sábado, 21 de novembro de 2015

Improvisação e planeamento

Wassily Kandinsky - Improvisação (1909)

O bom senso tende a opor planeamento e improvisação. Naqueles indivíduos ou povos nos quais não floresce a virtude do planeamento, a improvisação surge como uma solução de recurso para disfarçar a ausência do trabalho de deliberação e de organização. A vida do espírito, contudo, mostra que a oposição entre uma coisa e outra é apenas aparente. O carácter espontâneo de toda a verdadeira improvisação só emerge após um longo trabalho planeado e organizado. E toda a improvisação acaba por exigir novos planos. Sim, o espírito é como o vento, sopra onde quer, mas no seu querer não há cisão entre o plano e o improviso, pois são um só.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 10

Jean François Millet - Nu reclinado

10. Assim reclinada

Assim reclinada,
esperas que o tempo
acenda o Verão.

Na voz magoada.
Na luz do momento.
Na fria servidão.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

O primeiro passo

Frantisek Kupka - O primeiro passo (1909)

A viagem espiritual distingue-se da viagem territorial por não possuir um primeiro passo, um ponto de partida, a linha onde terá começado. Também não tem um destino. Numa viagem onde não há princípio nem fim, nenhum passo é o primeiro e, ao mesmo tempo, todo e qualquer passo é o primeiro e, como tal, inicial.

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

O dia seguinte

Edvard Munch - O dia seguinte (1894-95)

Sonho... o que faço aqui, que sono. Ah esta maldita luz. Meu Deus, como bebi. E tudo tão amargo, que cansaço, o corpo dele, o hálito. Não, este é o meu quarto, mas esta luz. Onde está a noite? Acorda, acorda. Ouvi gatos... miau. Gritaram. Agora, esta noite. Esqueci-me do nome e o rosto... tanta água, água fria. Levanto-me. Ele tinha a mão, um cão uivou. Tenho de me levantar, os pés no chão. Água, sim água. Tomar banho e vomitar, o corpo dele dentro do meu, tenho de vomitar. Bebi, bebi-me. Onde está o meu sangue. Sangue do meu sangue e o corpo, quem me ergue? Pesa-me o corpo, pesa-me a noite e um cão ladra. Levanto-me tenho de ladrar à janela. Sou uma cadela e ladro.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

A luz e o fogo

Max Klinger - O roubo do fogo

Como a luz, segundo João, também o fogo foi dado aos homens. A luz resplandece nas trevas, mas os homens não conseguem compreendê-la e, por isso, essa dádiva pura não toca os homens, fechados para o dom. O fogo, que os homens usam, foi o produto de um roubo e esse roubo limita a dádiva de Prometeu. O fogo não ilumina os homens, não porque estes sejam incapazes de o compreender, mas porque ele, devido à sua origem obscura, não traz consigo a luz.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Construtor de pontes

Pierre Bonnard - A ponte (1896-7)

Ao viandante não é pedido apenas que atravesse a ponte, isto é, que se desloque para a outra margem para de lá ter uma outra perspectiva. É-lhe pedido que seja um pontífice (pontifex), um construtor de pontes, que na sua viagem, a cada momento, teça a ponte ente dois lugares que um abismo separa.

domingo, 15 de novembro de 2015

Haikai do Viandante (257)

Vincente Van Gogh - Wheat Field with a Lark (1887)

um pássaro canta
no silêncio da planície
dia de primavera

sábado, 14 de novembro de 2015

Do percurso da vida

Wassily Kandinsky - Composición número 5 (1911)

A vida não é o percurso linear que conduz o homem do nascimento à morte. Ela não mais do que ensaio, tentativa e erro, um processo feito de incoerências, de acasos, de vitórias e de derrotas, de coisas que, inopinadamente, vêm ter connosco e que, sem se saber porquê, se aceitam ou se recusam. Quando começamos a olhar para trás, para o vivido, e vemos uma linha exuberante e coerente, então já estamos comprometidos com a mentira a nós próprios, e a nossa razão já começou a apagar as memórias, para transformar aquilo que foi um caos num mundo organizado, numa mentira cosmética que nos tranquiliza e nos faz estranhos a nós próprios e à voz que nos chama.

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Como uma semente

Ismael González de la Serna - A semente (1929)

A vida do espírito é como a semente. Necessita de se ocultar para depois se manifestar em todo o seu esplendor. Tudo o que é grande nasce daquilo que é pequeno e secreto, e no segredo dessa pequenez acumula força e energia para vir à luz.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

A porta aberta

Pierre Bonnard - A porta aberta (1910)

A porta aberta. A vida espiritual seria uma abertura de portas, um franquear um limite ou uma fronteira. A realidade, porém, é que as portas, todas as portas estão desde sempre abertas. A vida espiritual é esse abrir contínuo de portas já abertas, pois o fechamento não está na porta mas naquele que dela se aproxima.

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Haikai do Viandante (256)

Egon Schiele - Árvores outonais (1911)

desce o outono
sobre as árvores dos campos
frio e abandono

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Desintegração da memória

Salvador Dali - Desintegración de la persistencia de la memoria (1952-54)

A memória é a persistência do passado, a composição de indícios que acabam por vincular os homens a uma identidade a um ego. A memória é o fundamento desse ego e daquilo que deriva dele. A vida do espírito nasce da desintegração da memória, que não é outra coisa senão o quebrar da ilusão do ego.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 9

Giovanni Boldini - Alla Toeletta

9. Corpo desvelado

Corpo desvelado,
segredo que se abre,
no frio da manhã,
ao rude prazer,
ao pudor das mãos,
à luz infinita
com que te desejo.

domingo, 8 de novembro de 2015

Para além dos paradoxos

Sonia Delaunay - Contrastes simultâneos (1913)

Os seres humanos, quando ultrapassam um certo limiar da vida animal que tolhe o pleno desenvolvimento do espírito, colocam a si mesmos estranhos paradoxos, põem a razão perante contrastes que, pela sua simultaneidade, parecem irresolúveis. Uma grande energia é gasta na tentativa, sempre decepcionante, de resolução desses paradoxos. Isso deve-nos fazer suspeitar se estamos a interpretar bem aquilo que o espírito nos propõe. Será que ele pretende que vivamos para a resolução de paradoxos? Ou espera, antes, que, ao fazermos a experiência do paradoxal, abandonemos a ilusão que o caminho do espírito é aquele que é determinado pela razão que se enreda nas suas próprias contradições?

sábado, 7 de novembro de 2015

Um ofício sem fim

Salvador Dali - Voyeur (1921)

Mulheres que se despem, casais movidos pelo desejo e que se abraçam como se a morte os espreitasse, nada disso o interessava. Deixava-se ficar não porque estivesse interessado nos múltiplos espectáculos que a vida dos homens lhe traziam, mas porque estar ali fazia parte do ofício. Um café forte e quente iluminava-lhe a alma e deixava-o a meditar naqueles corpos que, no descuido da noite, se ofereciam à sua visão. Seria um voyeur? Claro que não. Por vezes dormitava e, quando a temperatura descia, acordava. Apesar da sua fama, sempre odiara o frio. E lá estavam as mesmas mulheres a despirem-se, os mesmos casais a abraçarem-se, a mesma agonia perante a morte. Olhava. Teria de escolher alguém. Também ele tinha livre-arbítrio. No seu olhar não havia desejo mas apenas o tédio de uma missão cumprida uma e outra vez, numa repetição sem fim.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O ritmo dos objectos

Carlo Carra - Ritmi di Oggetti (1911)

Teme-se muito - e não sem razão - a dependência dos objectos. Uma dependência fascinada, na qual sempre podemos ler um estranhamento de si, uma alienação. Contudo os objectos possuem os seus ritmos. O viandante deve aprender a olhar e a sentir esses ritmos, pois também os objectos fazem parte do caminho que ele deve percorrer. Também eles exigem a ascese do viandante, um prolongado exercício de observação e de aprendizagem. Também eles são manifestações do espírito.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O fascínio das antiguidades

Karl Schmidt-Rottluff - Antiguidades (1928)

O fascínio com as antiguidades, se já atormentava as mentes na Antiguidade Clássica, teve no Renascimento um notável incremento. A partir daí, à medida que a modernização das sociedades as afastavam da vida tradicional, o culto pelas antiguidades não parou de crescer. Nunca se pensa, contudo, que este fascínio é o sintoma de um vazio espiritual, a confissão de uma impotência de viver plenamente o tempo que nos foi dado, de nele escutar a voz do vento, aquele vento que sopra onde quer e que, perante o feitiço das formas mortas, não pára de nos chamar à vida.

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Disciplinar-se a si

Pierre Bonnard - O exercício (1890)

Também a vida do espírito tem uma dimensão militar. Quantas vezes, mesmo na religião, se fala em milícia. Esta dimensão militar da vida espiritual não visa fazer a guerra ao outro, mas aprender a disciplinar-se a si. Também esta disciplina não significa a rigidez do hábito. Pelo contrário, a disciplina do exercício - da ascese - é o caminho para acolher esse vento que sopra onde quer.

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Haikai do Viandante (255)

Egon Schiele - Quatro árvores (1917)

árvores perdidas
esperam a luz do outono
um rasto de vida

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A hora da espera

Carlo Carra - Dopo il Tramonto (1926)

Deixar que o silêncio envolva o murmúrio das águas. Deixar que a luz do crepúsculo seja tomada pelo assalto da noite. Ali, onde toda a luz se apagou e toda a voz se suspendeu, o viandante começa uma nova viagem. Não à procura da sua luz ou da sua voz, mas à espera da voz que, vinda de lado nenhum, o iluminará e indicará o caminho.

domingo, 1 de novembro de 2015

Das artes e das letras

Fernand Léger - A leitura (1924)

Uma das distinções centrais entre a literatura e as artes plásticas pode ser pensada a partir do olhar. Na pintura e na escultura, o olhar concentra-se no objecto artístico. Repousa nele, perscruta-o, observa os jogos da cor, da forma, da luz. A relação entre a obra e o olhar é essencial. Na literatura, porém, essa relação é apenas instrumental. O leitor também fixa o olhar nas palavras do poema ou da narrativa, mas fixa-o aí para poder olhar para além do texto, para o mundo espiritual que é evocado. Nas artes plásticas, o espírito materializa-se e torna-se concreto. Na literatura, o texto é apenas um medium da relação entre o espírito do leitor e o da obra. É tudo isso que o quadro de Fernand Léger torna patente de forma tão ostensiva.

sábado, 31 de outubro de 2015

A terapia da acção

Pablo Picasso - Contemplación (1904)

A contemplação não é propriamente o oposto da acção. Agir arrasta sempre consigo uma qualquer dor. E esta dor transforma-se numa melancolia, a melancolia da acção. Quando a melancolia se torna insuportável, a contemplação emerge como a terapia da acção.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (254)

Dionisio Fierros - Acantilados en Asturias

águas entre montes
espelham o céu de inverno
murmúrio nas fontes

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

As velhas casas

Chaim Soutine - Old House near Chartres (1934)

Há nas velhas casas um estranho encanto. Este nasce-lhe daquilo que elas puderam observar e absorver ao longo de uma vida maior que a dos homens. O espírito destes - as suas venturas, as suas aventuras e as suas desventuras - impregna-se nas paredes, no telhado, em toda o lado. As casas não são coisas inertes. Nelas concentra-se também a aventura espiritual do homem, seja esta grande ou pequena. Seja esta um triunfo ou uma derrota.

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 8

José de Togores - Desnudo de espaldas (1922)

8. Raptada no sonho

Raptada no sonho
Vejo-te perdida
Entre luz e sombras.
Espero que voltes
No fogo da noite
E sobre mim desça
A voz que me ateia.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Entre mundos

Yasuo Kuniyoshi - Between two worlds (1939)

Estar entre dois mundos não é um acidente no percurso do viandante. Viver na fronteira, nesse território equívoco, é a natureza da própria viagem espiritual. De um lado, o mundo que se abandona; do outro, o mundo que espera. E onde é que é essa fronteira? Em todo o lado a que o viandante chegue. Sobre a terra, a fronteira, esse entre mundos, é o único território disponível para o homem, saiba-o ele ou não.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

O segredo do amanhecer

Guillermo Trujillo - Amanecer Chocoe (2000)

Há um momento do amanhecer em que tudo parece suspenso. A luz e as trevas travam uma dura batalha pela vitória. Nesse momento de indecisão, aquele que toma a natureza como um símbolo a meditar encontra um segredo. Não um segredo que esteja oculto e que a curiosidade pode revelar. Encontra um efectivo segredo que está velado e sobre o qual não há revelação possível. O segredo é o da estranha fraternidade entre luz e trevas, o das suas núpcias nas horas indecisas dos crepúsculos. Aquilo que não tem revelação é aquilo que dá que pensar, mas o pensar é ainda e só uma preparação para enfrentar o mistério, perante o qual a razão experimenta o seu limite e a sua impotência.

domingo, 25 de outubro de 2015

O touro moribundo

Pablo Picasso - Touro moribundo (1934)

Meu Deus, o que fiz? O matador ergue a mão em triunfo, a multidão aplaude e um suor frio corre-lhe na face, desce pelo pescoço, gela-lhe no peito. O touro estremece ainda uma e outra vez. Suspira e o matador sente aquele suspiro nascer-lhe no fundo gelado do peito. Erguem-no aos ombros. Que faena, gritam. E tudo nele arrefece. O olhar prende-se ao touro agonizante, nos traços quase inertes daquele que ainda há pouco era o seu companheiro de arena, aquele que ele olhava de frente e via nele os traços da sua morte. Os aplausos da multidão recrudescem - malditos aplausos, pensa. Que frio está, murmura, mas ninguém o ouve. Sente uma dor nas costa, logo abaixo do pescoço, uma dor vibrante, e sente as costas encharcadas. Olha de novo o touro, parece vivo, reflecte perplexo, e fixa os olhos nos olhos do animal. Cai desamparado no chão, uma ferida nas costas de onde sai um rio de sangue. Por terra, antes de tudo enegrecer pensa: eu sou o touro que matei.

sábado, 24 de outubro de 2015

Afinidades electivas

José de Togores - Afinidades (1930)

As Afinidades Electivas, título de um romance de Goethe, sempre me fascinou. Não tanto pelo conteúdo trágico da obra, mas porque esse título indicia aquilo que, na vida do espírito, atrai e junta certas pessoas, ou repele outras. Apesar do caminho espiritual ser sempre um caminho solitário, a verdade é que certos encontros não deixam de ser fundamentais, encontros esses que estabelecem ligação entre pessoas que possuem certas afinidades. Nesses estranhos encontros, o que sobressai é a sensação que essas afinidades são o resultado de um certa eleição. Eleição para se submeterem a um dado caminho e fazerem uma parte da jornada juntas.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Olhar a natureza

Hiro Yamagata - Folhas caídas (1982)

Tempos de Outono. Como as árvores se despem das folhas agora inúteis, também o homem, para persistir no caminho que o espírito lhe indica, se deve despir de todas as ilusões e inutilidades que vida deposita nele. Olhar para a natureza torna-se um imperativo. Aprender com ela a ascese e a purificação é uma necessidade, para que se abre à voz que o chama e lhe indicou a senda do Outono.