sábado, 8 de julho de 2023

No limiar (7)

Ana Hatherly, O Homem Invisível, 2001

Uma fossa abissal separa o reino do visível do império do invisível. Neste, os seres não são apenas possibilidades, mas realidades destituídas de corpo. Puras inteligências, eles têm também memória e imaginação, mas não das coisas e dos mundo corpóreos. Recordam as aventuras do espírito e imaginam realidades vivas que, aos nossos olhos, parecerão puras abstracções. Quando se cansam dessa existência sem contaminação, saltam sobre o abismo e chegam ao reino da visibilidade. Na viagem, ganham corpo, escondem no mais íntimo de si o império em que viveram e abrem-se ao reino do contágio e da infecção.
 

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Sulcos de Verão 3

Maurice Denis, Paradise, 1912

Envolto em fogo de artifício,

também o Verão foi trazido

pela barcaça do destino.

 

Juiz rude, sem piedade,

distribui pela terra frágil

as suas sentenças ardentes.

 

Sonho sombras e solidão,

a vinda de um Outono eterno,

luz do paraíso perdido.

 

Julho de 2023

terça-feira, 4 de julho de 2023

Geometrias de fogo (16)

Willem De Kooning, Fire Island, 1946

Não há ilhas mais imprecisas que as de fogo. Ao arder, queimam os contornos e alargam as fronteiras. Expandem-se em geometrias incertas, submissas à vontade do vento e aos desígnios das labaredas. Crescem num ruído de tormenta e apagam-se num silêncio de cinzas.

domingo, 2 de julho de 2023

O sal do silêncio (101)

Weegee, Sleeping at the Bar, 1939

Quando os sonhos são urgentes, qualquer lugar serve para que, rasgando o ruído com o arado do silêncio, chegue o sono, não aquele que retempera as forças e abre o corpo para a azáfama de cada dia, mas o que abre o espírito ao sal da imaginação. 

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Sulcos de Verão 2

Eusebio Sempere, Verano, 1965

O ardor do fogo cintila,

mácula na pele rasgada

pelo dardejar dos incêndios.

 

Os corpos rastejam na sombra,

pedem a clemência da água,

o vento frio vindo do Norte.

 

Junho passa inflamado e rude

pelas ruas vazias de vida,

pelas almas ébrias de sonhos.

 

Junho de 2023

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Sulcos de Verão 1

Edvard Munch, Día de verano, 1904-1908

Como uma velha assombração

chega a verruma do Estio

cingida na luz do silêncio.

 

Os dias abrem-se em sonhos,

promessas de glória nos mares,

o olhar perdido na névoa.

 

Sento-me na sombra da tília,

oiço no rumor da memória

o verde Verão da infância.

 

Junho de 2023
 

segunda-feira, 19 de junho de 2023

A memória do ar (15)

Imogen Cunningham, Dream Walking, 1968
Esqueça-se a solidez dos corpos, com a sua submissão aos imperativos da gravidade. Esqueça-se o desenho da sua figura, com o sublinhar espesso dos contornos. Deixemos que os sonhos se sonhem em corpos feitos de ar, para que a leveza do desejo se possa expandir do centro da terra para o universo sem fim. 

sábado, 17 de junho de 2023

Impressões 111. Na lagoa

Heinrich Kühn, Abend In Der Lagune, 1895

Ainda não é uma noite de bruma, nem a glória das águas se eleva para os céus onde, vigilantes e eternos, os astros observam as lentas metamorfoses da vida na terra. Dois veleiros cruzam a lagoa, procuram porto de abrigo, na esperança de encontrar um lugar onde o lume cintile e envolva os corações com o manto do calor. É como se um sonho se inscrevesse na paisagem para a preencher de impressões esquivas, toldadas pelo marulhar das águas, e segredos habitados por uma longa demora.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

A sombra da água (15)

Charles Job, Evening Calm, 1905

As águas chegam a terra e abrem-se numa herança inesperada, tocam-na com os seus dedos feitos de um lume tão lento como os dias da infância, acariciam-na com mãos de seda, rasgando-lhe sulcos por onde desliza a sombra das horas de melancolia.

terça-feira, 13 de junho de 2023

A Canção da Primavera 12

Mimi Fogt, Spring Time – Serra de Sintra, 1979 (aqui)

Voltemos ao centro do mundo,

ao jardim de flores eternas.

 

Voltemos aos dias luminosos,

às noites dos astros divinos.

 

Voltemos às frescas manhãs

onde canta a Primavera.

 

Junho de 2023

domingo, 11 de junho de 2023

No limiar (6)

António Areal, Sem título, 1961

Os primeiros traços de um mundo emergem do fogo originário. Estão ainda longe de serem um alfabeto que traga dentro de si a promessa de uma gramática, com as suas morfologias de aço, as sintaxes de cristal, fonéticas banhadas pelas águas de todos os oceanos. Ainda não são letras, nem algarismos, nem sinais secretos onde um código se erguerá para que olhos cintilantes o decifrem. São apenas as cinzas de um fogo que, de tão arcaico, nunca pára de arder, cinzas que lentamente se tornarão sólidas, tão sólidas que sobre elas, como se fossem alicerces inexpugnáveis, um mundo haverá de nascer.

sexta-feira, 9 de junho de 2023

O sal do silêncio (100)

J. Dudley Johnston, Liverpool— an Impression, 1907
Quando se entra por dentro do passado, somos recebidos pelo grande cisne do silêncio. O que era sólido deixa-se ver como penumbra, o que era vivo toca-nos como uma canção, o que era belo cintila ainda no poço escuro da memória. Quando se entra por dentro do passado, a poeira sabe-nos ao sal da solidão.

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Geometrias de fogo (15)

Giuseppe Arcimboldo, El Fuego, 1556
Se um coração mecânico bate num peito de ferro, os cabelos deflagram. Um corpo máquina tem uma cabeça de fogo. Os pensamentos são labaredas para incendiar o mundo, as memórias, uma colecção de cinzas onde descansam os restos dos mundos incendiados. 

segunda-feira, 5 de junho de 2023

A Canção da Primavera 11

Léon Kossoff, Dalston Lane, Monday Morning, Spring, 1974

Uma Primavera soturna

desce do céu de cinza e chumbo.

 

As flores do jardim clamam água

cansadas do fardo de Junho.

 

Espreito o dia pela janela

e oiço murmurar o mundo.

 

Junho de 2023

sábado, 3 de junho de 2023

A memória do ar (14)

Rudy Burckhardt, Flatiron in Summer, 1948

Essas avenidas largas retêm entre prédios as memórias vertiginosas do ar. O vôo dos pássaros, o desejo dos homens, o silêncio dos anjos, a sombra da aurora, os sonhos da matéria. Tudo ali circula, preso à lentidão, pois a memória é um exercício que exige tempo e cuidado. A pressa traz consigo a ruína por onde se escapa tudo aquilo que o coração quer conservar.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

Histórias sem nexo 30. Calúnias

Joan Hernández Pijoan, Horizontal, 1984

Uma cândida e casta cabaça cabriolava no canteiro. Um cântico de cachaça. A caduca candeia carpia, se uma cabra cavava no caderno do capelão. Caramba, estes camelos cantam cada canção. Cabaças, cabras e camelos, eis os capatazes da capital ou os cátaros da capela, que, cantando, cabeceiam na carroça. Calúnias de camafeus.

terça-feira, 30 de maio de 2023

Pintura e haikus (31)

Sam Francis, Around the Blues, 1957-62

Girassóis azuis
erguem-se para o Verão.
Cavalos de fogo.

domingo, 28 de maio de 2023

A Canção da Primavera 10

Ana Hatherly, Cidade, 1971

A cinza caída do céu

cobre de tristeza a cidade.

 

As ruas, passagens desertas,

declinam sob uma luz pálida.

 

Esqueço-me da Primavera

na melancolia de domingo.

 

Maio de 2023
 

sexta-feira, 26 de maio de 2023

O sal do silêncio (99)

Manning P. Brown, Curves, 1937

A nudez é o silêncio onde um corpo se oculta, se subtrai ao olhar inquisidor, oferecendo o seu esplendor para que floresça nos olhos incautos a mais terrível das cegueiras, aquela que ao olhar confunde aquilo que vê com aquilo que é visto.

quarta-feira, 24 de maio de 2023

A sombra da água (14)

Henri Edmond Delacroix Cross, La Dogana, 1903

As águas são propícias a grandes amores e a terríveis crueldades. Existem como uma sombra entre a solidez da terra e a imponderabilidade do ar. Agitam-se, se o vento as toca ou o oceano cintila ao longe. Adormecem, se um sonho as chama para lhes contar os segredos que nelas se escondem.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

A Canção da Primavera 9

Vincent van Gogh, Camino en Saint-Rémy con figura femenina, 1889

Pelos campos corre selvagem

a luz do deus da Primavera.

 

Sem mácula ou sombra as flores

abrem-se como aves de fogo.

 

Os dias passam no adro do tempo,

são setas no meu coração.


Maio de 2023

 

sábado, 20 de maio de 2023

No limiar (5)

Georgia O'keeffe, Black abstraction, 1927

Ainda as coroas não ornavam cabeças reais, nem o oxigénio se combinara com o hidrogénio para, em proporção exacta, permitir o advento da vida. O vento era apenas uma promessa cósmica de um tempo a vir, e a luz estelar ainda não tinha sido separada em enxames que se deslocam sempre para mais além. Do fundo negro, uma onda de escuridão ergueu-se e troou, enquanto uma espuma esbranquiçada, imperativa como uma velha fronteira, assinalava as primeiras metamorfoses que trariam o mundo ao lugar onde o encontramos.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Geometrias de fogo (14)

Maria Gabriel, Sonho numa noite de Verão, 1969

Sonhos de Verão são reminiscências de fogos que acordam dentro de uma imaginação exausta de tanta fantasia. O lume arde, enquanto o sonhador dorme. As labaredas tocam-lhe o coração e abrem-se em danças inquietantes por dentro do peito, até que o dia nasce e o sonho se esgota no lume da aurora.

terça-feira, 16 de maio de 2023

A memória do ar (13)

Maria Helena Vieira da Silva, L’air du vent, 1966

A precipitação com que o ar se enovela ao transformar-se em vento anuncia que, sob a capa de um mundo sólido e perfeito, se escondem, secretas e sulfurosas, as moléculas do caos, compostas por miríades de átomos instáveis e energias ferozes que se aniquilam entre si, anunciando o nada de onde tudo, mais uma vez, se haverá de extrair.

domingo, 14 de maio de 2023

A Canção da Primavera 8

Fernando Lerín, sem título, 2000

As tílias sombreiam as ruas

por onde caminho em silêncio.

 

O sol embalado no vento

cintila no verde das folhas.

 

Há no murmúrio da manhã

um cântico de Primavera.

 

Maio de 2023 

sexta-feira, 12 de maio de 2023

O sal do silêncio (98)

Noé Sendas, The Rest is Silence II, 2003 (aqui)

O peso do silêncio dobra a voz para dentro de si mesma. Esconde-se como um animal acossado, como um homem cujos olhos, tão frágeis, não suportam a luz. Na ausência do som, desprende-se dos corpos o sal do sono, e a boca, com o esmalte dos dentes e o âmbar do riso, floresce na floresta memoriosa da mudez.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

No limiar (4)

Imagem obtida com IA da CANVA

Pensa-se no lugar onde a realidade se produz em estratos, o trabalho moroso de sedimentação de materiais arcaicos, mas esse pensamento não passa da projecção do desejo de encontrar uma chave de leitura para aquilo que não tem leitura. Trata-se antes do lugar onde a irrisão se encontra com a ausência de sentido, formando ondas caóticas, impressões difusas, recusas viscerais de toda a ordem. Por vezes, soltam-se ruídos, mas não se encontrou ainda aparelho auditivo para os processar e descobrir para eles uma notação prosódico ou mesmo um nome. Pensa-se no não pensável.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

A sombra da água (13)

Amedeo Modigliani, Sun Reflected on Water, 1905

O ardor da água, essa pele porosa e lustral onde o fogo encontra a sua imagem, cintila perante a ameaça da sombra ou dos dias negros, de onde a luz foi retirada, reverbera contra a escuridão, alumia-se na inocência de tudo aquilo que passa e perde ao passar a mácula original do movimento.

sábado, 6 de maio de 2023

A Canção da Primavera 7

Georgia O'Keeffe, From the lake nº 1, 1924

Nuvens sobre nuvens encobrem

no céu o sol primaveril.

 

A sombra delida dum cisne

cresce nas águas frias do lago.

 

Ouve-se um canto luminoso,

ventos sopram vindos do Sul.

 

Maio de 2023

 

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Pintura e haikus (30)

Zao Wou-Ki, 21-14-59

Tormentos de sombra
em planícies de fria lava.
Um vulcão extinto.