quarta-feira, 29 de março de 2023

O sal do silêncio (96)

Imagem obtida com IA da CANVA

O silêncio irrompe pelo deserto. É uma sombra que rasga as areias e deixa rastos indeléveis que vento algum apagará. É um silêncio feminino, grande como uma mãe que olha o futuro dos seus filhos e se ajoelha perante um altar para que o sal da vida amadureça nos seus corações indecisos.

segunda-feira, 27 de março de 2023

A Canção da Primavera 2

Pierre Bonnard, Advenimiento de la Primavera, 1909

Anunciação de um novo mundo,

um cântico na madrugada.

 

Declinam as últimas sombras,

tudo fulge no azul do céu.

 

Afastamos de nós as mágoas,

e as mãos abrem-se para o sol.

 

Março de 2023

 

sábado, 25 de março de 2023

Geometrias de fogo (11)

Imagem obtida com IA da CANVA

Um deus ígneo, filho do Sol, esconde-se na montanha. Cintila como uma revelação que desce sobre os homens e lhes comunica o caminho da verdade. Resplandece ao tocar as águas e tornar-se num fogo aquático, numa labareda a dançar no lago, numa promessa inquieta no coração da terra.

quinta-feira, 23 de março de 2023

A memória do ar (10)

Robert Doisneu, La gargouille de Notre Dame, 1969
Rainhas dos ares, quase anjos, quase animais, pura matéria inerte, as gárgulas  olham o horizonte, vigiam as nuvens, perscrutam os aviões, oferecem o seu corpo de pedra ao cansaço das aves. Diante delas, o ar rodopia num turbilhão, para depois, bonançoso e invisível, pousar sobre a terra como uma canção que lentamente se silencia.

terça-feira, 21 de março de 2023

Impressões 110. Cores

Imagem obtida com IA da CANVA

Cores irrompem do fundo negro onde tudo repousa. Rasgam a tela da escuridão e abrem as portas da luz. Então, erguem-se diante dos olhos, trazendo mensagens de um mundo onde ainda não existiam. São anjos as cores, anunciam aquilo que se esconde por dentro de tudo o que é visível.

domingo, 19 de março de 2023

A Canção da Primavera 1

Imagem obtida com IA da CANVA

Um pássaro canta no ramo,

abre a senda da Primavera.


Os jardins esperam o sol

no silêncio do infinito.

 

Caminhamos lado a lado

presos ao murmúrio das rosas.

 

Março de 2023

 

sexta-feira, 17 de março de 2023

Geometrias de fogo (10)

Imagem obtida com IA da CANVA

Um espasmo longínquo incendiou o Sol, para que este fulgurasse no horizonte, e na Terra a luz e o calor vibrassem nas planícies cinzeladas pelo vento, nas montanhas resguardadas da erosão, nas mãos dos homens que esculpem sentidos para a vida e levam o fulgor de uma vela aos lugares onde cresce a escuridão.

quarta-feira, 15 de março de 2023

A sombra da água (10)

Imagem obtida com IA da CANVA

Antiquíssimos rios rasgaram a terra. Na infância silvestre de todos os começos, as águas selvagens derrubaram obstáculos, aplanaram leitos, esculpiram com cinzel de diamante as margens. Então o arvoredo cresceu e as sombras, se eram dias de sol, mergulharam na tepidez da corrente. Agora, passada a idade madura, tornaram-se planícies cintilantes, onde os olhos mergulham para, na contemplação do fluir do tempo, encontrarem o repouso de cada dia.

segunda-feira, 13 de março de 2023

A Luz de Inverno 12

Imagem obtida com IA da CANVA

Despede-te luz de Inverno

para que uma outra venha

iluminar estes olhos.

 

Despede-te luz de Inverno

deixa a morada vazia,

guarda de nós a tua sombra.

 

Despede-te luz de Inverno,

leva para longe a névoa

e a mágoa nos corações.

 

Março de 2023

sábado, 11 de março de 2023

Crónicas (222) O poeta

Imagem obtida com IA da CANVA

Olhou-se ao espelho e não soube identificar o que via. Aquela imagem seria o seu reflexo ou a de um simulacro. Abriu a torneira do lavatório e ouviu a água correr, sem desviar os olhos daquilo que pairava diante de si. Nem todas as manhãs o confronto com o espelho era tão cruel, abrindo-lhe uma fenda na alma, um rasgão na memória. Quando acontecia, porém, era tomado pelo medo e uma dor germinava por dentro do corpo, aumentava enquanto a água desaparecia. Chegado ao paroxismo da dúvida, ao momento em que a dor se tornava insuportável, apagava a luz, voltava costas e corria para a secretária. Caneta na mão, escrevia o primeiro verso. Olhava-o com alívio, depois outro e outro, até que a dor desaparecia e a dúvida tombava vencida por terra.

quinta-feira, 9 de março de 2023

A memória do ar (9)

Imagem obtida com IA da CANVA
As ruas são artérias por onde o ar, a matéria sanguínea das cidades, corre, para refrescar quem se abrasa submetido aos imperativos da necessidade ou, feito vento, purificar o hálito insalubre que se eleva de grandes ou pequenos edifícios. De cima dos arranha-céus, anjos invisíveis sorvem sem pressa os vendavais que se erguem no horizonte, para que os homens não sejam arrastados pelo ciclone que toda a vida esconde.
 

terça-feira, 7 de março de 2023

Impressões 109. Universos circulares

Imagem obtida com IA da CANVA

Universos circulares escondem-se como velhas praças secretas que só os amantes, perdidos na sua inocência, conhecem. Ali flui uma energia silenciosa, a lenta combustão das memórias, o ardor dos corpos tomados pelo prazer dos sentidos. Quando uma tempestade sobrevem, um manto de de aço e acrílico desce para proteger quem ali sonha. Se a Primavera transborda num dia de luz, uma esperança verdeja no horizonte e o longínquo bramir do mar ecoa no cristal das paredes.

domingo, 5 de março de 2023

A Luz de Inverno 11

Imagem obtida com DALL-E 2

A graça dos dias de Inverno

declinou entre as sombras

de outros dias que se anunciam.

 

Nuvens brancas e luz pálida,

um vento nem frio nem quente,

pessoas perdidas nas ruas.

 

Uma súbita alegria

espreita no horizonte,

pura como um sol poente.

 

Março de 2023


 

sexta-feira, 3 de março de 2023

Haikai do Viandante (430)

Imagem gerada por IA, CANVA
O rio rompe a terra,
e nas margens a floresta
bebe-lhe as águas.

quarta-feira, 1 de março de 2023

O Espírito da Terra (25)

Charles Job, Ploughing on the South Downs, 1907

Rasgar a terra para que dê fruto e o homem se alimente não do pão que dela nasce, mas do espírito que se liberta pelo infindável labor de cada dia. Então, o homem falará e, nas suas palavras, ecoará o espírito da terra, o rumor da casa onde nasceu e que o aguarda para o fazer escutar a última, a mais decisiva das palavras.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Geometrias de fogo (9)

Fogo na noite (imagem gerada por IA da CANVA)

Então, o fogo crepita como uma canção presa na armadilha da noite. Ergue-se e rumoreja, se o vento o impele. Silencia-se, quando a Lua, sobranceira, o olha de cima e lhe conta as labaredas ou lhe desenha no céu a geometria incerta com que se move, feito ladrão, por dentro das trevas e das planícies vazias da solidão. 
 

sábado, 25 de fevereiro de 2023

A Luz de Inverno 10

José Vilató Ruiz, Lluvia, 1945

Chove. Chove sobre a tarde

uma água fria na penumbra

da flor que incendeia o dia.

 

As árvores rumorejam

no bosque verde da dor,

na erva do vendaval.

 

Espero a noite feroz,

a água fria do teu corpo

na bruma do esquecimento.

 

Fevereiro de 2023

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

O sal do silêncio (95)

Pere Ysern Alié, Cuevas del Drac. Mallorca, 1920-25

No fundo da terra, onde a beleza se oculta de olhares ímpios, celebram-se os mistérios mais sagrados, para os quais não há linguagem que os diga ou pensamento que lhes descubra o sentido. Tudo ali é silêncio e sombra, para que o sal do segredo floresça à luz do sol e se torne palavra na boca pura da poesia.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

A memória do ar (8)

Ernst Haas, View from Notre Dame, Paris, 1955

Vista de cima, a cidade é o rasto de uma memória que se rarefaz à medida que se sobe e o vento sopra para limpar os miasmas que da terra se elevam. O que é sólido mostra-se fluido, e um olhar treinado descobre já as frestas por onde o ar circula com a força do diamante e a transparência do éter.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

A Luz de Inverno 9

Wassily Kandinsky, At Rest, 1908

Do Inverno, os dias frios

de Fevereiro recolhem-se

na gruta negra da noite.

 

Estrelas caminham pálidas,

aves perdidas no céu,

fios de luz na voz dos mortos.

 

As ruas esperam o fogo

como as rosas, a água

e o meu corpo, a madrugada.


Fevereiro de 2023

 


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Geometrias de fogo (8)

Georgia O'keeffe, Era rojo y rosa, 1959

O fogo é uma canção que crepita no horizonte, uma parra que se desprende da vide, se chega o Outono, uma mulher tomada pela loucura do amor. Então, as chamas dançam, enquanto as cores incendiadas se desdobram, como labaredas de mármore e âmbar, entre o rosa leve da saudade e o vermelho vivo da paixão.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

A sombra da água (9)

Artur Pastor, Atlantic ocean, not dated
A água enrola-se no seu mistério e desdobra-se, como uma sombra no crepúsculo, pela areia, transformando a violência que a arrasta num suave deslizar de espuma pelos interstícios da terra. Ouve-se, então, o seu rugido declinar num suave rumor, o murmúrio de quem se entrega exausto à força do que acontece.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

A Luz de Inverno 8

George Iness, Winter, Close of Day, 1866

 O dia despede-se frio

banhado pelo crepúsculo

e o canto sombrio dos pássaros.

 

A vida dorme na terra,

espera a vinda do sol,

O orvalho da aurora.

 

No céu, os astros murmuram

perdidos na crua memória

dos dias puros do passado.

 

Fevereiro de 2023

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Pintura e haikus (29)

Marc Chagall, Abraham and the Three Angels, 1958-60
Abraão falava
e os anjos em silêncio
silêncios fiavam.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

A sombra da água (8)

Rodney Smith, Danielle in Boat, Beaufort, SC, 1996
O que eu queria, diz a sombra, é que os mortos se erguessem das águas e tornassem ao conforto do lar, para virem, nos dias incertos da melancolia, passear no lago, olhando as árvores e sonhando com grandes florestas, onde, como praias do Meio-Dia, se abrem clareiras, para que possam repousar por instantes, e banhar-se na luz viva do mundo ou nos aromas das flores silvestres.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

A memória do ar (7)

Alexander Alland, Brooklyn Bridge, 1938

Pontes são passagens entre a manhã e a noite, compromissos entre dois crepúsculos, lugares de festa onde a terra cede os seus filhos ao ar. Nelas, os homens são pássaros sem asas, caminham como se voassem e sentem no vendaval do vento a casa de assombro onde dormirão descansados.

domingo, 5 de fevereiro de 2023

A Luz de Inverno 7

José Dominguez Alvarez, sem título

 A cintilação dos dias

de Inverno, o fulgor do fogo

solar nas casas e ruas,

 

o espírito soprado

em segredo pelo vento,

tão frio, tão denso da aurora.

 

Como um ladrão, a neve

rouba do fogo o fulgor,

do Inverno, a luz cintilante.

 

Fevereiro de 2023

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Geometrias de fogo (7)

Jeanne Carbonetti, Abedul en otoño, 1997

O fogo é agora sangue inflamado na seiva das bétulas, um rasto de açafrão nas folhas caídas, o brilho do cobre se batido pelo sol, o vinho vertido na brancura da toalha. Traz com ele a tentação da iridescência, mas só a cor dos incêndios desenha o seu arco num céu toldado pelo desejo das chamas e a paixão das labaredas.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

A sombra da água (7)

Hiroshi Sugitomo, Cascade River, Lake Superior, 1995

Não são as águas que governam o movimento que as levará da nascente à foz, mas a sua sombra que, como um motor descido dos céus, lhes impõe a dança do ritmo e o fulgor da viagem, tornando-as lentas ou rápidas, conforme o desejo que germina no sombrio coração nascido do encontro entre a luz e as trevas.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

O Espírito da Terra (24)

Albert Renger-Patzsch, Heidesheim (Sandaue), 1940s

Sob a erva a terra esconde-se, para que nela a vida, como um segredo, possa germinar. Tudo o que nasce vem do silêncio da terra, de uma lenta urdidura, para que a novidade chegue envolta no véu transparente da surpresa. Os dias passam como anéis deslumbrantes de mármore, que se recolhem em dedos afilados, enquanto, no solo, cresce o odor daquilo que, ainda sem nome, virá.