terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

A Sarça Ardente - 11

Francisco Arjona, Composición III, 1984

Uma sombra
de água
arde-te no âmbar
das mãos.

O fruto do Inverno
desce ao sol
a encosta
madura da manhã.

Tudo se exalta
na recordação
do rumor
do desejo.

Janeiro de 2020

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Histórias sem nexo 3. O arqueólogo

Pablo Picasso, Still Life with Fish, 1940
O arqueólogo atirou o arpão. O peixe arfava enquanto era arrastado pela areia. Ar, ar, articulava o animal, enquanto o arqueólogo ardia como um arlequim, na alvura da alba, na aguardente apurada no alambique.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A mulher de sonho

Vicente Vela, Bodegón del ensueño, 1991
Quer que lhe fale da minha mulher. Será relevante para a terapia, presumo. Nunca a compreendi e nunca soube por que casei com ela. Talvez quisesse fechar esse assunto. Ela vivia nos seus sonhos. Não estou a ser alusivo. A vida de cada dia era o prolongamento do sonho que tivera durante a noite. Havia épocas de grande monotonia, pois todas as noites ela tinha o mesmo sonho. Tanto quanto percebi, pelo seu comportamento em estado de vigília, os sonhos tinham uma lógica incompreensível. Ignoro por que não enlouqueci. O que lhe aconteceu? Uma tarde, depois de almoço, disse vou dormir um pouco. Entrou então num dos seus sonhos mais recorrentes e desapareceu. Não a voltei a ver.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Diálogos morais 33. Loucos

Imogen Cunningham, Cemetery in France, 1961
- Estou a enlouquecer, ao vir aqui.
- Também eu.
- Não. Tu estás morta e os mortos não enlouquecem.
- Não?
- Os vivos, sim. Começam a falar com os mortos.
- E isso é sinal de loucura?
- Sim, os mortos não existem.
- Então também eu enlouqueci.
- Não é possível, estás morta.
- Estou, mas falo com um vivo e aqui os vivos não existem.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Haikai do Viandante (387)

Artur Pastor, Oceano Atlântico, sem data

Ondas vão e vêm,
rumorejam sal e espuma,
água e mistério.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

A Sarça Ardente - 10

Charles Marq, A un poète, 1984

Sem pássaros
para alumiar,
a Lua sulca
o silvo do silêncio.

Poisa luminosa
na resina
do fogo,
no ardor da tília.

Ouve-se no ranger  
do ramo
o tremor
do tear do tempo.

Janeiro de 2020

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Impressões 48. Os derrelictos

Sergio Larrain, Pisac, Peru, 1960
Como Cristo na cruz, também eles foram abandonados. Estão por ali, perdidos sem saberem o que se esconde para além da linha do horizonte. Como fantasmas, vão e vêm, mas na verdade nunca saem do mesmo lugar, do mesmo silêncio, da mesma hora que lhes marca o rosto com o estigma do esquecimento.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Diálogos morais 32. Anjos

Ilse Bing, Chairs with Leaves, Luxembourg Gardens, Paris, 1952
- A cadeira está vazia, podes sentar-te.
- Vazia? Não me parece.
- Ninguém a ocupa.
- Estás enganada.
- Enganada? Só vejo folhas mortas.
- São anjos cansados.
- Não brinques, anjos disfarçados de folhas? 
- Sim, fazem-se de mortos.
- Para quê?
- Para não caírem em tentação.

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Haikai do Viandante (386)

Hiroshi Hamaya, Cherrytrees in bloom. Hozukyo, Kyoto, 1979
O silêncio fala
nas cerejeiras em flor.
Um fruto por vir.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Histórias sem nexo 2. O oboísta

Pablo Picasso, Cabeza de hombre, 1909

Sob a oliveira ordenada a ocidente, o oboísta orou. Olhou o horizonte, compôs os óculos e esperou que o obituário sem horror lhe anunciasse o óbito. Morreu ao som do oboé.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A Sarça Ardente - 9

Gerardo Rueda, Encuentro, 1967

Falemos do caos
ou das carpas
mortas
na margem do rio.

Falemos da noite
ou das nuvens
esquecidas
na planície do céu.

Falemos do vazio
ou do vento
fatigado
no silêncio do coração.

Janeiro de 2020

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Micronarrativa (30) Perda

Constantine Manos, The Boston Symphony Orchestra. Boston, Massachusetts, 1958
Subitamente, ela voltou-se e os meus olhos foram tomados por uma sombra que ainda hoje me atormenta. O seu corpo, o seu rosto, os seus olhos, tudo o que ela era dançou diante de mim e, num turbilhão, foi-se dissolvendo até nada restar. Perdi o grande amor da minha vida na hora em que o encontrei.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Haikai urbano (53)

Jeanloup Sieff, Queen, London, 1964

Ó sombria sombra
vinda no vento da noite.
O silêncio chama-te.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Impressões 47. Destroços

Edward Weston, Wrecked Car, Crescent Beach, British Columbia, 1939
Aquilo que um dia animou o olhar e encheu o peito de uma vã glória é agora um destroço, uma amálgama feita de restos de matéria lacerados pelo tempo e os fios tenazes do esquecimento. Olhamos e o que vemos é, vinda do futuro, a imagem dos nossos mais pueris.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Meditação Breve (120) Equilíbrio

Robert Capa, American actor Gary Cooper. Sun Valley, Idaho, 1941
Aquele que procura o equilíbrio sonha com a justa medida. Nem um passo a mais nem a menos. Nem um excesso de inclinação à direita nem à esquerda. Assim, o corpo aprenda a realizar o sonho que se sonha no fundo de si, pois ninguém é outra coisa senão o cumprimento dum sonho, esse mistério obscuro que rumoreja nos interstícios daquilo que é.

sábado, 25 de janeiro de 2020

A Sarça Ardente - 8

Paul Klee, Blue-Bird-Pumpkin, 1939
Um pássaro canta.
E o sino
ressoa
na voz velada
da ave
no bater
bárbaro do bronze.

Dezembro de 2019

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Histórias sem nexo 1. O grumete

Albert Gleizes, Cabeça masculina, 1912-12
O grunho do grumete gritou. Alisou a gravata, pegou nos grampos e na grade de cerveja. Chegado à porta saiu para a Praça Grande. Ao avistar outro grumete grunhiu: ó que desgraça, desgruda do gradil antes que a grua te caia em cima. 

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Impressões 46. Confidências

Ed van der Elsken, Cafe Culture in Bohemian Paris, 1954
Dever-se-ia evitar as confidências durante uma refeição. Distraem-nos, deixam-nos perplexos e não matam a fome. Quanto mais confidências consumimos, maior é o desejo de escutá-las. Não há quem não tenha alma de confessor.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Haikai urbano (52)

Vilhelm Hammershoi, Montague Street in London, or Side View of the British Museum, 1905-06
Os dias de silêncio
no limiar do crepúsculo.
A cidade dorme.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Meditação Breve (119) Beleza

Sam Lévin, Ava Gardner in The Naked Maja, 1958
Nunca poderemos prescindir da beleza, pois ela é a presença da eternidade no tempo. O que se vê num ser humano belo não é a sua humanidade, mas o reflexo supra-humano que o tocou, transformando-o num símbolo. Talvez as pessoas belas sejam as mais infelizes, pois o amor por elas é um amor por aquilo que nelas, como num espelho, se reflecte.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A Sarça Ardente - 7

Helen Frankenthaler, Bambú en Nueva York, 1957

Sou um mendigo
perdido
na poeira da porta.

Espero-te.
O vento
leva-me o nome.

O resto da tua mesa
aguardo
na toalha bordada do chão.

Dezembro de 2019

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Haikai urbano (51)

Alfred Eisenstaedt, Mother and child in Hiroshima, Japan, December 1945
Olhares perdidos
nas ruínas de Hiroshima.
A mãe sonha o filho.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Impressões 45. Imagens reflectidas

Walter Sanders, Volkswagen, 1951
Imagens reflectidas na água são portas que levam a outros universos. Ao entrar por elas, o viajante apaga o universo de onde veio. Inocente e de olhar purificado começa uma nova existência como se tudo tivesse sido acabado de criar.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Meditação Breve (118) Segredo

Nina Leen, Macy’s department store detectives,1948
Todo aquela que investiga não gosta de ser investigado. Todo aquele que espia não gosta de ser espiado. Todo aquele que procura um rosto na multidão não gosta que o seu rosto se exponha. Quem procura desvendar segredos transforma-se ele mesmo num segredo.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Diálogos morais 31. O convite

Helmut Newton, Fashion photography, 1975
- Esperam-me.
- Desculpe, deve estar equivocada.
- Recebi o convite.
- Não enviei qualquer convite.
- Não foi você, foi...
- Essa sou eu e não convidei ninguém.
- Você, nessas roupas?
- Se não lhe agradam, posso vestir outras, mas não a convidei.

domingo, 5 de janeiro de 2020

A Sarça Ardente - 6

Lucio Muñoz, 8-86, 1986

As palmeiras mortas
desenham
uma rota de ruínas.

Nelas poisam gaivotas
exaustas
do ondular do oceano.

Ao longe, dunas erguem
muros de areia,
sombra e solidão.

Dezembro de 2019

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

O colar de pérolas

Frank Eugene, The Pearl Necklace, 1900s
Quando a vi retirar o colar de pérolas não imaginei o que viria a seguir. A confiança que temos na realização dos desejos cega-nos. Os sinais estiveram sempre lá, mas os olhos ou a razão, o que é a mesma coisa, foram incapazes de os ler. No gesto dela não havia qualquer pathos, nem estava diferente dos outros dias. Quando me viu, sorriu e cumprimentou-me como habitualmente. Estava esplêndida e era o centro do grupo. Sentou-se. Nos seus olhos havia um brilho que pensei ser de alegria. Olhou a sala. Observava-a arrebatado. Ela ergueu os braços, retirou o colar e olhou longamente para ele, como se o contemplasse. Por fim, levantou os olhos e disse sem tremor não haverá casamento.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Haikai do Viandante (385)

Pedro Cabrita Reis, A linha do mar, 2019 (foto da CM de Matosinhos)
A linha do mar,
onda de espuma e ferro.
Silêncios de Inverno.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Impressões 44. Em procissão

Père Daura, Multitud en processó
Movem-se rasgando o espaço, criam uma onda animada pela expectativa, desenham uma serpente que desliza pelas ruas. Aos ombros, levam andores onde depositaram os males e as esperanças. Na boca, um murmúrio confunde-se com o ressoar do vento no fundo de uma caverna.

sábado, 28 de dezembro de 2019

Micronarrativa (29) O crime da rua esquecida

Josef Sudek, Forgotten street, 1930
Ali era o lugar onde o crime deveria acontecer. Rua de casas sombrias com janelas escuras, de onde se espera ver assomar gente taciturna, sobrolho carregado, indisposta com o mundo. Quando chegou a hora, assassino e vítima esqueceram-se do lugar que os esperava e a bala que deveria abater o condenado nunca chegou a sair do revólver do carrasco.