terça-feira, 25 de junho de 2019

Meditação Breve (104) Realidade humana

George Tice, Horse and Buggy, Lancaster, PA 1961
Contra o céu amplo e fundo, tudo o que pertence ao homem é pequeno e risível. Os seus objectos, os seus animais, a sua posição no mundo, até o seu desmedido orgulho e a nunca justificada vaidade.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Haikai do Viandante (371)

Modesto Urgell Inglada, Apunte de puesta de sol

No céu cor-de-rosa
a noite caminha alegre,
Fecho a porta e canto.

domingo, 23 de junho de 2019

Diálogos morais 10. Das coisas necessárias

Fred Boissonnas, Quiet Greece, 1903-1930
- O que queres daqui, rapaz?
- Não tem uma moeda?
- Para que raio queres tu uma moeda?
- Por que raio não a haveria de querer?
- És espevitado. Não há aqui moeda nenhuma.
- E uma nota, das pequenas?
- Desanda daqui.
- E um cigarro, também não há?

sábado, 22 de junho de 2019

O sal do silêncio (19)

Eugène Atget, Rue de la Montagne-Sainte-Geneviève, 1924
O chão brilha sob a luz mesclada de névoa, espera pelo viandante perdido que, olhando estupefacto para a direita e para a esquerda, não sabe já em que mundo se encontra. Se naquele de onde partiu, se naquele onde haveria de chegar.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Poesia do Viandante (725)

Norman Narotzky - All Life Is There (1984)

725. flores abandonadas

flores abandonadas
no herbário
da infância
sangram odores
de óleo
por poros de seda
secam se a mão
as toca
com a variz do vento

(27/12/2016)

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Impressões 34. O corpo e a dança

Gjon Mili, Stroboscopic image of ballerina Nora Kaye leaping, 1947
Dançar talvez seja a mais perigosa das ocupações humanas. Ao elevar-se, a bailarina vai perdendo um a um os seus corpos, como se alma, no momento da elevação, se quisesse despir dos mil vestidos que compõem o seu guarda-fatos. O perigo está no momento em que pousa na terra. Quantos corpos terá a alma dançante perdido? Os que recuperou e uniu em si ainda são suficientes para que tenha algo para dar vida e fazer rodopiar no palco perante uma plateia suspensa e tremente?

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Incendiada

Leonard Misonne, Bad Weather, 1909
Nos dias de chuva, ela passeava-se sob um guarda-chuva de cor sóbria. Não havia no seu rosto, para além da beleza, um sinal que a diferenciasse de qualquer um de nós. A família era conhecida e tinha influência assinalável na cidade. O estranho era que nem a beleza nem a influência lhe atraíam pretendentes. Nessa tarde de que me fala, chovia e ela fez o seu passeio habitual. Sentou-se, contra o costume, num banco de jardim. De dentro da gabardina, retirou uma garrafa, regou-se com o conteúdo e acendeu um fósforo. As chamas consumiram-na de imediato. Quando chegaram perto do sítio onde estava, não havia qualquer vestígio da sua existência. Nem sequer cinzas. Não há provas de que tenha morrido.

terça-feira, 18 de junho de 2019

Haikai urbano (48)

William Degouve de Nuncques, Nocturne in the Parc Royal, Brussels

Cidade tomada
pela escuridão da noite.
Fulgor da sombra.

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Diálogos morais 9. Descrições

Raoul Hausmann, Les photographes Raoul Hausmann et Marthe Prévot,1957

- Vês a mesma coisa que eu?
- Não sei o que vês. Se descreveres, talvez...
- Descrever?
- Sim, dizeres o que vês, as características, essas coisas.
- Impossível.
- Não entendo.
- Se eu descrevesse estaria já a falsificar o que vejo, a mentir-te e jurei nunca te mentir.

domingo, 16 de junho de 2019

Poesia do Viandante (724)

Darío Urzay - Agnostic site (2000)

724. com turvo talento

com turvo talento
pinto paisagens
de mercúrio
e magnésio
figuras de cobre
no cálcio quente
do entardecer

(27/12/2016)

sábado, 15 de junho de 2019

Impressões 33. Sombra

Walker Evans, Pedestrians at Curb, Seen from Above, New York City, 1928

Não deixa de ser estranho o destino dos homens. Uns fogem da sua própria sombra, enquanto outros, sem parar, correm atrás dela. Imaterial e imponderável, a sombra é o centro de todas as actividades humanas. Não há acção em que a luz, ao iluminar o homem, não projecte uma sombra que o fascina e o atemoriza.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

O sal do silêncio (18)

Frederick Sommer, Colorado River landscape, 1942

Paisagens de pedra e água, moradas onde o silêncio cresce, lugares inexpugnáveis à curiosidade dos homens. Ali se recolhem, solitários, aqueles que vão deixar a vida. Sentam-se e esperam que um anjo chegue e lhes recolha a alma. O corpo, então, desaparece, como se quisesse desmentir o adágio "na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma", com o qual se jura pela conservação da matéria.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Meditação Breve (103) Fugas

Alfred Eisenstaedt, Golfers’Ball, Esplanade Hotel, Berlin, 1929

A vida social - um baile, por exemplo - é um exercício de fuga à solidão. Começa-se sempre por fugir a esta, para depois se fugir de si mesmo e acabar por fugir do tremendo mistério que nos envolve. 

terça-feira, 11 de junho de 2019

Diálogos morais 8. Um equívoco

Alexey Titarenko, Untitled, (Two Heads), St. Petersburg, Russia, 1992

- Mãe, que estranha me sinto.
- Falta-te anda o hábito, o tempo to dará.
- Sinto-me a perder a face.
- Estás enganada, minha filha.
- Enganada?
- Sim. 
- Não compreendo.
- Nós pertencemos aos que nunca tiveram face.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Haikai do Viandante (370)

Ferdinand Hodler, Los Alpes de Vaud vistos desde los Rochers-de-Naye, 1917

sobre a montanha
o silêncio luminoso
rasga-me a alma

domingo, 9 de junho de 2019

Poesia do Viandante (723)

Antonio Bisquert - Adoración (1975)

723. sonho fábulas e flores

sonho fábulas e flores
em presépio
de palavras
sonho um sono
germinado
à porta da carne
sonho de olhos
fechados
a lépida lentidão da morte

(27/12/2016)

sábado, 8 de junho de 2019

A fotografia

Horst P. Horst, London, 1936

Dançaram toda a noite. A princípio não os notei, mas, a certa altura, a forma como dançavam prendeu-me o olhar. Havia neles uma leveza que nunca vira, embora nunca tentassem distinguir-se dos outros casais. Conhece, por certo, aqueles pares que gostam de centrar em si os olhares, que se esforçam para manifestar uma distinção técnica e com isso parecem realizar um grande desígnio. Este era diferente, esforçava-se para ser apenas mais um. Quando a festa terminou, segui-os. Eles caminharam em silêncio e nunca deram as mãos. Chegados perto rio, pararam. Foi então que os fotografei. Nesse instante, sem que eu perceba como, desapareceram. Encontrei-os quando revelei a fotografia. Ali estavam eles, presos ao papel.

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Diálogos morais 7. Que pena

Bill Brandt, Penny-farthing for their thoughts, from A Day on the River, 1941

- Estou cansada. Para lá daquela margem está a nossa felicidade.
- Também o creio. Quem me dera que lá estivéssemos.
- É fácil, atravessamos o rio.
- Impossível, só tenho uma bicicleta.
- Que pena, seríamos felizes.
- Que pena, mesmo.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

O sal do silêncio (17)

Andreas Feininger, Figurenarchitektur von Lyonel Feininger, 1971

Universos de pedra são como casas onde habitam homens silenciosos, clareiras onde tudo se vê mas nada tem sentido. Os seus habitantes caminham ao acaso, encontram-se e logo se afastam, sem que uma razão desfaça o enigma ou uma súbita iluminação lhes esclareça a existência.

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Pintura e haikus (10)

Mario Sironi, L'eclisse, 1942

Eclipse de pedra
no frio silêncio da rua.
O rumor da morte.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Poesia do Viandante (722)

Gerhard Richter - Abstraktes Bild (1995)

722. tudo estremece

tudo estremece
no mar da mansidão
as palavras puras
roubadas
à gangrena do léxico
o rumor da ressurreição
na poeira da páscoa
o homem solitário
adormecido
no dédalo da desventura

(27/12/2016)

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Impressões 32. Anjos

Lord Snowdon, Ballet Dancers Rudolph Nureyev and Dame Margot, 1963

É apenas um instante, uma ilusão maculada de alegria, um fruto que se abre para a maturação. Depois, elevam-se e são anjos. Escondem-se nos telhados e vigiam os homens. Por vezes, uma ânsia de gravidade atinge-os. Nesse momento, poisam ao de leve nas ruas e caminham envoltos no seu corpo de luz.

sábado, 1 de junho de 2019

Meditação Breve (102) Da luz como artifício

Eve Arnold, Gala Opening Metropolitan Opera, New York, 1950

A luz artificial, aquela que faz a glória da nossa civilização, tem o estranho condão de sublinhar o que há de obscuro e umbroso na realidade. Ao tocar num objecto ou numa pessoa, o que se manifesta, mesmo que, embotados pelo hábito, já não o notemos, é a sombra que a envolve.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Impressões 31. Mundos circulares

Ramón Pérez Carrió - Bassa de Santonja, 1989

Há quem sonhe com mundos circulares, possuído por um desejo de perfeição ou um anseio de beatitude. Depois, ao acordar, projecta o sonho no mundo e recebe nos seus olhos a sombra do mistério e o passaporte para o silêncio.

quinta-feira, 30 de maio de 2019

O sal do silêncio (16)

Benvenuto Benvenuti, Alba in padule, 1926

A manhã rompe o silêncio e abre-se sobre o mistérios dos pântanos. As árvores despem o luto e deixam que as cores atraiam para elas os olhares de quem está longe.

domingo, 26 de maio de 2019

Poesia do Viandante (721)

Gerhard Richter - Abstraktes Bild (1995)

721. arquitecturas de água

arquitecturas de água
folhas tecidas
na leveza
do nada
grandes vitrais
tocados
por vozes de pérola
no açafate
dos dias dragados
pela espada da ilusão

(27/12/2016)

sábado, 25 de maio de 2019

Micronarrativa (16) Da salvação

Rudy Burckhardt, Legs of Woman Walking Across Manhole Cover, New York City, 1939

O barulho dos saltos ao bater na chão ecoa ainda na minha memória. De súbito, levanta-se uma tempestade terrível e ela, temerosa, embrulha-se no silêncio da sua sombra. Caminha então como se levitasse ou um anjo a tomasse em seus braços luminosos para a entregar na casa onde um dia de júbilo a aguarda.

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Haikai urbano (47)

Eliot Elisofon, Signs in Kyoto, 1961

Signos e sinais,
na fria chuva de Quioto:
Vida e mistérios.

domingo, 19 de maio de 2019

A concha de Penélope

Frank Eugene, Miss Gladys Lawrence - The Seashell, 1910-13

Ela transportava sempre aquela concha consigo, levando-a, uma vez por outra, ao ouvido. Então, ficava assim durante longos momentos. Depois, como se orasse, apertava-a nas mãos. De seguida, pousava-a e retomava o trabalho, aquele que haveria de desfazer durante a noite. Interrompia-o para sintonizar de novo o mar naquele objecto mágico. Sempre que o fazia, uma sombra cobria-lhe o rosto e uma dor varava-lhe o peito. Também no dia em que, irreconhecível, Ulisses desembarcou em Ítaca, ela levou a concha ao ouvido. O que escutou deu-lhe tal alegria que deixou que o objecto se desprendesse das mãos e se estilhaçasse nas duras lajes do palácio. O mar deixara de lhe falar.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Poesia do Viandante (720)

Gerhard Richter - Abstraktes Bild (1995)

720. um amor de água

um amor de água
dobrado
na dádiva da dor
o carvão do crime
resgatado
à erva esconsa
um símbolo
cindido entre
o gelo e o júbilo

(26/12/2016)