sábado, 21 de junho de 2014

Um ponto de passagem

Hengki Koentjoro - Netting (2014)

Cada um tem o seu próprio caminho. Mas todo o caminho tem as suas encruzilhadas, esses pontos onde os homens, por um instante, se encontram e fazem comunidade, para, depois de usarem a palavra, continuar na solidão que cabe a cada um deles. Não, a comunidade não é o destino do homem, não é o seu fim, nem, tão pouco, o lugar onde os homens se devem exibir. Ela é um ponto de passagem para quem veio de longe e vai para longe.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

O outro lado

Henri Fox Talbot - The Open Door (1844)

Nunca dedicamos a atenção devida à forma metafísica como estruturamos a vida quotidiana. Em todo o lado, o homem recria as transcendências, semeando os espaços com linhas divisórias que cindem a continuidade espacial em lugares diferenciados, o aqui e o além, o dentro e o fora, o imanente e o transcendente. Uma porta não é uma mera porta, mas o símbolo de uma secreta transposição que conduz o homem da imanência à transcendência. Passar a porta e ir ao outro lado é, também, ir a um lado outro, transcender-se, sair de si em direcção ao Outro, ao totalmente Outro.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Haikai do Viandante (193)


mistério sem fundo
sombria clareira da terra
do caos vem o mundo

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Silenciar as boas acções

Umberto Boccioni - Dynamic Decomposition (1913)

Quando deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita, a fim de que a tua esmola permaneça em segredo. (Mateus 6: 3-4)

O que nos leva a realizar uma acção boa? Se meditarmos as palavras de Mateus, deparamo-nos, de imediato, com uma multiplicidade de intenções, as quais estão longe de se acordarem entre si. O gesto com que intervimos parece ligado tanto a motivações altruístas - o bem do outro - como a razões egoístas - a nossa necessidade de recompensa e reconhecimento social. Talvez esta dicotomia seja inultrapassável, apesar da injunção do imperativo categórico kantiano. Se essa é a nossa condição, o melhor será aprender a decomposição dinâmica das nossas motivações e, assim conscientes, realizar a sua purgação. Mas como purificar essas intenções? Pelo exercício contumaz do silêncio. Manter em segredo o bem que realizamos até que aprendamos a desprender-nos do fruto da acção. 

terça-feira, 17 de junho de 2014

O destino da viagem

Diane Arbus - Patriotic young man with a flag, N.Y.C. (1967)

Qual o destino da viagem? O retorno à pátria, mas a uma pátria onde não há bandeiras nem o exacerbado orgulho de excluir o outro. Não se trata de voltar a Ítaca ou a Argos depois de vencer os troianos. Trata-se apenas de voltar para onde nunca se esteve, onde a nossa ausência espera por nós.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Tornar-se outra coisa

Werner Bischof - La bailarina Anjali Hora, Bombay, India (1951)

Uma das temáticas mais misteriosas da vida do espírito é a metanóia. Por norma, esse vocábulo de origem grega é tido como sinónimo de conversão. Conversão espiritual, uma mudança de ponto de vista sobre uma dada realidade. O exemplo mais famoso é o da conversão de Paulo de Tarso. Mas a conversão não diz respeito apenas ao espírito. Não se trata de mudar de ponto de vista, nem sequer de mudar de estilo de vida. Diz respeito a todo o ser, ao corpo, às entranhas mais recônditas, como se tudo, mas tudo mesmo, mudasse num homem e este se tornasse uma outra coisa.

domingo, 15 de junho de 2014

Poemas do Viandante (460)

Loomis Dean - British chorus girl exercising in her apartment (1958)

460. devagar tão devagar

devagar tão devagar
no fundo do tempo

oiço uma voz cantar
a dor e o lamento

vejo um corpo flutuar
no esquecimento

devagar tão devagar
era outro o tempo

sábado, 14 de junho de 2014

O espírito e a guerra

Arnold Böcklin - A Guerra (1896)

É preferível que não nos lamentemos da sujeição a que nos submete uma miséria como a guerra e não pretendamos que ela impeça a entrega à vida do espírito; pelo contrário, é nela que a vida do espírito toma toda a sua força e todo o seu ardor. (Louis Lavelle, Carnets de Guerre 1915-1918)

Com estas palavras, o filósofo francês Louis Lavelle, inicia os seus Carnets de Guerre 1915-1918. A vida espiritual não pertence apenas ao puro domínio da contemplação no deserto ou na vida cenobítica. Ali, onde a vida se manifesta no que tem de mais trágico e aterrador, também é o lugar do espírito. O trágico da existência  faz parte da viagem espiritual. Onde deveria o espírito manifestar-se com mais força e com mais ardor se não no lugar da maior tormenta? Não era Paulo que dizia: onde abunda o pecado, superabunda a Graça? Não é a guerra a superabundância do erro e da errância, isto é, do pecado?

sexta-feira, 13 de junho de 2014

Olhar pela janela

Peter Turnley - Novokuznetsk, Russia (1991)

O pior que poderá acontecer é ficar a olhar a vida pela janela. Não porque haja uma diferença substancial entre o fora e o dentro, mas porque se transforma o viandante em mero voyeur, estranho a si e ao que, em si, o chamou à existência.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Haikai do Viandante (192)

Bert Hardy - Portuguese rice harvest (s/d)

esta nostalgia
que cresce no sol da tarde
na força da luz

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Dispositivos de cegueira

Loomis Dean - Las Vegas (1955)

Há uma luz que, por natureza, nos cega. Há outra que é pensada e produzida para nos cegar, um dispositivo de cegueira. A luz do espírito - à imagem da luz solar - sempre foi vista como excessiva para o homem, necessitando este de uma intermediação para lidar com ela. Os dispositivos de cegueira, porém, são de outra ordem. Apresentam uma natureza feérica e são suportáveis pelos seres humanos. Por trás deles esconde-se, todavia, um mandamento que nos ordena, sem remissão, que fechemos os olhos e nos entreguemos às trevas exteriores, onde, errantes, nos esquecemos de nós mesmos.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Dos abismos

Mark Tansey - Derrida queries de Man (1990)

Os abismos do pensamento não são abismos. Em última análise, estão protegidos seja pela rede da retórica, seja pela mão da lógica. Por mais interessante que seja um pensamento abissal, ele não deixa de ser um mero pensamento, algo que se retira do abismo que é a vida e ganha autonomia numa razão e no registo gráfico de que se reveste. Só a vida - com o trágico que contém - está perto do abismo. O mais pequeno equívoco e tudo se precipita nesse sem fundo e sem nome a que chamamos morte.

segunda-feira, 9 de junho de 2014

À espera de ventos propícios

Edvard Munch - Sailboats in the Harbor (1905)

Quantas vezes ficamos longo tempo parados no caminho? Quantas vezes tudo parece sem sentido e sem uma abertura para a viagem? E no entanto o tempo flui, corre e precipita-se, como se alguma coisa o esperasse. Nessas alturas, em que parece especado e sem destino, o homem é apenas como um veleiro ancorado no porto. Espera que os ventos propícios retornem e o levem onde quiserem.

domingo, 8 de junho de 2014

Se a tempestade se aproxima

Léonard Misonne - A Storm Arrives

Há violentas tempestades que, vindas da revolução dos elementos, se abatem sobre o Viandante. Essas, porém, são tempestades benignas. Terríveis são as que nascem no coração do homem. Partem do centro vital, espalham-se por cada recanto do ser, abalando todos os interstícios. Quando se aproximam, o melhor é o Viandante esperá-las em silêncio. Deixar que esse silêncio revele o terrível que se aproxima, para que a verdade então se manifeste.

sábado, 7 de junho de 2014

Poemas do Viandante (459)

László Moholy-Nagy - Nude (entre 1928-1937)

459. corpo perdido no sono

corpo perdido no sono
corpo ao abandono

suave vestígio de sombra
água que me assombra

vida trazida p'lo vento
luz fogo tormento

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Abrir a cozinha

Al Capone’s free soup kitchen, Chicago (1931)

Ali, onde a fome reina, não há lugar para escolher o senhor de quem se é súbdito. A necessidade traz com ela a vassalagem. O que abrir a cozinha terá a multidão à porta. O seu gesto será acolhido como um dom da Graça. São ínvios os caminhos pelos quais o homem faz a sua viagem.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Haikai do Viandante (191)

Juan Rulfo - Nicho de Atlihuetzía

vestígio de vida
irrompe pela a memória
a casa perdida

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Aprender a matizar

Man Ray - Noire et Blanche (1926)

O primeiro dever do viandante é aprender a matizar, deixar de ver  o mundo a preto e branco, exercer a virtude da gradação. Houve homens que julgaram descobrir a santidade na mais dura austeridade, verdadeiros atletas do espírito. A vida espiritual, porém, não é uma maratona, e o extremo rigor é sintoma não de espiritualidade mas de patologia. Pegamos no branco e no preto e depois criamos um mundo de sombras. Noutras alturas, há que tomar apenas o branco e decompô-lo nas múltiplas cores que fazem a vida. A viagem é uma aprendizagem da gradação da luz.

terça-feira, 3 de junho de 2014

O inimigo interno

Grete Stern - Consentimiento (Sueños) (1949)

Não são as ilusões ou o mal que caem sobre nós e, contra a nossa vontade, nos tomam de assalto e subjugam. Somos nós que consentimos e nos entregamos. O inimigo externo tem sempre poderosos aliados dentro de muralhas.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Signo sinal 3. A sombra de uma sombra

Hans Baumgartner - Vor dem Arbeitsamt, Zürich (1935)

Mais que um rasto deixado pela ocultação da luz, a sombra é um sinal, um símbolo. Sinaliza o homem e simboliza a sua condição. Não será, desse modo, a sombra de uma sombra? Na sombra revela-se não apenas aquilo que há de sombrio no homem, mas a sua natureza intermédia, a de não ser nem pura luz nem pura treva. Uma sombra deixado como rasto. Por quem?

domingo, 1 de junho de 2014

Seguir em frente

Leo Matiz - Polígono

Adentrar-se mais e mais no mistério, percorrer a longa galeria onde luz e trevas se sucedem sem fim, seguir em frente sem olhar para trás. Orfeu não suportou a exigência que a vida lhe pôs e perdeu Eurídice. Quem busca uma certificação ganha a certeza da perda. Resta, ao homem, apenas seguir em frente, saber que a luz ofusca e que as trevas são a noite escura da purgação dos equívocos e das ilusões. O resto é o mistério indecifrável.

sábado, 31 de maio de 2014

Poemas do Viandante (458)

Max Dupain - Model Olive Cotton, Cornulla Sandhills, New South Wales, Australia (1937)

458. o véu que te revela

o véu que te revela
no segredo de areia

o sol que se rebela
e logo te incendeia

a boca de canela
fogo que me ateia

sexta-feira, 30 de maio de 2014

De olhos no cume

Hiroshi Hamaya - Winter starts on peak of Mount Fuji. Japan (1962)

Subir pouco a pouco, elevar-se lentamente, colocar os olhos no cume. Que outro símbolo pode dizer melhor a tarefa do homem na vida? Subir ao cimo da montanha, enfrentar os duros caminhos e abrir o coração para a intempérie. Despojar-se do inútil e ascender confiado na acção gratuita do invisível.

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Tornar-se cego

Júlio Pomar - Cegos de Madrid (1957)

Não se trata de ser cego, mas de tornar-se cego para ver. Pelos olhos entra o que nos deslumbra, e, deslumbrados, apenas temos olhos para o objecto do deslumbramento. Se nos tornarmos cegos, porém, o campo do visível deixa de ocultar o do invisível, daquilo que se esconde por detrás das coisas que prendem o olhar. Ao tornarmo-nos cegos abre-se a remota possibilidade de aprendermos a olhar.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Uma clareira azul

Fernando Lerín - Sem título (1985)

De súbito, no meio da mais tenebrosa das tempestade, surge uma clareira azul no céu. Os elementos estão em fúria, mas um novo caminho abre-se diante do viandante, chamando-o para o outro lado, oferecendo-lhe a graça de uma passagem.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Haikai do Viandante (190)

Max Dupain - Nude in sunlight (1937)

de nuvens coberto
um sonho de sol e água
sombra no deserto

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Sentimento de incompletude

 Hippolyte Blancard - Sem título (1888)

O que desencadeia em alguém o desejo da viagem, a necessidade de se pôr a caminho e de se tornar viandante? Não é a busca de novas sensações, nem o prazer da aventura ou a ânsia de descobrir novas realidades. Tudo isso são ainda funções que o turismo pode suprir. Aquilo que atira o homem para a viagem do espírito é o sentimento de incompletude. Alguma coisa que é sentida como sendo própria está em falta. O viandante faz-se ao caminho à procura da outra parte de si mesmo.

domingo, 25 de maio de 2014

Ruínas e memória

Lucien Clergue - Ruines, Arles (1954)

Mais que o memorial ou o monumento conservado, as ruínas representam uma espécie de fidelidade mnésica. A memória, na sua faceta restauradora ou comemorativa, tende a idealizar o passado, a despi-lo do tempo. mentindo assim sobre a nossa condição passageira. As ruínas, porém, mostram-nos o passado e o presente, evidenciam o trabalho do tempo. Recordam-nos vivamente que somos pó e ao pó voltaremos.

sábado, 24 de maio de 2014

A estrita necessidade

Hiroshi Hamaya - A girl carrying a baby on her shoulders as she goes to make errands in the snow covered landscape of Aomori. Japan (1955)

Quantas vezes hesitamos no caminho? Quantas vezes o conforto do momento é sinónimo e motivo de adiamento, de procrastinação, de exercício de uma ilusória liberdade. Depois, quando a necessidade se abate sobre o viandante, ele põe-se a caminho e enfrenta as mais terríveis condições. Nesses momentos, descobre que a liberdade nasce ali onde a mais estrita necessidade o impele.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Na terra devastada

Man Ray - Waste Land (1929)

Não fugir. Insistir, permanecer na terra devastada, deixar que ela traga até nós as primeira palavras, que abra a bolsa onde guarda os segredos e nos deixe espreitar. Ali, onde a terra foi devastada e abandonada pelos homens, também é lugar de viagem. Melhor, é sítio de peregrinação e de espera. Espera que a terra fale e a verdade, abençoada pelo silêncio, se revela.