Tomás Mateus, Pintura, 1966 (Gulbenkian) |
Dividir o espaço,
imaginar as cidades,
cerzir luz e cor.
Juan Antonio Aguirre, Bailarinas, 1990 |
Ed van der Elsken, Self-portrait with Ata Kandó, 1953 |
Joaquim Rodrigo, Trás-os-Montes, 1964 (Gulbenkian) |
Victor Palla, sem título, 1990 (Gulbenkian) |
Mário de Oliveira, Lucalena de las Torres, 1967 (Gulbenkian) |
a palavra e
a revolta de Inverno.
As estrelas
rodopiam ao vento,
astros mudos
no silêncio da sombra
Apressado,
veio Março tomado
pelo canto
dos antigos profetas.
Folhas
mortas, castas, caem das árvores,
sussurrando sortilégios
e espantos.
Pelas frias
avenidas de Inverno,
do silêncio
soletrado virão
inocentes as
palavras de sal.
Auspícios
descem de bocas caladas.
Os profetas
são agora estátuas
nos jardins onde
os mortos se calam.
Março de 2024
Ferdinand Olivier, Procession of Pilgrims in the Forest, 1814 |
Fernando Calhau, sem título #441, 1980 (Gulbenkian) |
José Dominguez Alvarez, sem título (Aspecto de rua com figuras) (Gulbenkian) |
A tristeza
destes dias de frio,
sob um sol
sem o motim do Verão.
Nostalgia
dos murmúrios da infância,
desventura
duma vida exígua.
Devoradas
pelo tempo, as horas
rodopiam
perturbadas sem parar.
Turbilhão
feito de ócio e dor,
a penumbra
dum sonoro segredo.
A infância
deambula nos dedos
com que
colho a nostalgia da vida,
tão exígua
na ventura que houve.
Eis o
vórtice onde tudo se perde,
turbilhão,
dor infinita das horas,
onde canto
em secreto silêncio.
Fevereiro de
2024
João Dixo, Quem pinta, pinta-se, 1978 (Gulbenkian) |
Maria Helena Vieira da Silva, L'air du vent, 1966 (Gulbenkian) |
Muirhead Bone, View of Rome at Sunset, c. 1912 |
A paisagem
assombrada da tarde,
vendaval
vindo no voo do vento,
as mulheres
de cabelos revoltos,
os cavalos
delicados da noite.
Vou, de
Inverno em Inverno, sombrio,
faço luz na
escuridão da caverna,
onde oiço o
ecoar da memória
afogada no
silêncio do tempo.
Cavaleiro
sem cavalo na noite.
É a hora de
rasgar o caminho
na paisagem fria
e negra de névoa.
Sou o eco
que rasura a memória.
Sou a luz
branca da escura caverna.
Sou o tempo
e a sombra de Inverno.
Anton Zwengauer, Landscape with Deer at Sunset, 1847 |
Piotr Mondrian, Farm with Trees and Water, 1906 |
José Dominguez Alvarez, Paisagem de Montanha (Gulbenkian) |
Sombras nos caminhos
são símbolos na montanha.
Sangue de Outono.
Rockwell Kent, Admiralty Inlet, 1922 |
A camisa
desgastada de Invernos
é um trapo
enrolado nas mãos,
é o corpo
pelo tempo rasgado,
uma mancha
que declina sem luz.
Revestido de
matéria efémera,
o espírito
balança ao relento.
Vai e vem,
preso ao fulgor do que passa,
tão perdido
no delíquio dos dias.
Atormentam-me
as sombras esquivas
declinadas
pela luz deste Inverno,
a camisa
corrompida do corpo.
Se o sol resplandece
nas montanhas,
o espírito
encontra o caminho
para a casa
que ao longe o espera.
Carlos Carneiro, sem título, 1970 (Gulbenkian) |
Sérvulo Esmeraldo, Vibrations, 1963 (Gulbenkian) |
Camille Pissarro, Morning, Sunshine Effect Winter, 1895 |
folhas
mortas dum Inverno sem luz.
Ergo ágil a
candeia do silêncio
sobre a
noite rasurada do mundo.
Oiço passos
na morada do homem.
Oiço
cânticos no escuro das ruas.
Um segredo
no passar de quem parte.
Um enigma
desenhado nas vozes.
A substância
da viagem cintila
no jardim da
noite húmida e cândida,
no altar
onde o Inverno se entrega.
Ó as vozes
de quem parte sem rumo.
Ó os passos
de quem canta calado.
Nem
segredos, nem enigmas. Silêncio.
Fevereiro de 2024
João Navarro Hogan, Paisagem, 1939 (Gulbenkian) |
Vincent Van Gogh, Olive Trees with Yellow Sky and Sun, 1889 |
Philip Guston, Winter, 1963 |
na floresta
onde as pétalas caem
sobre o chão
negro dos dias passados,
sobre o
leito onde dorme o futuro.
As sibilas
dançam, cantam os hinos
macerados pelas
chuvas arcaicas.
Os segredos
de outrora desvelam-se
no rumor da
boca fria dos profetas.
Natureza, a
verdade recobre
as tuas
horas com um manto de pétalas
renascidas
no desvão da floresta.
O silêncio,
um presságio arcaico
dança imóvel
no segredo da noite.
Uma rosa de
sal sangra nos céus.
Janeiro
de 2024
Ricardo da Cruz-Filipe, Mar n.º 1, 1983 (Gulbenkian) |
João Paulo, Desenho I, 1962 (Gulbenkian) |
Cândido Costa Pinto, sem título, 1945 (Gulbenkian) |
Muirhead Bone, View of Rome at Sunset, c. 1912 |
sobre a
sombra do dia, trazem fogo
ao amor das
coisas raras e luz
à morada
fria e rude dos deuses.
Os poentes
são mistérios, promessas
do espírito,
a água lustral
onde,
ávidos, lavamos os corpos
e os abrimos
ao orvalho da noite.
No fulgor de
cada hora crepita
um
crepúsculo na sombra dos deuses,
um amor na
invernia deste mundo.
Toco o corpo
que se abre ao poente.
No orvalho
de ardor e mistério,
sinto a água
que na noite me espera.
Janeiro de 2024
Noronha da Costa, Pôr do Sol (Gulbenkian) |