a sua materialidade e flui como a água do mar batida pelo vento, transformada em ondas que trazem e levam as secretas mensagens que o oceano estende pelo vazio dos grandes areais.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Impressões 119. Self

João Dixo, Quem pinta, pinta-se, 1978 (Gulbenkian)

Sou a impressão de mim próprio, e nessa impressão está tudo o que sou, pois o self não mais do que a impressão que o impressor imprimiu na clareira do mundo.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Haikai do Viandante (437)

Karl Schmidt-Rottluff, Lua de Agosto, 1963

As luas de Agosto

são promessas luminosas.

Nas trevas a cor.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Micronarrativa (67) Cegos

Júlio Pomar, Cegos de Madrid, 1957-59 (Gulbenkian)

Formam uma irmandade e caminham nas ruas da grande cidade. Une-os a escuridão, o desconhecimento das cores, a impossibilidade de destrinçar luz, sombras e trevas. Move-os a esperança de, presos à sua fraternidade privada da cintilação do mundo, encontrem nas ruas a pedra de ouro que lhes trará a luz mais pura que habita no fundo de cada um.

sábado, 6 de julho de 2024

Sonetos de Verão (2)

António Dacosta, Sonho de Fernando Pessoa debaixo de uma latada numa tarde de Verão, 1982 (Gulbenkian)

 O tormento dos dias de Verão

caiu lesto nas sombras da cidade.

No silêncio das tardes resplandece

luminoso o prenúncio da revolta.

 

Tão pesado tributo enlouquece

quem do Norte partiu em busca plácida

de outras terras sem gelo, de eternas

noites cálidas, ricas em ardor.

 

Ocultaram-se os homens no jardim

onde o tempo ameno abre os braços

e mitiga a revolta dos perdidos

 

no frio fogo do Sul, na vã loucura

de esperar salvação nesses lugares

onde tudo se perde sem perdão.

 

Julho de 2024


quinta-feira, 4 de julho de 2024

O sal do silêncio (115)

Manuel Botelho, Areia e Sal - Igrejas Silenciosas, 1987 (Gulbenkian)

Não é a igreja que produz o silêncio, mas é este  que se transforma em local de culto. Protege-se com a couraça de paredes e telhados, curva-se diante do altar para que a voz do que que não tem voz possa ecoar e tornar-se o sal do mundo.

sábado, 29 de junho de 2024

Meditação breve (196) Mão

Henry Moore, The Artist's Hand III, 1973 (Gulbenkian)

A mão ainda não é o gesto, mas um começo, o sinal de uma promessa, o marco de uma esperança. Com ela, libertamo-nos da subjugação aos elementos da natureza e tornamo-nos os cuidadores do jardim, os que criam a expectativa de uma ordem na desordem espontânea de tudo o que é. Com ela, também trazemos a ameaça de apropriação daquilo que não é propriedade de ninguém e o anúncio de um caos mais terrível do que a espontânea desordem original, pois onde habita a promessa também dorme o desacordo e onde vive a esperança também se esconde o desespero.

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Sonetos de Verão (1)

 León Kossoff, Demolition of the Old House, Dalston Junction, Summer, 1974

Esqueci os amores de Verão.

Esqueci vendavais e noites quentes.

No oceano está presa a memória

dos incêndios bravios da vida rude.


Oiço o leve bater das horas idas

na janela aberta destes dias,

casa branca agora desprezada,

onde ardia o fogo da esperança.


Oiço a noite rugir na rua vazia

onde os passos que dei ainda ecoam

como sinos feridos na montanha.


Animal sem morada nem destino,

animal sem a luz de cada dia,

abro as mãos e no vento oiço o Estio.


Junho de 2024

terça-feira, 25 de junho de 2024

A memória do ar (31)

Yale Joel, People and vehicles moving about city shrouded in fog. Paris, 1948
A neblina é a memória viscosa do ar, o resto do seu corpo que, um dia, foi sólido, mais tarde tornou-se líquido, até chegar à indecisão a que se dá o estranho nome de estado gasoso. Por vezes, a verruma da melancolia invade os ares e, se o vento não interfere com a sua vontade inquieta, eles entregam-se ao húmido exercício da reminiscência.

domingo, 23 de junho de 2024

Geometrias de fogo (31)

Hubert Robert, Roman Ruins, 1773

Por detrás da ruína do mundo, ergue-se o fogo inquieto do espírito. Quando tudo se reduz a cinzas pelo deambular das labaredas, pela desmedida do incêndio, sobe do chão calcinado aquilo que nunca foi visto, nem dito, nem pensado. Então, o espírito traça novas geometrias, descobre um espaço inédito e inventa outro tempo mais próximo da eternidade.

terça-feira, 18 de junho de 2024

Sonetos de Primavera (12)

Ernst Ludwig Kirchner, Fehmarn House, 1908

Partirás, Primavera, apressada.

O teu noivo espera-te na casa

de onde não voltarás para rever

a luz do dia e o frio negro da noite.

 

As flores que trouxeste definharam.

Nos rios, bravias águas adormecem.

São corcéis sem fulgor, velhos amantes

perdidos no cansaço do amor.

 

Jamais retornarás, mesmo se o tempo

trouxer nova vitória sobre a noite

do negro Inverno que virá.

 

Fantasia e fulgor, novos amantes

encontrarão a luz de um desejo

que outra Primavera soltará.


Junho de 2024