Erguer-se, tornar-se flexível perante os elementos, resistir quando tudo se desfaz. Enraizar-se na terra funda e crescer para os céus. Assim é o homem, o que está sempre a meio caminho, voz da mediação, o terceiro que liga o que está em baixo ao que está em cima. O que está a meio caminho é também aquele que toma o caminho do meio.
sábado, 28 de junho de 2014
sexta-feira, 27 de junho de 2014
quinta-feira, 26 de junho de 2014
Fechar as janelas
Harry Callahan - Chicago (1949)
Nem sempre fechar as janelas significa cortar os vínculos com o mundo. Pode ser apenas um momento de repouso ou de afinação do olhar, um compasso de espera para que o viandante se encontre com o caminho que o espera.
quarta-feira, 25 de junho de 2014
Poemas do Viandante (461)
461. este rasto luminoso
este rasto luminoso
trazido nas ondas
este vestígio de cal
aberto ao sol
esta promessa de areia
no mar furioso
tudo páginas perdidas
em terras de sal
terça-feira, 24 de junho de 2014
Os lugares desertos
Mark Rothkovich - Untitled (1961)
Entretanto,
o menino crescia, o seu espírito robustecia-se, e vivia em lugares desertos,
até ao dia da sua apresentação a Israel. (Lucas 1:80)
Aprendemos que o deserto é esse lugar onde o espírito se robustece e aquilo que é pequeno cresce. O deserto não é um lugar de fuga, mas de preparação, como se o preparar-se exigisse sempre o esforço da solidão e o confronto consigo mesmo antes de entrar no espaço partilhado com os outros. Tornar-se forte para dominar? Não, tornar-se forte para poder viver entre os fracos e os dominadores, sem temer ser uns nem desejar ser outros.
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segunda-feira, 23 de junho de 2014
O álibi perfeito
Sarah Moon - L’ombre du loup (1983)
Os medos que trazemos em nós projectamo-los no mundo, para que depois eles nos assaltem na primeira ocasião. Esse é o álibi perfeito. Somos vítimas do mundo. Mas esse mundo caótico, errante, confuso, esse mundo onde o homem é o lobo do homem não é outro se não o mundo que inventamos dentro de nós para fugirmos ao caminho que nos espera.
domingo, 22 de junho de 2014
Sem bagagem
Irving Penn - Vogue Luggage, New York (1948)
Não, a viagem do viandante não exige que ele venha carregado. Na verdade, ele chega ao caminho despido de tudo. Sem nada, faz-se à estrada. Quando começa a acumular objectos a transportar, começa a errância e o destino que o espera oculta-se-lhe. O caminho do viandante é a lenta aprendizagem da inutilidade de toda e qualquer bagagem. Tudo o que precisa está dentro de si. O resto ser-lhe-á propiciado. Na fronteira, só uma coisa a declarar: sem bagagem.
sábado, 21 de junho de 2014
Um ponto de passagem
Hengki Koentjoro - Netting (2014)
Cada um tem o seu próprio caminho. Mas todo o caminho tem as suas encruzilhadas, esses pontos onde os homens, por um instante, se encontram e fazem comunidade, para, depois de usarem a palavra, continuar na solidão que cabe a cada um deles. Não, a comunidade não é o destino do homem, não é o seu fim, nem, tão pouco, o lugar onde os homens se devem exibir. Ela é um ponto de passagem para quem veio de longe e vai para longe.
sexta-feira, 20 de junho de 2014
O outro lado
Henri Fox Talbot - The Open Door (1844)
Nunca dedicamos a atenção devida à forma metafísica como estruturamos a vida quotidiana. Em todo o lado, o homem recria as transcendências, semeando os espaços com linhas divisórias que cindem a continuidade espacial em lugares diferenciados, o aqui e o além, o dentro e o fora, o imanente e o transcendente. Uma porta não é uma mera porta, mas o símbolo de uma secreta transposição que conduz o homem da imanência à transcendência. Passar a porta e ir ao outro lado é, também, ir a um lado outro, transcender-se, sair de si em direcção ao Outro, ao totalmente Outro.
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quinta-feira, 19 de junho de 2014
quarta-feira, 18 de junho de 2014
Silenciar as boas acções
Umberto Boccioni - Dynamic Decomposition (1913)
Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua
direita, a fim de que a tua esmola permaneça em segredo. (Mateus 6: 3-4)
O que nos leva a realizar uma acção boa? Se meditarmos as palavras de Mateus, deparamo-nos, de imediato, com uma multiplicidade de intenções, as quais estão longe de se acordarem entre si. O gesto com que intervimos parece ligado tanto a motivações altruístas - o bem do outro - como a razões egoístas - a nossa necessidade de recompensa e reconhecimento social. Talvez esta dicotomia seja inultrapassável, apesar da injunção do imperativo categórico kantiano. Se essa é a nossa condição, o melhor será aprender a decomposição dinâmica das nossas motivações e, assim conscientes, realizar a sua purgação. Mas como purificar essas intenções? Pelo exercício contumaz do silêncio. Manter em segredo o bem que realizamos até que aprendamos a desprender-nos do fruto da acção.
terça-feira, 17 de junho de 2014
O destino da viagem
Diane Arbus - Patriotic young man with a flag, N.Y.C. (1967)
Qual o destino da viagem? O retorno à pátria, mas a uma pátria onde não há bandeiras nem o exacerbado orgulho de excluir o outro. Não se trata de voltar a Ítaca ou a Argos depois de vencer os troianos. Trata-se apenas de voltar para onde nunca se esteve, onde a nossa ausência espera por nós.
segunda-feira, 16 de junho de 2014
Tornar-se outra coisa
Werner Bischof - La bailarina Anjali Hora, Bombay, India (1951)
Uma das temáticas mais misteriosas da vida do espírito é a metanóia. Por norma, esse vocábulo de origem grega é tido como sinónimo de conversão. Conversão espiritual, uma mudança de ponto de vista sobre uma dada realidade. O exemplo mais famoso é o da conversão de Paulo de Tarso. Mas a conversão não diz respeito apenas ao espírito. Não se trata de mudar de ponto de vista, nem sequer de mudar de estilo de vida. Diz respeito a todo o ser, ao corpo, às entranhas mais recônditas, como se tudo, mas tudo mesmo, mudasse num homem e este se tornasse uma outra coisa.
domingo, 15 de junho de 2014
Poemas do Viandante (460)
Loomis Dean - British chorus girl exercising in her apartment (1958)
460. devagar tão devagar
devagar tão devagar
no fundo do tempo
oiço uma voz cantar
a dor e o lamento
vejo um corpo flutuar
no esquecimento
devagar tão devagar
era outro o tempo
sábado, 14 de junho de 2014
O espírito e a guerra
Arnold Böcklin - A Guerra (1896)
É preferível que não nos lamentemos da sujeição a que nos submete uma miséria
como a guerra e não pretendamos que ela impeça a entrega à vida do espírito;
pelo contrário, é nela que a vida do espírito toma toda a sua força e todo o seu
ardor. (Louis Lavelle, Carnets de Guerre 1915-1918)
Com estas palavras, o filósofo francês Louis Lavelle, inicia os seus Carnets de Guerre 1915-1918. A vida espiritual não pertence apenas ao puro domínio da contemplação no deserto ou na vida cenobítica. Ali, onde a vida se manifesta no que tem de mais trágico e aterrador, também é o lugar do espírito. O trágico da existência faz parte da viagem espiritual. Onde deveria o espírito manifestar-se com mais força e com mais ardor se não no lugar da maior tormenta? Não era Paulo que dizia: onde abunda o pecado, superabunda a Graça? Não é a guerra a superabundância do erro e da errância, isto é, do pecado?
sexta-feira, 13 de junho de 2014
Olhar pela janela
Peter Turnley - Novokuznetsk, Russia (1991)
O pior que poderá acontecer é ficar a olhar a vida pela janela. Não porque haja uma diferença substancial entre o fora e o dentro, mas porque se transforma o viandante em mero voyeur, estranho a si e ao que, em si, o chamou à existência.
quinta-feira, 12 de junho de 2014
Haikai do Viandante (192)
Bert Hardy - Portuguese rice harvest (s/d)
esta nostalgia
que cresce no sol da tarde
na força da luz
quarta-feira, 11 de junho de 2014
Dispositivos de cegueira
Loomis Dean - Las Vegas (1955)
Há uma luz que, por natureza, nos cega. Há outra que é pensada e produzida para nos cegar, um dispositivo de cegueira. A luz do espírito - à imagem da luz solar - sempre foi vista como excessiva para o homem, necessitando este de uma intermediação para lidar com ela. Os dispositivos de cegueira, porém, são de outra ordem. Apresentam uma natureza feérica e são suportáveis pelos seres humanos. Por trás deles esconde-se, todavia, um mandamento que nos ordena, sem remissão, que fechemos os olhos e nos entreguemos às trevas exteriores, onde, errantes, nos esquecemos de nós mesmos.
terça-feira, 10 de junho de 2014
Dos abismos
Mark Tansey - Derrida queries de Man (1990)
Os abismos do pensamento não são abismos. Em última análise, estão protegidos seja pela rede da retórica, seja pela mão da lógica. Por mais interessante que seja um pensamento abissal, ele não deixa de ser um mero pensamento, algo que se retira do abismo que é a vida e ganha autonomia numa razão e no registo gráfico de que se reveste. Só a vida - com o trágico que contém - está perto do abismo. O mais pequeno equívoco e tudo se precipita nesse sem fundo e sem nome a que chamamos morte.
segunda-feira, 9 de junho de 2014
À espera de ventos propícios
Edvard Munch - Sailboats in the Harbor (1905)
Quantas vezes ficamos longo tempo parados no caminho? Quantas vezes tudo parece sem sentido e sem uma abertura para a viagem? E no entanto o tempo flui, corre e precipita-se, como se alguma coisa o esperasse. Nessas alturas, em que parece especado e sem destino, o homem é apenas como um veleiro ancorado no porto. Espera que os ventos propícios retornem e o levem onde quiserem.
domingo, 8 de junho de 2014
Se a tempestade se aproxima
Léonard Misonne - A Storm Arrives
Há violentas tempestades que, vindas da revolução dos elementos, se abatem sobre o Viandante. Essas, porém, são tempestades benignas. Terríveis são as que nascem no coração do homem. Partem do centro vital, espalham-se por cada recanto do ser, abalando todos os interstícios. Quando se aproximam, o melhor é o Viandante esperá-las em silêncio. Deixar que esse silêncio revele o terrível que se aproxima, para que a verdade então se manifeste.
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sábado, 7 de junho de 2014
Poemas do Viandante (459)
László Moholy-Nagy - Nude (entre 1928-1937)
459. corpo perdido no sono
corpo perdido
no sono
corpo ao
abandono
suave vestígio
de sombra
água que me
assombra
vida trazida p'lo vento
luz fogo tormento
sexta-feira, 6 de junho de 2014
Abrir a cozinha
Al Capone’s free soup kitchen, Chicago (1931)
Ali, onde a fome reina, não há lugar para escolher o senhor de quem se é súbdito. A necessidade traz com ela a vassalagem. O que abrir a cozinha terá a multidão à porta. O seu gesto será acolhido como um dom da Graça. São ínvios os caminhos pelos quais o homem faz a sua viagem.
quinta-feira, 5 de junho de 2014
quarta-feira, 4 de junho de 2014
Aprender a matizar
Man Ray - Noire et Blanche (1926)
O primeiro dever do viandante é aprender a matizar, deixar de ver o mundo a preto e branco, exercer a virtude da gradação. Houve homens que julgaram descobrir a santidade na mais dura austeridade, verdadeiros atletas do espírito. A vida espiritual, porém, não é uma maratona, e o extremo rigor é sintoma não de espiritualidade mas de patologia. Pegamos no branco e no preto e depois criamos um mundo de sombras. Noutras alturas, há que tomar apenas o branco e decompô-lo nas múltiplas cores que fazem a vida. A viagem é uma aprendizagem da gradação da luz.
terça-feira, 3 de junho de 2014
O inimigo interno
Grete Stern - Consentimiento (Sueños) (1949)
Não são as ilusões ou o mal que caem sobre nós e, contra a nossa vontade, nos tomam de assalto e subjugam. Somos nós que consentimos e nos entregamos. O inimigo externo tem sempre poderosos aliados dentro de muralhas.
segunda-feira, 2 de junho de 2014
Signo sinal 3. A sombra de uma sombra
Hans Baumgartner - Vor dem Arbeitsamt, Zürich (1935)
Mais que um rasto deixado pela ocultação da luz, a sombra é um sinal, um símbolo. Sinaliza o homem e simboliza a sua condição. Não será, desse modo, a sombra de uma sombra? Na sombra revela-se não apenas aquilo que há de sombrio no homem, mas a sua natureza intermédia, a de não ser nem pura luz nem pura treva. Uma sombra deixado como rasto. Por quem?
domingo, 1 de junho de 2014
Seguir em frente
Leo Matiz - Polígono
Adentrar-se mais e mais no mistério, percorrer a longa galeria onde luz e trevas se sucedem sem fim, seguir em frente sem olhar para trás. Orfeu não suportou a exigência que a vida lhe pôs e perdeu Eurídice. Quem busca uma certificação ganha a certeza da perda. Resta, ao homem, apenas seguir em frente, saber que a luz ofusca e que as trevas são a noite escura da purgação dos equívocos e das ilusões. O resto é o mistério indecifrável.
sábado, 31 de maio de 2014
Poemas do Viandante (458)
Max Dupain - Model Olive Cotton, Cornulla Sandhills, New South Wales, Australia (1937)
458. o véu que te revela
o véu que te
revela
no segredo de
areia
o sol que se
rebela
e logo te
incendeia
a boca de
canela
fogo que me
ateia
sexta-feira, 30 de maio de 2014
De olhos no cume
Hiroshi Hamaya - Winter starts on peak of Mount Fuji. Japan (1962)
Subir pouco a pouco, elevar-se lentamente, colocar os olhos no cume. Que outro símbolo pode dizer melhor a tarefa do homem na vida? Subir ao cimo da montanha, enfrentar os duros caminhos e abrir o coração para a intempérie. Despojar-se do inútil e ascender confiado na acção gratuita do invisível.
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