António Areal, Sem título, 1961 |
domingo, 11 de junho de 2023
No limiar (6)
Os primeiros traços de um mundo emergem do fogo originário. Estão ainda
longe de serem um alfabeto que traga dentro de si a promessa de uma gramática,
com as suas morfologias de aço, as sintaxes de cristal, fonéticas banhadas
pelas águas de todos os oceanos. Ainda não são letras, nem algarismos, nem
sinais secretos onde um código se erguerá para que olhos cintilantes o
decifrem. São apenas as cinzas de um fogo que, de tão arcaico, nunca pára de
arder, cinzas que lentamente se tornarão sólidas, tão sólidas que sobre
elas, como se fossem alicerces inexpugnáveis, um mundo haverá de nascer.
sexta-feira, 9 de junho de 2023
O sal do silêncio (100)
J. Dudley Johnston, Liverpool— an Impression, 1907 |
Quando se entra por dentro do passado, somos recebidos pelo grande cisne do silêncio. O que era sólido deixa-se ver como penumbra, o que era vivo toca-nos como uma canção, o que era belo cintila ainda no poço escuro da memória. Quando se entra por dentro do passado, a poeira sabe-nos ao sal da solidão.
quarta-feira, 7 de junho de 2023
Geometrias de fogo (15)
segunda-feira, 5 de junho de 2023
A Canção da Primavera 11
sábado, 3 de junho de 2023
A memória do ar (14)
Rudy Burckhardt, Flatiron in Summer, 1948 |
Essas avenidas largas retêm entre prédios as memórias vertiginosas do ar. O vôo dos pássaros, o desejo dos homens, o silêncio dos anjos, a sombra da aurora, os sonhos da matéria. Tudo ali circula, preso à lentidão, pois a memória é um exercício que exige tempo e cuidado. A pressa traz consigo a ruína por onde se escapa tudo aquilo que o coração quer conservar.
quinta-feira, 1 de junho de 2023
Histórias sem nexo 30. Calúnias
Joan Hernández Pijoan, Horizontal, 1984 |
Uma
cândida e casta cabaça cabriolava no canteiro. Um cântico de cachaça. A caduca candeia
carpia, se uma cabra cavava no caderno do capelão. Caramba, estes camelos cantam
cada canção. Cabaças, cabras e camelos, eis os capatazes da capital ou os cátaros da
capela, que, cantando, cabeceiam na carroça. Calúnias de camafeus.
terça-feira, 30 de maio de 2023
domingo, 28 de maio de 2023
A Canção da Primavera 10
sexta-feira, 26 de maio de 2023
O sal do silêncio (99)
quarta-feira, 24 de maio de 2023
A sombra da água (14)
Henri Edmond Delacroix Cross, La Dogana, 1903 |
As águas são propícias a grandes amores e a terríveis crueldades. Existem como uma sombra entre a solidez da terra e a imponderabilidade do ar. Agitam-se, se o vento as toca ou o oceano cintila ao longe. Adormecem, se um sonho as chama para lhes contar os segredos que nelas se escondem.
segunda-feira, 22 de maio de 2023
A Canção da Primavera 9
sábado, 20 de maio de 2023
No limiar (5)
Georgia O'keeffe, Black abstraction, 1927 |
Ainda as coroas não ornavam cabeças reais, nem o oxigénio se combinara com o hidrogénio para, em proporção exacta, permitir o advento da vida. O vento era apenas uma promessa cósmica de um tempo a vir, e a luz estelar ainda não tinha sido separada em enxames que se deslocam sempre para mais além. Do fundo negro, uma onda de escuridão ergueu-se e troou, enquanto uma espuma esbranquiçada, imperativa como uma velha fronteira, assinalava as primeiras metamorfoses que trariam o mundo ao lugar onde o encontramos.
quinta-feira, 18 de maio de 2023
Geometrias de fogo (14)
Maria Gabriel, Sonho numa noite de Verão, 1969 |
Sonhos de Verão são reminiscências de fogos que acordam dentro de uma imaginação exausta de tanta fantasia. O lume arde, enquanto o sonhador dorme. As labaredas tocam-lhe o coração e abrem-se em danças inquietantes por dentro do peito, até que o dia nasce e o sonho se esgota no lume da aurora.
terça-feira, 16 de maio de 2023
A memória do ar (13)
Maria Helena Vieira da Silva, L’air du vent, 1966 |
A precipitação com que o ar se enovela ao transformar-se em vento anuncia que, sob a capa de um mundo sólido e perfeito, se escondem, secretas e sulfurosas, as moléculas do caos, compostas por miríades de átomos instáveis e energias ferozes que se aniquilam entre si, anunciando o nada de onde tudo, mais uma vez, se haverá de extrair.
domingo, 14 de maio de 2023
A Canção da Primavera 8
sexta-feira, 12 de maio de 2023
O sal do silêncio (98)
Noé Sendas, The Rest is Silence II, 2003 (aqui) |
O peso do silêncio dobra a voz para dentro de si mesma. Esconde-se como um animal acossado, como um homem cujos olhos, tão frágeis, não suportam a luz. Na ausência do som, desprende-se dos corpos o sal do sono, e a boca, com o esmalte dos dentes e o âmbar do riso, floresce na floresta memoriosa da mudez.
quarta-feira, 10 de maio de 2023
No limiar (4)
Imagem obtida com IA da CANVA |
Pensa-se no lugar onde a realidade se produz em estratos, o trabalho moroso de sedimentação de materiais arcaicos, mas esse pensamento não passa da projecção do desejo de encontrar uma chave de leitura para aquilo que não tem leitura. Trata-se antes do lugar onde a irrisão se encontra com a ausência de sentido, formando ondas caóticas, impressões difusas, recusas viscerais de toda a ordem. Por vezes, soltam-se ruídos, mas não se encontrou ainda aparelho auditivo para os processar e descobrir para eles uma notação prosódico ou mesmo um nome. Pensa-se no não pensável.
segunda-feira, 8 de maio de 2023
A sombra da água (13)
Amedeo Modigliani, Sun Reflected on Water, 1905 |
O ardor da água, essa pele porosa e lustral onde o fogo encontra a sua imagem, cintila perante a ameaça da sombra ou dos dias negros, de onde a luz foi retirada, reverbera contra a escuridão, alumia-se na inocência de tudo aquilo que passa e perde ao passar a mácula original do movimento.
sábado, 6 de maio de 2023
A Canção da Primavera 7
quinta-feira, 4 de maio de 2023
terça-feira, 2 de maio de 2023
Geometrias de fogo (13)
Vincent Van Gogh, Campesina sentada al fogón, 1885 |
Uma estranha geometria possui o fogo doméstico. As suas labaredas rodopiam arrastadas pelo íman da necessidade. O frio ancestral, o temor nascido no início dos tempos, a fome inexorável, tudo isso se torna um poderoso chamamento. Então, o fogo ergue-se como uma camélia perdida ao vento e arde para que a vida seja ainda uma luz na melancolia da noite.
domingo, 30 de abril de 2023
A memória do ar (12)
A grande abertura do horizonte, a ausência de obstáculos trazidos pela natureza ou feitos por mão humana, deixam que o ar circule suspenso da liberdade de tudo o que é invisível. Oferece-se então como um velho repositório de memórias, onde se escondem o voo dos pássaros, os sonhos dos homens.
sexta-feira, 28 de abril de 2023
A Canção da Primavera 6
quarta-feira, 26 de abril de 2023
Meditação Breve (189) A imaginação
Raphael Colin, At the Edge of the Sea, 1892 |
A imaginação é como o fluxo das águas do mar. Vem e vai, comandada por um ritmo secreto, cuja lei inexorável ninguém conhece. Onde apenas existe água e areia, ela descobre corpos tomados pela beleza, transbordantes de ritmo, incendiados pelo desejo de quem os fantasia, prontos para se deixarem possuir pela arte do seu criador.
segunda-feira, 24 de abril de 2023
A sombra da água (12)
João Queiroz, sem título, 1999 (aqui) |
Nenhuma atenção ou perspicácia permite distinguir entre água e sombra, unidas pela fluidez que as traz à existência e as dota das mais puras propriedades daquilo que é efémero. Só uma sabedoria infusa teria o poder de suspeitar a delicada fronteira onde a água se dissolve na sua sombra, onde a sombra se liquefaz para correr para o mar.
sábado, 22 de abril de 2023
No limiar (3)
Imagem obtida com IA da CANVA |
Será uma dança imortal a que os elementos se entregam antes de se comporem na matéria da realidade, o mundo sólido que surge perante os olhos, para estes o devorarem em imagens que se guardarão no cofre-forte da memória. Dançam uma música de cores. Nestas existem sons que o movimento faz eclodir em paisagens que as palavras não poderão descrever, horizontes que pertencem a um lugar onde o verbo ainda não se fez presente e nenhuma denominação encontra o momento para ressoar, pois tudo ainda está imerso numa sinestesia universal.
quinta-feira, 20 de abril de 2023
A Canção da Primavera 5
terça-feira, 18 de abril de 2023
domingo, 16 de abril de 2023
O sal do silêncio (97)
Nuno Cera, Snapshots 3, 1996 |
O caminho abre-se como uma oferenda aos viandantes. Devem percorrê-lo em silêncio, até que encontrem a saída que, de imediato, reconhecerão como a sua. Então, dirigir-se-ão ao lugar que por eles espera há muito. Ao encontrar a sua casa, descobrem o centro do mundo, e seja qual for o caminho que tomem jamais precisarão de bússola, nunca tornarão a perder o norte.
sexta-feira, 14 de abril de 2023
A memória do ar (11)
Imagem obtida com IA da CANVA |
O ar tece uma rede invisível e nela a realidade deixa-se prender até à imobilidade. São de aço flexível os fios com que a rede se tece, para que se ajuste aos prisioneiros que caem sob o seu império. Então, eles respiram lentamente e deixam correr o tempo, esquecidos da subjugação ao soberano que não se vê.
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