quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Poesia do Viandante (693)

Jesús de Perceval - La gruta (1966)

693. a graça declina

a graça declina
na gruta
redime em silêncio
o segredo
e secreta sela
de glicínias
o desejo
de figos e água fria

(22/12/2016)

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Haikai urbano (40)

John Florea, Cologne, Germany, 1945

Tudo se desfaz
na angústia da espera.
Cidade em ruínas.

terça-feira, 27 de novembro de 2018

Meditação Breve (88) Peregrinação

Bernice Kolko, Pilgrimage, Ixtapalapa, 1958

Toda a peregrinação é a resposta a uma voz. Ao ouvir o chamamento, o peregrino faz-se ao caminho e dirige-se ao seu destino, esse lugar sagrado onde reside a voz que o chama. Ao chegar, descobre que aquela voz, que de tão longe o chamava, não é senão a sua própria voz.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Impressões 9. Jogo de Xadrez

Alfred Eisenstaedt, Russian chess players, 1954

Sentado, em silêncio, o público olha e espera, enquanto os jogadores pensam no ataque fatal, no destino irremissível de um Rei abandonado pela Rainha e caído do trono.

domingo, 25 de novembro de 2018

Haikai do Viandante (362)

George Inness, A Breezy Autumn, 1887

Os campos desertos,
sombras de sol e silêncio.
Vendaval de Outono.

sábado, 24 de novembro de 2018

A casa

Deborah Turbeville

A casa era grande e a porta estava aberta. Não hesitei. Recebeu-me o silêncio. Uma luz suave vacilava ao cair. Por vezes, irrompia um cântico. Parecia gregoriano, mas não era uma língua humana o que se ouvia. Passei por elas muitas vezes, mas nunca deram por mim. Iam e vinham. Sentavam-se aqui ou ali. Vi-as deitadas. Sempre silenciosas até que se juntavam e o canto voltava. Nessas alturas, o meu coração abrasava. Não sei se deambulei ali dias, meses, anos. Sei que um dia exclamei “estou morto!” Nesse instante, tudo desapareceu. Eu estava na rua e esperava o autocarro. Ele chegou, entrei e sentei-me. Então o canto voltou e elas sentaram-se à minha volta. Uma murmurou: a tua casa aguarda-nos.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Poesia do Viandante (692)

Salvador Soria, Integración de lo destruido 91-H, 1991

692. a destruição desce

a destruição desce
pelo poema
um sinal
uma sirene
a matéria da vida
bate e rebate
com o martelo
da solidão
no cinzel da cizânia

(21/12/2016)

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

A sombra

Pierre Dubreuil, Jazz, 1939

A música que se escutava naquele dia talvez não pertencesse a este mundo. Quem sabe? As coisas são muito mais estranhas do que parecem. Os músicos tocavam e o par, o único que se atrevia na pista, dançava extasiado. Talvez estivessem apaixonados. Os seus corpos unidos pelo ritmo pareciam ter-se libertado do império da gravidade. Quando o frenesim cedeu ao que se podia chamar um andamento larghissimo, o par quase parou. Uma invulgar - não sei que outra palavra possa utilizar - emanação desprendeu-se deles. É aquela sombra que vê na parede. Eles desapareceram há muito, mas a sua sombra ali está, inamovível, para comprovar que eram tão reais como eu ou você, ou esta música que nos envolve ao dançarmos.

quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Pintura e haikus (1)

Nicolas Poussin, A Dance for the Music of Time, 1634-36

Um Janus bifronte
ouve a música do tempo.
Princípio e fim.

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Meditação Breve (87) Músicos de rua

August Sander, Street Musicians in Cologne, 1928

Os músicos de rua não são seres humanos, mas anjos que desceram dos céus para trazerem ao inóspito deserto das cidades sobrepovoadas uma reminiscência da água que corre no paraíso.

sábado, 17 de novembro de 2018

A placenta

Alfred Eisenstaedt, Richard Schafer studying complicated formula on blackboard at the IAS, 1947

Como era habitual, chegava cedo, sentava-se e contemplava as fórmulas. Bem o pode afirmar, vivia para a álgebra. Não me interrompa, peço. Deixe-me contar o que se passou. Por vezes, levantava-se, pegava no giz e ensaiava alguma coisa e tornava a sentar-se. Apenas falava com o empregado que lhe trazia comida. Era parco nas palavras. Nesse dia, parecia inquieto. Desenhou o círculo que se vê no centro do quadro. Não sei álgebra para lhe dizer se é um zero ou a letra o. Sei que depois de o desenhar, espetou o dedo no centro do círculo. Este abriu-se - parecia uma placenta, assegura quem viu -, sugou-o, enquanto ele cantava, e tornou a fechar-se. Estes são os factos, o resto não passa de especulação.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Poesia do Viandante (691)

Willi Baumeister, Apolo, con figura dispuesta oblicuamente, (1922)

691. um ardiloso apolo

um ardiloso apolo
vai por campos
de juncos e rosas
e cego escuta
no sibilo da serpente
no grito do grifo
a música do medo
a alegria das musas

(21/12/2016)

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Impressões 8. A medida humana

Alfred Eisenstaedt, Multnomah Falls, OR, 1938

Um grego, Protágoras, tomado pela ilusão, disse, um dia, que o homem era medida de todas as coisas. Talvez pensasse que não haveria razão acima da razão humana. O mais certo, porém, é que apenas, perante o desmedido, ensaiasse uma fuga da inultrapassável pequenez humana.

sábado, 10 de novembro de 2018

Haikai urbano (39)

Gustave Caillebotte, Paris Street-Rainy Weather, 1877

A chuva desliza
sobre as ruas da cidade.
Sombras de Outono.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Meditação Breve (86) Bandeiras

Thomas Hoepker, Celebrating the German reunification in Berlin. Waving the German flag at Berlin’s Brandenburg Gate, October 3, 1990

Que estranha relação há entre o coração dos homens e o ondular colorido das bandeiras. As mãos erguem-nas como se o corpo fosse demasiado pesado para elevar aos céus o devaneio exuberante do sentimento.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Poesia do Viandante (690)

Joan Hernández Pijoan - Casa i xiprer (1988)

690. o súbito cipreste

o súbito cipreste
no caminho de casa
é uma gramática
de recordações
recortada
na morfologia
do memória
na sintaxe
do sentimento

(21/12/2016)

domingo, 4 de novembro de 2018

Impressões 7. Distorção

Erwin Blumenfeld, Portrait, Solarised and Cut, 1937

Ali, onde a imagem se distorce, começa o longo e sinuoso caminho que conduz à verdade. Desfeita a ilusão da bela imagem, estilhaçado o véu, a realidade surge por dentro da incongruência.

sábado, 3 de novembro de 2018

Meditação Breve (85) Entre mundos

Alexey Titarenko, Untitled, (Three Women Selling Cigarettes), St. Petersburg, Russia, 1992

É sempre dolorosa a passagem entre mundos. Na terra de ninguém, a vida torna-se avara e turva. Resta apenas agarrar o que estiver à mão. O tempo passa, o velho mundo dilui-se, mas a maioria fica presa no limbo de onde é impossível avistar o que os deuses, para perdição dos homens, trouxeram.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Haikai urbano (38)

Erwin Blumenfeld, Fashion photo for Vogue at the Eiffel Tower, Paris, France, 1939

Do cimo da torre
um anjo vela a cidade.
Luzes e rumores.

sábado, 27 de outubro de 2018

Poesia do Viandante (689)

Jackson Pollock - Burning Landscape (1943)

689. fogos de verão

fogos de verão
abismam-se
em ânsia
de água
e verde-musgo
no vitral
do inverno

(21/12/2016)

domingo, 30 de setembro de 2018

Impressões 6. Geometria

Kurt Hielscher, Wiesenkirche, Soest, Westfalen, 1931 

Não há, no mundo, ordem maior que a da geometria. Ela desceu sobre os homens para os retirar do caos e dar-lhes a claridade que afugenta os monstros, as tempestades ou a inquietude do coração.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Haikai do Viandante (361)

John Stewart, Entrée du Vallée d'Ossau, 1852

Um cântico preso
ao silêncio da montanha.
Murmúrios de água.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Meditação breve (84) Loucura

Raoul Hausmann, Corbeilles de lumière, 1931

Loucura é o desejo de descrever o mundo até ao ínfimo pormenor, não esquecer nada, anotar cada sobressalto trazido pelo vento, a sensação de passar os dedos pelo corrimão ou a indiferença com que se desce o último degrau de uma escada que se conhece desde sempre. Loucura é não suportar um cemitério tecido de esquecimento.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Impressões 5. Passado

Jean Dieuzaide, Catalogne romane, San Jaime de Frontanya, 1957

Por que é o passado tão perfeito? Porque é o paraíso de onde, sem apelo, foste expulso e ao qual, apesar da beleza do seu chamamento, nunca voltarás.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (688)

Aubrey Williams - Bone Heap (1959)

688. no lago da linguagem

no lago da linguagem
húmidas vêm
as palavras
para que mãos
as movam
na música das sílabas

(21/12/2016)

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Impressões 4. Pequenez

Andreas Feininger, Bernini’s Peristyle, St. Peter’s Square, approx. 1960

Não são as colunas que, no seu desejo de se elevarem, são desmesuradas. És tu que, incapaz de te ergueres, és pequeno, demasiado pequeno para o mundo que te cabe suportar.

domingo, 23 de setembro de 2018

Haikai urbano (37)

Armando Salas Portugal, Torres de Satélite, c. 1958

Cidade dos sonhos,
Babel de ferro e betão.
Sombra sem história.

sábado, 22 de setembro de 2018

Meditação breve (83) Segredos

Julia Margaret Cameron, Enid, 1874

Deve ser sempre com recato e temor que se abre a porta de um velho armário. Nunca se sabe que segredos esquecidos o esquivo coração ali guarda.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Impressões 3. Separação

Gaston Xhardez, La fenêtre volante, Prémonition à un monde futur, ca 1957-1958

O que separa o homem do céu? A ordenada opacidade dos vidros e a terna tentação do fruto proibido. Sempre que, inquieto e ávido, quer abrir a janela é a maçã que se prende ao desvario dos dedos.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (687)

Elmer Bischoff, # 104, 1987

687. a harpa da incerteza

a harpa da incerteza
ressoa no mar
da memória
incêndio e sangue
incenso e saudade
as cordas dedilhadas
na asa do corvo
na fenda da fantasia

(21/12/2016)