quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Dezoito anos

Kurt Hielscher, Parsberg castle, Germany, 1931

Era filha única e a mais bela rapariga da região, se não mesmo do país. Pretendentes? Não lhe faltavam, mas foram todos rejeitados. Nunca se soube se a rejeição nascia dela ou da intransigência do pai. Correm as duas versões. No dia em que fez dezoito anos fechou-se na torre, na da direita. Nunca mais de lá saiu. Uma criada servia-a. Passava os dias à janela. Quando o pai morreu, nada se alterou a não ser que, passados dois anos, parece ter-lhe nascido uma criança, uma rapariga. Como? Não se sabe. Desde a morte do pai que nenhum homem foi visto no castelo. A criança? Olhe para a janela da outra torre. Está lá desde que fez dezoito anos, precisamente no dia da morte da mãe.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Impressões 12. Quimeras

Izis, Place de la Concorde, Paris, c. 1958

Arcos de água e luz, quimeras que ligam uma à outra margem da escuridão.

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Poesia do Viandante (696)

Julião Sarmento - Sismo (1984)

696. um sismo cisma

um sismo cisma
sentado no cimo
da cabeça de richter
vem trémulo
e tremente
e temente
trazendo
no terror da terra
na luz do aluvião
o dedo de deus

(22/12/2016)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Micronarrativa (5) O branco e o negro

Chris Killip, Cookie in the Snow, Seacoal Beach, Lynemouth, Northumberland, UK, 1991

Exausto, o homem inclina-se perante o vento. Os pés pisam pesados a palidez da neve e o coração, tocado pelo pulsar do sangue, floresce em pensamentos negros ateados pela brancura da paisagem. 

domingo, 16 de dezembro de 2018

Pintura e haikus (3)

Karl Briullov, A Mother Waking Up from Her Child´s Crying, 1831

Um choro na noite
e a mãe logo estremece.
Temor e terror.

sábado, 15 de dezembro de 2018

Meditação Breve (90) Apontar

Ernst Haas, View from Notre Dame, Paris, 1955

Apontar para algo é destacá-lo de um horizonte indefinido, torná-lo singular e, mais que tudo, trazê-lo à vida. O acto de apontar não é uma mera sinalização, mas uma acção criadora que traz ao mundo de quem observa a novidade de um novo ser.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Micronarrativa (4) Compaixão

Tereza Zelenkova, The Unseen, 2015

Não é desejo de ficarem incógnitas, nem cumprimento de imperativo religioso. Apenas, compaixão. A sua beleza é tão cintilante que não há quem possa olhar-lhes o rosto e não seja de imediato levado pela morte.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Poesia do Viandante (695)

Joan Hernández Pijoan, Núvol rosa, 1991

166.  de nuvem a núvol

de nuvem a núvol
assim chego
a la plaça de catalunya
e canto
em catalão
un cel càlid
ennuvolat
de nuvens núbeis
e novelos de rosas

(22/12/2016)

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Impressões 11. Mundos

John Martins, Soap Bubles, sd

Bolas de sabão são reminiscências de mundos que um criador, através do sopro, cria para logo os deixar dissolver  no oceano incompreensível da eternidade.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Micronarrativa (3) Liberdade

Joaquin Sorolla, Otra Margarita, 1892

Guardada por dois polícias, ela encolhe-se no banco e olha desconfiada, como se, no fundo do seu espírito, soubesse que a sua prisão não era o fim da liberdade, mas apenas o começo.

sábado, 8 de dezembro de 2018

Pintura e haikus (2)

Hans Vredeman de Vries, Arquitectura fantástica com personagens, 1568

Colunas de pedra
e sombrias canções de amor.
Sonhos de Verão.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Chegar a tempo

Gerda Taro, Two Republican soldiers with a soldier on a stretcher, Navacerrada Pass, Segovia front, Spain, 1937

Como podem eles comigo? Está luminoso o sol. Já não me dói nada. Sim, sinto-me tão pesado, a cabeça parece feita de chumbo. Vou morrer? Sim, vou morrer. O sol, como é luminoso. Não sei se esta luz é bela, como era a que iluminava a minha casa. Aqui não há beleza. Irei morrer, eles não chegarão a tempo. Ao menos que viesse uma ambulância. Terá valido a pena? E se não tornar a ver o sol, nem a ouvir a voz das raparigas ou o vento a sussurrar na noite? Estão outros a cair e os que me levam vão tão devagar. As balas chegam depressa, demasiado cedo, mas os homens são lentos, demasiado lentos. O corpo agora quase não o sinto e a cabeça pesa tanto. Chegarão a tempo? Chegarão?

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Poesia do Viandante (694)

Julián García Flaquer - Máquina de dibujar (1981)

694. desenho do desejo

desenho do desejo
a máquina
uma geometria
de suplício
na hidráulica
da espera
uma gramática
de vento
terror de tempestade

(22/12/2016)

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Meditação Breve (89) Torres

Andreas Feininger, Sixth Avenue and Rockefeller Center, New York, ca1940

Houve uma altura em que os homens construíram torres para chegarem à morada dos deuses. Hoje, abandonados à sua sorte, constroem-nas para esconderem, entre o orgulho do artifício, a desmedida da sua pequenez.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Impressões 10. Diante do espelho

Oscar Ghiglia, Donna allo specchio

Diante do espelho, a mulher deixa que um segredo lhe deslize pela face, paire, por instantes, no silêncio do quarto e se recolha na sombra onde se esconde o coração.

domingo, 2 de dezembro de 2018

Micronarrativa (2) Revelação

Ingmar Bergman, do filme Morangos Silvestres, 1957

Não te orgulhes da tua juventude, ela passará depressa. Olha o espelho e o que vês nele é o que serás quando os dias se tornarem cinzentos e a derradeira noite se aproximar.

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Micronarrativa (1) Diluição

Alexey Titarenko, Man and Shadow, St. Petersburg, 1994

Um homem abandona-se à própria sombra. Os contornos desfazem-se, a imprecisão apossa-se da figura, o corpo perde solidez, até que um fluido desliza pela parede e um rasto de penumbra corre na sujidade do chão.

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Poesia do Viandante (693)

Jesús de Perceval - La gruta (1966)

693. a graça declina

a graça declina
na gruta
redime em silêncio
o segredo
e secreta sela
de glicínias
o desejo
de figos e água fria

(22/12/2016)

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Haikai urbano (40)

John Florea, Cologne, Germany, 1945

Tudo se desfaz
na angústia da espera.
Cidade em ruínas.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Meditação Breve (88) Peregrinação

Bernice Kolko, Pilgrimage, Ixtapalapa, 1958

Toda a peregrinação é a resposta a uma voz. Ao ouvir o chamamento, o peregrino faz-se ao caminho e dirige-se ao seu destino, esse lugar sagrado onde reside a voz que o chama. Ao chegar, descobre que aquela voz, que de tão longe o chamava, não é senão a sua própria voz.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Impressões 9. Jogo de Xadrez

Alfred Eisenstaedt, Russian chess players, 1954

Sentado, em silêncio, o público olha e espera, enquanto os jogadores pensam no ataque fatal, no destino irremissível de um Rei abandonado pela Rainha e caído do trono.

domingo, 25 de novembro de 2018

Haikai do Viandante (362)

George Inness, A Breezy Autumn, 1887

Os campos desertos,
sombras de sol e silêncio.
Vendaval de Outono.

sábado, 24 de novembro de 2018

A casa

Deborah Turbeville

A casa era grande e a porta estava aberta. Não hesitei. Recebeu-me o silêncio. Uma luz suave vacilava ao cair. Por vezes, irrompia um cântico. Parecia gregoriano, mas não era uma língua humana o que se ouvia. Passei por elas muitas vezes, mas nunca deram por mim. Iam e vinham. Sentavam-se aqui ou ali. Vi-as deitadas. Sempre silenciosas até que se juntavam e o canto voltava. Nessas alturas, o meu coração abrasava. Não sei se deambulei ali dias, meses, anos. Sei que um dia exclamei “estou morto!” Nesse instante, tudo desapareceu. Eu estava na rua e esperava o autocarro. Ele chegou, entrei e sentei-me. Então o canto voltou e elas sentaram-se à minha volta. Uma murmurou: a tua casa aguarda-nos.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Poesia do Viandante (692)

Salvador Soria, Integración de lo destruido 91-H, 1991

692. a destruição desce

a destruição desce
pelo poema
um sinal
uma sirene
a matéria da vida
bate e rebate
com o martelo
da solidão
no cinzel da cizânia

(21/12/2016)

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

A sombra

Pierre Dubreuil, Jazz, 1939

A música que se escutava naquele dia talvez não pertencesse a este mundo. Quem sabe? As coisas são muito mais estranhas do que parecem. Os músicos tocavam e o par, o único que se atrevia na pista, dançava extasiado. Talvez estivessem apaixonados. Os seus corpos unidos pelo ritmo pareciam ter-se libertado do império da gravidade. Quando o frenesim cedeu ao que se podia chamar um andamento larghissimo, o par quase parou. Uma invulgar - não sei que outra palavra possa utilizar - emanação desprendeu-se deles. É aquela sombra que vê na parede. Eles desapareceram há muito, mas a sua sombra ali está, inamovível, para comprovar que eram tão reais como eu ou você, ou esta música que nos envolve ao dançarmos.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Pintura e haikus (1)

Nicolas Poussin, A Dance for the Music of Time, 1634-36

Um Janus bifronte
ouve a música do tempo.
Princípio e fim.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Meditação Breve (87) Músicos de rua

August Sander, Street Musicians in Cologne, 1928

Os músicos de rua não são seres humanos, mas anjos que desceram dos céus para trazerem ao inóspito deserto das cidades sobrepovoadas uma reminiscência da água que corre no paraíso.

sábado, 17 de novembro de 2018

A placenta

Alfred Eisenstaedt, Richard Schafer studying complicated formula on blackboard at the IAS, 1947

Como era habitual, chegava cedo, sentava-se e contemplava as fórmulas. Bem o pode afirmar, vivia para a álgebra. Não me interrompa, peço. Deixe-me contar o que se passou. Por vezes, levantava-se, pegava no giz e ensaiava alguma coisa e tornava a sentar-se. Apenas falava com o empregado que lhe trazia comida. Era parco nas palavras. Nesse dia, parecia inquieto. Desenhou o círculo que se vê no centro do quadro. Não sei álgebra para lhe dizer se é um zero ou a letra o. Sei que depois de o desenhar, espetou o dedo no centro do círculo. Este abriu-se - parecia uma placenta, assegura quem viu -, sugou-o, enquanto ele cantava, e tornou a fechar-se. Estes são os factos, o resto não passa de especulação.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Poesia do Viandante (691)

Willi Baumeister, Apolo, con figura dispuesta oblicuamente, (1922)

691. um ardiloso apolo

um ardiloso apolo
vai por campos
de juncos e rosas
e cego escuta
no sibilo da serpente
no grito do grifo
a música do medo
a alegria das musas

(21/12/2016)

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Impressões 8. A medida humana

Alfred Eisenstaedt, Multnomah Falls, OR, 1938

Um grego, Protágoras, tomado pela ilusão, disse, um dia, que o homem era medida de todas as coisas. Talvez pensasse que não haveria razão acima da razão humana. O mais certo, porém, é que apenas, perante o desmedido, ensaiasse uma fuga da inultrapassável pequenez humana.