sábado, 10 de dezembro de 2016

Da vida dos sonhos

David Lynch - A Bug Dreams of Heaven (1992)

Há a ilusão que o sonho é o veículo de uma comunicação entre o sonhador e uma qualquer realidade de natureza espiritual que reside num além. A ilusão nasce, em primeiro lugar, da cisão que leva a pensar na existência de um aquém e de um além. Em segundo lugar, da ocultação - embora as diversas escolas psicanalíticas tenham chamado a atenção para o equívoco - de que, no sonho, o espírito comunica consigo mesmo. Sendo como o vento, ele sopra onde quer. Fala do passado e fala do futuro, mas fá-lo sempre porque quer falar do presente, desse puro acontecer aqui e agora e no qual se manifesta toda a eternidade. 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (595)

Iago Pericot - 41 inclinacions (1968)

595. o tempo inclina

o tempo inclina
a erva
do espaço
muro em delírio
parede de pálpebras
a sombra
branquinegra
perdida no
oblívio oblíquo
do anoitecer

(04/12/2016)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

A página em branco

Enrique Clement - La máquina de escribir, Blanco y Negro (1930)

Sentava-me e começava a escrever. Os textos cresciam ao ritmo da agilidade dos dedos. Inventava e reinventava histórias, como se a cornucópia da abundância tivesse sido derramada sobre mim. Um dia, porém, as teclas da máquina de escrever pareceram-me ligeiramente presas. Limitei-me a empregar mais de força nos dedos. No dia seguinte, tudo voltou ao normal. Passado semanas, tornou a acontecer. Nesse dia tive uma tontura. Mas, na manhã seguinte, a escrita fluía sem parar. Passados dois dias, os dedos foram impotentes para carregar nas teclas. Sobre mim desceu um grande nevoeiro. Até hoje. Esta é a última página que coloquei na máquina. Em branco.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (308)

Vincent Van Gogh - Estudio con abetos rojos en otoño (1889)

sobre os abetos
desce uma luz vermelha
folhas de outono

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Reabrir a porta

Pierre Bonnard - La Porte Ouverte (1910)

Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus. (João 3:3)

O momento do nascimento é o da primeira abertura da porta. A incomensurabilidade da existência está ali plena e totalmente disponível para o recém-nascido. A partir desse momento, por uma necessidade inelutável de sobrevivência, a educação – seja ela de que tipo for – encarrega-se de fechar a porta. Resta à maioria dos homens espreitar pelo buraco da fechadura. A isso chamam compreender a realidade. Alguns, porém, descobrem que a porta fechada já tinha estado escancarada. Abrir de novo a porta passa a ser então a sua missão. A isto chamou João, o Evangelista, nascer de novo.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (594)

Wassily Kandinsky - Composition VI (1913)

594. o ondulado da harmonia

o ondulado da harmonia
arde em silêncio
no lume brando
do caos
no fogo
de um odor azul
em êxtase
na louca loucura
dos vermelhos
tintos de luz e mágoa

(08/11/2016)

domingo, 4 de dezembro de 2016

Partir pedra

George Seurat - The Stone Breaker (1882)

Ao domingo, descansava. Nos outros dias da semana, porém, trabalhava o dia inteiro. Partia pedras e acumulava-as em grandes montes. Infatigavelmente. Por vezes, repousava e bebia água ou comia alguma coisa. Logo voltava à tarefa, sem desfalecimento. Não, nunca vi sair dali qualquer pedra ou tirar proveito do terreno livre das pedras. Estas eram partidas e amontoadas. Não tinha com ele qualquer proximidade, mas um dia perguntei-lhe a razão do seu trabalho. Olhou-me estupefacto. Havia nos seus olhos uma ironia matizada pelo cansaço. Respondeu-me: e para que serve o seu? E continuou.

sábado, 3 de dezembro de 2016

O espírito e a obra de arte

Joerg Immendorff - Anbetung des Inhalts (1985)

Existem obras de arte - pinturas, poemas, romances, peças musicais, etc. - cujo conteúdo provoca uma verdadeira adoração, permitindo que entre elas e o público se estabeleça uma relação religiosa, no sentido em que o vocábulo religião é derivado de re-ligação. O que acontece é que o espírito e a obra se reconhecem um ao outro como partes de um mesmo todo. Ao reconhecerem-se formam uma totalidade que está para além das visões parcelares com que os homens interpretam os acontecimentos do mundo. Esse encontro entre o espírito e a obra eleva o homem para um além que não apenas é incomensurável com aquilo a que chamamos realidade como lhe permite, apesar dessa incomensurabilidade, compreendê-la de forma mais ampla e profunda.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Sagradas famílias

Pablo Picasso - Familia a orillas del mar (1922)

Neste quadro de Picasso, Família à beira mar, de 1922, podemos compreender a capacidade de metamorfose do espírito e a relação deste com aquilo que Carl Gustav Jung denominou de arquétipos. Olhamos o quadro e percebemos de imediato que, apesar da forma como os figurantes se apresentam nesta cena à beira mar, estamos perante uma refiguração da Sagrada Família. A própria ideia de Sagrada Família, tal como é dada no presépio de Belém, é já um momento refigurativo de uma experiência triangular entre o homem, a mulher e a criança bem mais arcaica. O espírito na sua infinita inquietude exprime-se então nesta tensão entre aquilo que é sempre novo e o que é permanente.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (593)

Georgia O'keeffe - Abstraction, white rose nº 2 (1927)

593. a rosa desliza branca

a rosa desliza branca
na pétala vil
da inocência
vai desvalida
e desavinda
corola de pudor
na aurora da boca
do deus tocado
tocado
pela harpa do desejo

(08/11/2016)

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (307)

Wassily Kandinsky - Autumn in Bavaria (1908)

fogos de outono
descem frios nas folhas mortas
queda e solidão

terça-feira, 29 de novembro de 2016

A verdadeira face

James Ensor - O teatro de máscaras (1908)

Raramente se pensa, ao valorizar a dimensão ética da pessoa, a presença nela, como pertencente ao seu núcleo, da máscara social - a dimensão da persona - que possui o duplo efeito de proteger o indivíduo nos seus contactos sociais e de distorcer a verdadeira face que se esconde sob a máscara e aniquila a autenticidade.  Deste ponto de vista, a pessoa é já uma inautenticidade. A vida espiritual é a viagem que conduz da máscara à verdadeira face, da pessoa ao si-mesmo. O perigo, porém, é grande, pois a verdadeira face pode ser sentida pelo outro como uma ameaça terrível e pelo próprio como uma fragilidade inultrapassável.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O vento

Felix Vallotton - The Wind (1910)

O vento sopra onde quer, e ouves a sua voz, 
mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; 
assim é todo aquele que é nascido do Espírito. (João 3:8)

Não por acaso, o vento - ou o sopro - é tomado como símbolo da vida espiritual. João diz-nos que nada sabemos daqueles que nascem do espírito. Não sabemos nem a sua origem nem o seu destino. Estão subtraídos à dinâmica da história, como se estivessem acima e para além dela. O vento como símbolo do espírito e da vida espiritual diz-nos ainda outra coisa. O vento suave pode refrescar e tornar a existência aprazível, mas o vendaval tem o poder de destruir. É um equívoco olhar para a vida espiritual como um mero exercício de consolação. Ela é também, e muitas  vezes, a violência que destrói os edifícios anquilosados onde tomou forma e que já não contêm a sua infinita ânsia de liberdade.

domingo, 27 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (592)

Georgia O'keeffe - Black abstraction (1927)

592. negro sobre negro

negro sobre negro
uma sombra
de azeviche
cai
na brancura do papel
e inunda
de abstracção
as asas brancas
e pálidas
do anjo perdido
no negror da noite

(08/11/2016)

sábado, 26 de novembro de 2016

Entre dois mundos

Yasuo Kuniyoshi - Between two worlds (1939)

Houve uma época em que era moda falar da condição humana. Como todas as modas, também essa passou. Hoje em dia ninguém fala da condição humana. Não é que a humanidade tivesse perdido a sua condição, esta, porém, deixou de lhe interessar e tornou-se-lhe estranha. A condição do homem é a de estar entre dois mundos. Entre o visível e o invisível, como referia Platão no Fédon. Entre o tempo e a eternidade. Entre a terra e o céu, segundo a tradição do taoismo. Estar entre dois mundos não é apenas possuir um lugar, mas também uma função, a função de mediador, aquele que estabelece ligação entre o que está em baixo e o que está no alto. Esta é a condição humana.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (306)

Gustave Caillebotte - Rua de Paris em tempo chuvoso (1877)

envolta em chuva
a noite cai na cidade
água e solidão

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Armar espantalhos

Arturo Souto Feijoo - Espantallo (1934)

Nunca os processos de educação dos seres humanos preparam estes para a liberdade espiritual. Essa liberdade, pela sua vastidão e pela sua profundidade, quando suspeitada, é sentida como um perigo. O espírito tem medo de si próprio, sente-se como uma ameaça para a ingénua tranquilidade em que foi educado. Como o agricultor que vê as suas colheitas ameaçadas pela liberdade das aves, o espírito entretém-se a armar espantalhos para se defender de si mesmo e evitar o confronto com o terrível que a sua liberdade traz.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (591)

Julião Sarmento - Amazonas (1992)

591. semeio flores e florestas

semeio flores e florestas
nas margens
do rio amazonas
onde vestidas de luz
e espadas
cavalgam
mulheres de torso
azul
e olhos outonados
na face fria
de uma amazona

(22/10/2016)

terça-feira, 22 de novembro de 2016

A voz

Giovanni Boldini - La Cantante Mondane (c. 1884)

O público estava em êxtase, preso naquela voz, como se só ela existisse. A diva, porém, tinha o ar de quem já não podia ver o pianista e assustava-se até com a própria voz. Olhava as pessoas como se formassem um bando de harpias e tremia. Por vezes, parecia suspender o canto, emudecer, mas não. O que me espantou foi ninguém ter dado por nada quando o corpo dela ficou hirto. Depois estremeceu e começou a apagar-se. Primeiro, perdeu os contornos, a seguir tornou-se uma sombra, uma névoa e, por fim, desapareceu. Só a voz persistiu, mais bela que nunca, enlouquecendo quem a ouvia.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O cavalo de Tróia

Lovis Corinth - The Trojan horse (1924)

Nos dias de hoje tornou-se natural interpretar as narrativas míticas como uma reminiscência - por norma, distorcida - de acontecimentos reais. O efeito é rasurar a carga simbólica que a narrativa mítica traz consigo e, através dessa rasura, pôr de lado a natureza espiritual que o mito concentra em si e desencadeia naquele que o escuta e o perscruta. O cavalo de Tróia não foge à regra. As leituras ficcionais ou científicas anulam o ensinamento espiritual que o mito traz consigo. Muitas vezes, o espírito ilude-se a si mesmo e, julgando-se vencedor da aventura espiritual que elegeu, traz para si, como se fosse um prémio, o cavalo de Tróia que tornará patente a sua derrota e a ilusão em que persistia. 

domingo, 20 de novembro de 2016

Domingo de chuva

Émile Jourdan - Pluie à Pont-Aven (1900)

Os domingos são sempre dias onde se manifesta uma qualquer anormalidade. Por vezes, é a melancolia de uma tarde de sol que anuncia a desadequação à norma. Um domingo chuvoso traz consigo o mesmo poder simbólico. Não apenas retém os seres humanos nas suas casas, como é sentido como uma estranha injunção para que se recolham em si mesmos e, por um momento, esqueçam, nesse recolhimento, a inclinação para se dispersarem, movidos pelo fascínio que o mundo sobre eles exerce. Recolher-se em si, ainda que por instantes, é já um confronto consigo mesmo, um questionar sobre quem se é e sobre a vida que se tem. São perigosos os domingos de chuva.

sábado, 19 de novembro de 2016

Da ambiguidade da memória

Gino Severini - Memories of a Journey (1911)

A memória traz consigo, devido à sua própria natureza, uma ambiguidade que não deixa de assombrar a vida espiritual dos homens. Toda a vida espiritual tem uma dimensão de rememoração, de anamnese, onde o exercício da reminiscência liga o sujeito ao fio condutor de uma tradição. O exercício memorial, porém, pode constituir um fascínio de tal modo poderoso que desliga o homem da sua própria viagem, e esta é sempre um estar no presente, uma atenção plena e total ao puro acontecer no aqui e no agora.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (590)

Jesús María Cormán - 5.8 Richter scale (2001)

590. poeiras sobre poeiras

poeiras sobre poeiras
erguem-se
ao som
de um violino
e tudo ondula
na onda sonora
de uma sequência
ordenada
ao ritmo
da escala de richter

(22/10/2016)

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Acerca da definição

Albert Porta - Book of Definitions (1978)

Uma das inclinações mais notáveis do espírito humano é a de se entregar ao trabalho da definição. Definir significa antes de mais limitar. Assinalado um território assim limitado, passa-se ao processo da sua caracterização para lhe dar um sentido. Contudo, nesta tarefa que está na base da filosofia e da ciência há um tal estreitamento do horizonte que o mesmo espírito sente toda a definição como um produto estranho e, em última análise, ameaçador. É por isso que a vida espiritual é uma revolta contínua contra a definição, uma guerra sem parar do espírito consigo mesmo, contra aquilo que nele é tendência mórbida e inelutável para a limitação.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (305)

Benvenuto Benvenuti - Cipresse e colombe (194)

pombas e ciprestes
murmuram ao cair noite
vento e solidão

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Pastores sem ovelhas

Pére Pruna - O Bom Pastor (1950-55)

No epíteto de Bom Pastor não emerge apenas a bondade como traço de carácter ou como qualidade técnica na condução do rebanho. Surge também a ideia de rebanho. O problema que se coloca às religiões do Livro - nomeadamente, ao Cristianismo - é que vivemos numa época em que os homens deixaram de se compreender como ovelhas de um rebanho. Este é o drama das igrejas cristãs e o terror dos clérigos muçulmanos. Que fazer com homens que dispensam pastores? Estarão eles condenados a uma vida destituída de relação com o espiritual? Nada aponta nesse sentido. Pelo contrário. O que os homens de hoje em dia dispensam não é a vida do espírito, mas o serem transformados em eternas crianças - em ovelhas de um rebanho - entregues à guarda de pastores que, muitas vezes, estão longe de serem bons. Pensar por si mesmo, essa injunção do Iluminismo, não é uma revolta contra o espírito, mas um novo fundamento de uma vida espiritual mais plena, mais profunda e mais comprometida.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (589)

Jesús María Cormán - 2.3 Richter scale (2001)

589. treme a terra

                treme a terra
na leveza
escura do espaço
                oscila no ócio
da eternidade
                se grãos de areia
deslizam
pelos dedos
                vazios
e
                vacilantes de deus

(22/10/2016)

domingo, 13 de novembro de 2016

Tagarelice

Federico Zandomeneghi - Bavardage

Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento da vida do espírito, seja em que dimensão for que esta se manifesta, é a tagarelice. Esta é muito mais do que um assunto e um vício de grupos de pessoas que assim se ocupam na vida privada. A tagarelice é a essência da esfera pública. Mesmo os assuntos sérios e decisivos da vida das comunidades transformam-se, na esfera pública, num exercício onde os tagarelas se exibem e dominam a paisagem social. O pior da tagarelice, porém, não se encontra aí. O pior é a tagarelice íntima que a consciência de cada um empreende consigo mesma. Esta tagarelice íntima, mãe de todas as outras, é o sinal de uma doença do espírito, que se cinde para empreender consigo mesmo uma conversação fútil e sem fim, um exercício de distracção e de alienação, de perda na mais pura errância. 

sábado, 12 de novembro de 2016

O destino

Juan Antonio Mañas - El destino (2000)

Admira-se de me ver sempre aqui sentado? Tem razão para isso. Na verdade não me conhece. Fui educado na mais estrita crença no fatalismo. Os meus pais acreditavam numa ordem natural do mundo, uma ordem para sempre prescrita e imutável. Quando percebi o sentido do que me era ensinado, passei a sentar-me aqui dia após dia. O que o destino me destinasse viria ter comigo. Ah... está enganado! O facto de nada ter vindo ter comigo não desmente a minha crença. Pelo contrário, compreendi que estar sentado à espera era o fado que me fora destinado.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Da convergência

Jackson Pollock - Convergence (1952)

A vida, devido à multiplicidade de experiências que proporciona, é o lugar onde a consciência, ao romper com a sua unidade ingénua, é arrastada de divergência em divergência, o que a poderá conduzir à cisão absoluta, à mais escura das patologias. A vida espiritual é o exercício de um retorno a si, de uma convergência consigo mesmo para além da unidade ingénua e da dissipação na divergência, é o lugar da salvação, entendida esta como a terapia dessa cisão que torna o homem estranho a si mesmo.