quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (47)

Johann Wilhelm Cordes, Nach dem Sturm, 1855
Depois da tempestade vem o silêncio com o seu sal dourado para salgar o mar e libertar os estranhos monstros que o tempo aprisionara na recôndita caverna escondida no fundo oceano.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 62

Claude Monet, Road to Louveciennes, Melting Snow, Sunset, 1870
O silêncio vem no alvoroço
do crepúsculo, nos ramos
das tílias,
na luminosa humidade
da relva a sangrar pela cidade.

Anjos de cetim pisam sombras,
se a tarde se inclina
para a mudez
nacarada das tuas mãos
erguidas na imensidão do poente.

Janeiro de 2021

 

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Meditação Breve (148) Espanto

Fred Herzog, Lucy, Georgia, 1968

Sobre a banalidade da vida e o curso normal do trânsito, um olhar anuncia o espanto, não esse espanto que conduz à casa da sabedoria, mas um outro que espelha o terror que nasce perante a decepcionante trivialidade do real.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Impressões 70. Canção da Terra

Rafael Estrany, Cursa de cavalls
O troar dos cascos pelo chão, o galope desenfreado em busca do destino, os gritos de incitamento dos jóqueis, o ulular dos espectadores, tudo isso se abre como um movimento ondulante de uma melodia arcaica e poderosa, uma canção da Terra erguendo-se para o mistério do céu.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Pintura e haikus (21)

Amadeo de Souza-Cardoso, Castelo, 1911
 Um casto castelo
de inocente geometria.
Visão que se abria.

sábado, 16 de janeiro de 2021

O desejo

Yale Joel, Ribbon Hats, not dated
Encontrei as quatro pela primeira vez num café. Estavam todas juntas e segredavam entre o chá e risinhos de cumplicidade. Havia nelas beleza e mistério. Procurava-as e sempre as encontrava. Discretamente, foram-me atraindo. Como um pássaro inconsciente deixei-me ir. Por vezes, permitiam-me partilhar algum tempo com elas. Eu não amava nenhuma, mas desejava-as a todas. Até que um dia me prenderam e disseram-me: sentimos bem o teu desejo. Tens de escolher uma de nós, mas depois terás de enfrentar a fúria das rejeitadas. Senti a morte próxima. Valeu-me a presença de espírito e o pendor para aceitar o mal menor. Respondi que não rejeitaria nenhuma, mas casaria com aquela que um sorteio ditasse. Não posso dizer que seja um casamento feliz.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 61

Jorge Barradas, Casario – Barquinha, 1922
Havia palavras como cântaros
e infusas, uma laranjeira
perdida no centro do quintal,
pequenos caminhos de tijolo,
um poço onde se escondiam
tesouros e mouras encantadas,
a água escura na luz da tarde.
Os dias nasciam e declinavam
ao som do bronze dos sinos
e todos os meus desejos
levitavam no lume da inocência.

Dezembro de 2020

 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (46)

Johann Jungblut, Land folk on a frozen river

Nos dias gélidos em que os rios se tornam lençóis de vidro translúcido, mesmo se caminham lado a lado, dentro da paisagem invernal, os homens ensimesmam-se e fazem do silêncio o sal que lhes tempera a alma, como se rememorassem outros mundos onde nunca estiveram, mas que sonham nas noite em que a neve cai e os lobos uivam ao longe.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Histórias sem nexo 22. Festa

Francisco Bores, Personages à table, 1955

Os figos da figueira foram-se. No faval, febris as favas ficaram feiosas. Uma fada fadou a Fátima, que de felpuda fatiota falou: Ó Fernando, que falta de fé, filho. Finaram-se os figos, finaram-se as favas. A febre as fez, a fome os fanicou, farfalhou feliz a Felicidade. Uma festa.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Diálogos morais 54. A rainha da Primavera

Yale Joel, Salesman is demonstrating a spring hat, 1962
- Magnífico, fica-lhe muito bem.
- Tem a certeza?
- Repare, olhe para o espelho.
- Sim, sim, eu olho.
- Vai ser a rainha desta Primavera.
- Tem a certeza?
- Já viu como combina com os seus olhos, o tom da pele.
- E serei a rainha desta Primavera?
- Claro. Não uma mera princesa, mas a mais bela rainha da Primavera.
- Então, não quero o chapéu.
- Não quer?
- Não. A Primavera passa depressa.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 16

Johann Anton Castell, Romantisches Lagerfeuer im Mondschein, 1850

Noite de lua cheia, fogo e mar. Três figuras de mistérios e uma de iluminação. Os grandes mistérios da noite, do oceano e da lua, com a sua luz tamisada, crescem dentro do coração de homens e mulheres. O temor da noite, o murmúrio das águas, a secreta vibração da lua, tudo isso se esconde no mais recôndito da alma, enquanto o fogo traz o calor e a luz que iluminando a tudo vela. E assim nasce o amor com os seus jogos nocturnos, preces lunares, rumores marítimos, como se fosse um fogo que arde sem se ver.

domingo, 10 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 60

Max Ernst, El bosque embalsamado, 1933
O bosque de cedros e ciprestes
fecha-se no silvo do silêncio,
uma vidraça de verde
sob a inclemência das chuvas.

Uma mulher atravessa a praça,
leva o enxoval da vida
preso num saco de compras,
entra no limbo da lavandaria.

A vida saltita como uma rã perdida
nas águas paradas do charco,
coaxa no tumulto da tarde
e espera no enigma do calendário.

Dezembro de 2020

sábado, 9 de janeiro de 2021

Meditação Breve (147) Esfinge

Frank Eugene, The sphinx of Giza at midnight, Egypt, 1901

Ali, onde a encontraram, ela vê passar o tempo. Perdeu já a conta aos dias e às noites, às horas em que, imóvel e presa na pedra, contempla o horizonte. Da boca nunca se desprendeu uma palavra, mas nunca deixou de falar, pois a sua voz é a do silêncio. Não tem enigmas a propor aos mortais perdidos na viagem, pois ela é o próprio enigma onde se oculta o mistério do homem.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Impressões 69. Ataque de lanceiros

Eugène Atget, Le Château, fin Octobre, le soir, effet d'orage,  1903

De súbito, a tempestade aproxima-se com o seu exército de lanceiros. Ouve-se o galope dos cavalos e o troar dos gritos que incitam ao combate. Grande bátegas de água, raios e coriscos iluminados pela rapidez do relâmpago são lanças ferinas que se abatem sobre a esquadria silenciosa e pura da razão humana. 

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (45)

Ernst Ferdinand Oehme, Procession in the fog, 1828
O aroma do silêncio desprende-se do nevoeiro. Os homens caminham em procissão para um destino que não vêem e não conhecem. Guia-os o sal da própria voz que se solta da mudez e se eleva em espirais de névoa ao azul onde repousam os astros esquivos da madrugada.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Meditação Breve (146) Ao crepúsculo

Caspar David Friedrich, A Walk at Dusk, 1832-35

O crepúsculo acolhe o solitário que caminha, não porque este tenha um destino, um lugar onde alguém o espera, mas porque o espírito encontra aí a sua hora, nesse momento indeciso entre a luz e as trevas, nessa metáfora sempre viva de toda a condição humana.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

A Sarça Ardente - 59

Lowell Birge Harrison, Christmas Eve
O Natal consumou-se
entre o fogo do desejo
e a esperança
tocada pelo cristal
das esferas celestes.

Os dias voltam a crescer
e a natureza cuida
que uma rosa
de vinho se abra
na água do silêncio.

Dezembro de 2020

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Histórias sem nexo 21. Tresa, a trambiqueira

Albert Gleizes, Busto de mulher, 1920
Tresa, a trácia, trocou as trindades pelo trono. Uma treda, uma trêfega traidora. Troviscou sobre os trevos, as trufas e o tráfego. Um truão, no trovejo, troou: Tresa, ó trouxa da Trácia, truca, truca, senão troco-te, ó trambiqueira que te trombicaste.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Haikai do Viandante (406)

Erik (Dorn) Bodom, Høyfjell, 1871

As águas repousam
entre murmúrios de luz.
No céu, sombra e pássaros.

sábado, 2 de janeiro de 2021

O sal do silêncio (44)

Stanisław Witkiewicz, Mountain wind, 1895

O vento é a voz do silêncio. Umas vezes, leve e suave, um murmúrio na aurora. Outras, desabrido e cortante, um sermão pela tarde. Outras ainda, irado e tempestuoso, um pesadelo na noite. Se o coração não se cala, o silêncio não pode emudecer.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Arqueologias do espírito 15

Edwin Deakin, Campfire in the Redwoods, 1876
Na floresta, uma fogueira ilumina a noite. Os olhos perdem-se na dança das labaredas, o coração bate compassado e tranquilo, as vozes silenciam-se, enquanto o espírito desce pela corda da memória, de uma memória bem mais antiga e funda do que a de cada um, e mergulha num tempo em que o fogo era a imagem divina, protectora e irada. E nessa memória, cada um pressente, no silêncio da noite, a verdade que se abriga no crepitar da madeira e na inconstância do lume.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 58

Adolf Gustav Schweitzer, Winter Landscape with Brushwood Gather
Dezembro veste-se de vésperas
e deixa os pés pisar
a cal dos caminhos.

Passa entre ruas antigas
e escuta a voz
dos que ali fizeram morada.

O fumo do passado rumoreja
em volutas de seda,
em céu de brancura azul.

Dezembro arrasta o peso dos dias
e traz uma estrela
para cintilar no ano que há-de vir.

Dezembro de 2020

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Acerto de contas

Richard Stacks, A Drink in the Rain, 1955

Reparei nela no momento em que, sob chuva forte, parou defronte da pequena coluna de pedra, dela fez brotar a água e, como criança afogueada, a bebeu. Senti uma incongruência inexplicável e segui-a. Inventava caminhos que desembocavam noutros, que, dados alguns passos, afluíam ainda noutros. A certa altura, percebi que entrara num labirinto e que apenas podia confiar em que ela conhecesse a saída. Chegada a uma pequena praça muralhada, parou. Aproximei-me. Perguntou-me: não me conheces? Não, respondi. Uma vez dei-te um fio de lã em troca do teu amor. Salvaste-te do terrível labirinto e abandonaste-me. Agora devolvo-te a promessa de amor e levo comigo o fio. Como saí dali e posso rememorar a aventura, não o sei.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Impressões 68. Xadrez sob azul

Noronha da Costa, Composição Azul, 1970
Sobre o tabuleiro de xadrez da existência paira uma névoa de azul. Debaixo do véu, personagens compõem um drama feito de reis e rainhas, cavalos à desfilada e torres por conquistar. Os bispos abençoam os pequenos peões que nunca chegarão aos estribos do cavalo para, com a sua lança de água, matarem de sede o rei ou, numa súbita metamorfose, se tornarem diligentes rainhas.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Meditação Breve (145) Criação

Marta Soares, Sem Título XX, 2000
Em todo o processo de criação há uma luta contra a obscuridade, como se tudo fosse uma noite insondável e um pobre artesão combatesse contra a resistência dos materiais e a ameaça do dragão, para que um novo som, uma nova figura, mil novos mundos saíssem das trevas e viessem à luz.

domingo, 27 de dezembro de 2020

Micronarrativa (45) O beijo

Robert Doisneau, Le Baiser de l'Opera, 1950
Ainda não o sabiam, pois muitas são as coisas que se escondem aos olhos dos homens e mais ainda as que o coração não consegue desvendar. Ele inclinou-se ligeiramente para a frente, ela ofereceu-lhe a boca, os corpos vibraram e a vida oscilou. A emoção do primeiro beijo era tão forte que não lhes permitia compreender que era o último.

sábado, 26 de dezembro de 2020

A Sarça Ardente - 57

Emil Nolde, Entardecer de Outono, 1924
Aproxima-se o solstício
de Inverno.
Os dias diminuem
para que a noite cresça
sobre as heras
do muro da madrugada.

Um vento suave desliza
das estrelas,
empurra as folhas caídas
para o recato
do pensamento,
para o murmúrio da melancolia.

Dezembro de 2020

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Arqueologias do espírito 14

George Inness, Evening Landscape, 1862

Esses momentos em que a luz é já um exercício de nostalgia e a noite a promessa pronta a cumprir-se, essa hora indecisa do crepúsculo inscreveu-se fundo no fundo do espírito dos homens. Entre a beleza do dia que acaba e o terror das trevas, o coração silencia-se por instantes e uma estação no calvário da existência ganha então, aí mesmo, um lugar, onde prepara a ressurreição da luz, no dia que se seguirá à noite.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O Espírito da Terra (7)

Alexandre Calame, L'Hiver, 1851

Coberta de neve, a Terra dorme suspensa à espera do que virá. Tudo emudeceu, os animais terrestres, as aves do céu, os rumores semeados pelo vento na ramagem despida das árvores. Noite do mundo, silêncio onde germinam os esporos de onde brotará, para súbita e selvagem sagração, a rosa de cristal da Primavera.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

O sal do silêncio (43)

Edward Steichen, The Brass Bowl, 1904
Uma sombra solene de cansaço desliza-lhe dos olhos, perde-se num lugar invisível, enquanto o corpo resiste à tentação de se deixar cair para o fundo negro, o lugar onde o silêncio benévolo é corroído por outro, obstinado e terrível, que se ergue como um monstro pronto a devorar todas as promessas que se ocultam nos olhos de uma mulher.