sábado, 10 de novembro de 2018

Haikai urbano (39)

Gustave Caillebotte, Paris Street-Rainy Weather, 1877

A chuva desliza
sobre as ruas da cidade.
Sombras de Outono.

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Meditação Breve (86) Bandeiras

Thomas Hoepker, Celebrating the German reunification in Berlin. Waving the German flag at Berlin’s Brandenburg Gate, October 3, 1990

Que estranha relação há entre o coração dos homens e o ondular colorido das bandeiras. As mãos erguem-nas como se o corpo fosse demasiado pesado para elevar aos céus o devaneio exuberante do sentimento.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

Poesia do Viandante (690)

Joan Hernández Pijoan - Casa i xiprer (1988)

690. o súbito cipreste

o súbito cipreste
no caminho de casa
é uma gramática
de recordações
recortada
na morfologia
do memória
na sintaxe
do sentimento

(21/12/2016)

domingo, 4 de novembro de 2018

Impressões 7. Distorção

Erwin Blumenfeld, Portrait, Solarised and Cut, 1937

Ali, onde a imagem se distorce, começa o longo e sinuoso caminho que conduz à verdade. Desfeita a ilusão da bela imagem, estilhaçado o véu, a realidade surge por dentro da incongruência.

sábado, 3 de novembro de 2018

Meditação Breve (85) Entre mundos

Alexey Titarenko, Untitled, (Three Women Selling Cigarettes), St. Petersburg, Russia, 1992

É sempre dolorosa a passagem entre mundos. Na terra de ninguém, a vida torna-se avara e turva. Resta apenas agarrar o que estiver à mão. O tempo passa, o velho mundo dilui-se, mas a maioria fica presa no limbo de onde é impossível avistar o que os deuses, para perdição dos homens, trouxeram.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Haikai urbano (38)

Erwin Blumenfeld, Fashion photo for Vogue at the Eiffel Tower, Paris, France, 1939

Do cimo da torre
um anjo vela a cidade.
Luzes e rumores.

sábado, 27 de outubro de 2018

Poesia do Viandante (689)

Jackson Pollock - Burning Landscape (1943)

689. fogos de verão

fogos de verão
abismam-se
em ânsia
de água
e verde-musgo
no vitral
do inverno

(21/12/2016)

domingo, 30 de setembro de 2018

Impressões 6. Geometria

Kurt Hielscher, Wiesenkirche, Soest, Westfalen, 1931 

Não há, no mundo, ordem maior que a da geometria. Ela desceu sobre os homens para os retirar do caos e dar-lhes a claridade que afugenta os monstros, as tempestades ou a inquietude do coração.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Haikai do Viandante (361)

John Stewart, Entrée du Vallée d'Ossau, 1852

Um cântico preso
ao silêncio da montanha.
Murmúrios de água.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Meditação breve (84) Loucura

Raoul Hausmann, Corbeilles de lumière, 1931

Loucura é o desejo de descrever o mundo até ao ínfimo pormenor, não esquecer nada, anotar cada sobressalto trazido pelo vento, a sensação de passar os dedos pelo corrimão ou a indiferença com que se desce o último degrau de uma escada que se conhece desde sempre. Loucura é não suportar um cemitério tecido de esquecimento.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Impressões 5. Passado

Jean Dieuzaide, Catalogne romane, San Jaime de Frontanya, 1957

Por que é o passado tão perfeito? Porque é o paraíso de onde, sem apelo, foste expulso e ao qual, apesar da beleza do seu chamamento, nunca voltarás.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (688)

Aubrey Williams - Bone Heap (1959)

688. no lago da linguagem

no lago da linguagem
húmidas vêm
as palavras
para que mãos
as movam
na música das sílabas

(21/12/2016)

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Impressões 4. Pequenez

Andreas Feininger, Bernini’s Peristyle, St. Peter’s Square, approx. 1960

Não são as colunas que, no seu desejo de se elevarem, são desmesuradas. És tu que, incapaz de te ergueres, és pequeno, demasiado pequeno para o mundo que te cabe suportar.

domingo, 23 de setembro de 2018

Haikai urbano (37)

Armando Salas Portugal, Torres de Satélite, c. 1958

Cidade dos sonhos,
Babel de ferro e betão.
Sombra sem história.

sábado, 22 de setembro de 2018

Meditação breve (83) Segredos

Julia Margaret Cameron, Enid, 1874

Deve ser sempre com recato e temor que se abre a porta de um velho armário. Nunca se sabe que segredos esquecidos o esquivo coração ali guarda.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Impressões 3. Separação

Gaston Xhardez, La fenêtre volante, Prémonition à un monde futur, ca 1957-1958

O que separa o homem do céu? A ordenada opacidade dos vidros e a terna tentação do fruto proibido. Sempre que, inquieto e ávido, quer abrir a janela é a maçã que se prende ao desvario dos dedos.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (687)

Elmer Bischoff, # 104, 1987

687. a harpa da incerteza

a harpa da incerteza
ressoa no mar
da memória
incêndio e sangue
incenso e saudade
as cordas dedilhadas
na asa do corvo
na fenda da fantasia

(21/12/2016)

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Haikai do Viandante (360)

Pere Ysern i Alié, Bois de Boulogne, 1921

Árvores de Outono
inclinam-se para o lago.
Cisnes, luz e água.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Meditação breve (82) Sombra

Thomaz Farkas, São Paulo, 1950

Sombra não é aquilo que um corpo, batido pela luz, projecta. Sombra é o lugar de onde os corpos nascem e para onde voltam depois de a luz, por um instante, os ter tocado.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Impressões 2. A cadeira vazia

Walde Huth, c. 1950-51

A cadeira vazia espera-te. E sentado poderás ouvir o murmúrio das águas, o repicar dos sinos, a cavalgada do vento sobre a copa das árvores, se um vendaval se aproxima e mortas as folhas esvoaçam ao teu redor.

domingo, 16 de setembro de 2018

Impressões 1. Esses lugares

Max Baur, Park Sanssouci, 1930s

Esses lugares onde o silêncio cresce, desenha paisagens de névoa e, de súbito, desaba sobre o segredo dos ciprestes. Esses lugares onde a solidão se abre para o mistério da sombra e solícita soletra o teu nome.

sábado, 15 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (686)

Elmer Bischoff, # 50, 1980

686. a cólera dos deuses

a cólera dos deuses
no tumulto
do sentimento
o vulcão expele
a lava
da angústia
na quimera coroada
pelo ardor da alegria

(21/12/2016)

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Haikai do Viandante (359)

William Henry Fox Talbot, A Fruit Piece, 1845

Naturezas mortas
descansam sobre a mesa.
Frutos e silêncio.

domingo, 9 de setembro de 2018

Meditação breve (81) Passado

Roberto Rive, House of Marco Olconio, Pompeii, 1860s

Quando nos deparamos com aquilo a que se chama vestígios do passado nunca reparamos no equívoco que é ver nesses objectos algo que pertence ao passado. Eles são uma pura presença, um presente e dizem alguma coisa sobre nós e nada sobre aquilo que passou. É sobre este equívoco que se constrói uma disciplina a que se dá o nome de História, essa colecção de preconceitos com que disfarçamos o presente na imaginação de um passado que nunca existiu.

sábado, 8 de setembro de 2018

Naufrágios

Francis James Mortimor, Wreck of sailing ship Arden Craig, 1911

Quantas vezes nos salvamos de um naufrágio e, pensando estar a salvo, nos vemos náufragos sem colete de salvação nem barco salva-vidas? Há os naufrágios que nos acontecem e há o naufrágio que transportamos dentro de nós. Dos primeiro, por vezes, ainda podemos fugir. Do último, há que enfrentá-lo, pois ninguém pode fugir de si mesmo, do naufrágio que transporte em si. Aí começa a sabedoria.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Meditação breve (80) Fé

Ed van der Elsken, Prinsenhofsteeg, Amsterdam, 1949

A fé, essa que fé que leva um ser humano a ajoelhar perante o que o transcende, não nasce de um dogma ou de uma autoridade mas do espanto que sempre está presente no encantamento.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Poesia do Viandante (685)

Elmer Bischoff - # 1 (1974)

685. nas grandes planicies

nas grandes planícies
de mármore
pássaros de erva
poisam
azuis e aluados
no  lacre da primavera

(21/12/2016)

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Haikai do Viandante (358)

John Constable, Cloud Study, 1822

Nuvens são segredos
de sombra, sol e silêncio.
Vertigem e vento.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

A ruína

Deborah Turbeville, Vera Abrusova, Stroganov Palace, 1996

Sim, conheço-a muito bem. Pelo menos, o suficiente para trocar com ela, de quando em quando, algumas palavras. De circunstância? Não, ela nunca fala para preencher o vazio ou para matar a solidão. Vive só, claro, mas não é uma solitária. Quando herdou o palácio, ele já estava em ruínas. Um dia, disse-me que tinha hesitado muito sobre o destino a dar ao destroço que tinha recebido. Quando o filho, o único que tinha, morreu, abandonou o marido, o mundo, e veio viver para ali. Disse-me que, a partir de então, aquele seria o seu elemento natural. Também ela era uma ruína sem futuro. Pálida, sorriu, como se pedisse desculpa, e entrou pela porta decrépita que não procurou fechar.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

Biografias 16. O homem do acordeão

Edith Tudor-Hart, London, c.1931

Lentamente, quase como se o tempo não existisse, o homem percorre as ruas. Não olho para o que se passa à sua volta, apenas faz deslizar os dedos e escuta a música que ele mesmo descobre no fundo da sua sombria solidão.