terça-feira, 13 de maio de 2014

Haikai do Viandante (188)

Florence Henri - Untitled, USA (c. 1940)

linhas de silêncio
na fria pureza do vidro
luz vento e destino

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Na cintilação da água

Joshua Benoliel - Fragatas do Tejo (1912)

Na trémula cintilação da água navegam os velhos sonhos da humanidade. Fragatas não são fragatas, mas símbolos de um desejo vindo de tão longe que não sabemos onde nasceu. Por maiores que sejam as rotas ou por mais exactas as cartas de marear, voltamos sempre aquele mistério que nos fala da queda do homem e da expulsão do velho paraíso.

domingo, 11 de maio de 2014

Fazer e esquecer

Brassaï - Sleeping Man (1955)

Também os sonhos fazem parte da viagem. Durante a vigília, o viandante segue o seu caminho, sabedor do que está a fazer, sentidos alerta e objectivos na mente. Durante o sono, porém, a viagem contínua, pois, ao sonhar, o viandante refaz caminhos e objectivos, entrega-se ao que, no fundo do seu inconsciente, indica o que há-de fazer e o que há-de esquecer.

sábado, 10 de maio de 2014

Nada a declarar

William Henry Fox Talbot - The Old Gamekeeper (1844)

O mais importante da viagem começa quando se descobre que não existe caça a guardar. Nesse momento, abre-se mão do mundo e das coisas. O viandante não é caçador nem proprietário. Vive daquilo que lhe é trazido dia após dia e recebe cada coisa com um cântico de acção de graças. Nada lhe pertence, nada quer. Passa esta e aquela fronteira, e diz sempre as mesmas palavras: nada a declarar.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Aridez e abandono

Ernst Haas - White Sands, New Mexico (1952)

Há momentos na vida dos homens em que tudo parece um deserto. A aridez toma conta da existência e um desmedido sentimento de abandono apossa-se da pessoa. A tentação é de sucumbir e entregar-se à lamentação por tão bizarro destino. Mas saberá o viandante qual a sua verdadeira situação? Não será nessas horas de abandono e aridez que mais perto se encontra da plenitude da vida?

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Sobre a sombra

Rodney Smith - Gary Descending Stairs (1995)

A sombra não é meramente uma metáfora conveniente para dar profundidade ao livre jogo da poesia. Ela é um verdadeiro símbolo. E como todos os símbolos, a sombra simboliza múltiplas, e por vezes contraditórias, realidades. Sombra é o lugar do homem, ele que não suporta nem as trevas nem a luz mais pura. Mas o próprio homem não é mais do que sombra, uma presença evanescente sobre a terra, uma presença que, para ter consistência e não se reduzir a uma mera ilusão, necessita da Luz que o arranca à escuridão.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Haikai do Viandante (187)

Manuel Baeza - Borboletas (1979-80)

borboletas voam
e no sol vazio da tarde
os sinos ecoam

terça-feira, 6 de maio de 2014

Cultivar a boa consciência

Robert Doisneau - Hell (1952)

Os outros, segundo a palavra de Sartre, por nos frustrarem a realização do desejo, são o inferno. Ateiam o desejo e pela negação com que o acolhem mantêm viva a dinâmica desejante, sem possibilidade desta se apaziguar no acto da consumação. Mas será que eu sou assim tão inocente no meu desejo? Será que cada um, ao desejar, é vítima duma conspiração vinda de fora? Ora negar a inocência do desejo será atribuir-lhe, na origem, uma decisão, o que contraria a ideia - ideia fundada em sólido senso comum - de que somos irresponsáveis pelo que desejamos. E traria ainda uma outra e não desejada implicação: o inferno não são os outros, somos nós, ou está em nós. O homem sempre gostou de cultivar a boa consciência.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

O guia do perplexo

André Kertész - Washington Square, New York, Winter (1954)

Jesus respondeu-lhes: «A obra de Deus é esta: crer naquele que Ele enviou». (João, 6:29)

Por contaminação do pensamento grego, somos conduzidos a reduzir a questão da crença ao domínio da teoria, à discussão sobre se uma determinada crença é verdadeira ou falsa, se há ou não justificação para essa crença, isto é, se há outra crença ou conjunto de crenças que a suportem. Esta forma de pensar é conduzida pelo desejo da evidência e pela busca de consolo que a certeza traz ao espírito. Ora os textos evangélicos, nomeadamente os trechos atribuídos, nessas narrativas, a Jesus Cristo, pouco têm a ver com a consolação da certeza. Mesmo quando é proposta a fé, como é o caso do texto citado de João, o sentido nunca é teórico nem visa afirmar uma certeza. Pelo contrário, o leitor fica perante um enigma, como se a fé fosse a porta para a perplexidade e o evangelho um guia do perplexo.

domingo, 4 de maio de 2014

Os limites da lei moral

Wolf Suschitzky - Street Cleaner, Westminster, London (1937)

Então os seus olhos abriram-se e reconheceram-no, mas Ele desapareceu da sua presença. (Lucas, 24:31)

Pensamos muitas vezes que o reconhecimento do outro é o cerne da nossa conduta na comunidade, seja esta qual for. Esse reconhecimento é o centro da moral social e da vida ética. O estranho episódio relatado por Lucas mostra-nos todavia os limites do reconhecimento e da vida moral. Os discípulos de Emaús reconheceram-no, mas nesse reconhecimento perderam-no, como se a lei moral fosse ainda um obstáculo ao que o Cristo vinha trazer aos homens.

sábado, 3 de maio de 2014

Poemas do Viandante (456)

Roger Fenton - Vista, Furness Abbey (1860)

456. sonhar na noite e gritar

sonhar na noite e gritar
dentro do passado

e esperar que uma mulher
venha delicada

com as mãos incendiadas
e a boca em fogo

sexta-feira, 2 de maio de 2014

A silenciosa escuta

Edward Weston - Near Neshanic, New Jersey (1941)

Por isso, Jesus, sabendo que viriam arrebatá-lo para o fazerem rei, retirou-se, de novo, sozinho, para o monte. (João, 6:15)

A solidão surge nesta passagem de João em contraponto não com a vida em comunidade mas com o exercício do poder. Aquilo que cabe a cada um de nós reger não é os outros homens mas a si mesmo. O poder é o lugar expressamente rejeitado por Cristo. Todos conhecemos a sua palavra: o meu reino não é deste mundo (João, 18:36). De onde é então o seu reino? Melhor do que uma resposta dada pelo hábito, será meditar o versículo em epígrafe. Ele dá-nos uma indicação essencial: ao rejeitar um reino, o reino humano de natureza política, ele indicou o caminho do outro, o caminho da solidão.  Trata-se de um estranho reino, cuja notícia apenas pode chegar pela silenciosa escuta na solidão, mesmo que essa solidão seja rodeada pela presença da comunidade.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Haikai do Viandante (186)

Man Ray - Dora Maar (1936)

no rumor do céu
abre-se a luz cintilante:
logo cai o véu

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Perder a Graça

August Sander - Unemployed man (1928)

Um dos maiores equívocos dos tempos modernos reside em olhar as pessoas sem trabalho como um problema essencialmente económico. Esse olhar perverso esconde que a nossa condição original é a de seres sem emprego e sem préstimo, seres que, pelo nascimento, foram abandonados no mundo. O facto de dar emprego a alguém significa, como o mostra a origem latina (implicāre), envolver. Envolver no mundo onde se manifesta a Graça da comunidade significa acolher segundo a ordem da Graça. Um desempregado não é um excedentário económico, mas alguém a quem a comunidade obliterou a Graça do acolhimento. Graça essa que a própria comunidade recebeu para por todos distribuir.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Depende da perspectiva

Rodney Smith - Skyline, New York (1992)

Sobre as coisas humanas não há verdade possível de partilhar entre o homens. Aquilo que cada um vê depende do lugar de onde olha e do sítio para que olha. Este perspectivismo não afecta apenas a verdade. Afecta também a viagem que cabe a cada um fazer. Nenhum peregrino faz a peregrinação feita por outro, nenhum viandante faz a viagem realizada por terceiros. Tudo depende daquilo que se é e da forma como se escuta a voz que o impele ao caminho. Também a viagem depende da perspectiva.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

A dor do refugiado

David Turnley - Elderly Bosnian Refugee Crying. Tuzla, Bosnia-Herzegovina (1995)

As lágrimas de um refugiado não são apenas o sintoma de uma situação crítica na ordem do mundo. A perda da pátria e o estar num território estranho, no qual não se tem direito de cidadania, são terríveis experiências do mundo. Mas a dor do refugiado é ao mesmo tempo símbolo e reminiscência. Símbolo de um outro exílio e reminiscência de uma pátria não terrestre que todos trazemos em nós. Por isso, a dor do refugiado não é apenas dor de quem perdeu a cidadania na cidade terrestre, é também a dor de quem descobriu que já era refugiado na sua própria pátria.

domingo, 27 de abril de 2014

A procura do sentido

Wolf Suschitzky - Sunday morning, Oldham (1946)

Escutar o silêncio da solidão ou a velha ária do abandono. Nessa música está todo o destino da humanidade. Atirado para o mundo, o homem vê os laços a desfazerem-se. E se atravessa a estrada não é para recompor o que está a perder, mas procurar um sentido - um novo sentido - para tamanha solidão e tão grande abandono. E tudo se joga nesse instante. A perdição ou a salvação dependem da descoberta ou não do Sentido. 

sábado, 26 de abril de 2014

Poemas do Viandante (455)

Paul Gauguin - O cavalo branco (1898)

455. Tenho um cavalo de seda

Tenho um cavalo de seda
À minha espera

Nele entro na terra fria
Nunca cavalgada

E no ritmo do galope
Descubro o silêncio

Descubro um velho cântico
Na boca calada

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Tornar-se vazio

Charles Clifford - Carrera de San Jerónimo, Madrid (1853)

O essencial não é ser isto ou ser aquilo, mas tornar-se vazio, desocupar em si o espaço ocupado pelo desejo e pela ilusão, e esperar que, nesse mesmo instante, o vazio seja preenchido pela Vida exuberante, pela Realidade que, estando para além do domínio da aparência, só nesse vazio de si se manifesta.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Haikai do Viandante (185)

Wolf Suschitzky - Embankment, London (1947)

água e penumbra
um rio de pedra e luz
repousa na sombra

quarta-feira, 23 de abril de 2014

O alfa e o ómega

Édouard Boubat - Paris, France (1962)

Os termos alemães Urmensch e Übermensch poderão ajudar-nos a compreender um dos elementos estruturais da nossa cultura. No entanto, não devemos traduzir Urmensch por homem primitivo ou pré-histórico, nem Übermensch por super-homem. Urmensch pode ser visto como o homem primordial, aquele que é o paradigma de toda humanidade e que está presente no fundo de cada ser humano. Por seu turno, o Übermensch ainda é o homem, mas, ao mesmo tempo, é mais que humano. Não há uma diferença entre o Urmensch e o Übermensch, embora para cada homem em particular, cada ser humano empírico, eles constituam dois pontos diferentes da viagem. Um, o homem primordial, é o ponto de partida, o outro o ponto de chegada. A tradição religiosa do Ocidente, o cristianismo, está toda ela aqui. Um é o alfa e outro é o ómega. Nessa tradição, o Cristo é, ao mesmo tempo o alfa e o ómega, o Urmensch e o Übermensch, o início e o fim do caminho.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Um grão de areia na duna

Brett Weston - Dune, Oceano (1934)

Recebemos uma estranha educação. Devido a ela, o homem convence-se que é livre quando, de ego inflacionado, impõe aos outros a sua vontade. Não estranha que liberdade e império possam conflituar. A liberdade, porém, nasce da ausência de ilusões sobre si mesmo, nasce quando o homem se descobre como um grão de areia perdido na imensidão da duna.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Da elevação e da queda

Brassaï - Les Escaliers de Montmartre, Paris (1930)

A escada surge, muitas vezes, como o símbolo de uma árdua subida ao que é mais elevado, mas é também um instrumento de descida. Melhor, a escada é uma forma de ocultar a própria queda. Descer tranquilamente é ainda uma forma de passar para um nível menos elevado, para um grau de compreensão da realidade menos luminoso, para um afastamento daquilo que é superior. Como todos os símbolos, a escada tem uma natureza ambígua. Mostra ao homem o esforço da elevação e esconde-lhe a tragédia da queda.

domingo, 20 de abril de 2014

Domingo de Páscoa

Agnes Marttin - Sem título n.º 11 (1977)

Na genealogia da palavra Páscoa encontramos duas raízes que merecem meditação. Em primeiro lugar, a pesakh hebraica, que significa literalmente passagem. Em segundo lugar, a pascua, vinda do latim vulgar e com a significação de pastagem. A Páscoa, na tradição católica, não é, então, apenas um tempo de transição ou uma experiência do trânsito da morte para vida, de ressurreição. Sendo isso, ela é também alimento, aquilo que permite manter a vida viva.

sábado, 19 de abril de 2014

Sábado de Aleluia

Agnes Martin - Canción (1962)

A transição entre a morte e a libertação dessa morte é feita pelo canto de louvor. É isso que encontramos no denominado tríduo pascal, como se a transição entre a morte e a ressurreição se fizesse cantando. Isto permite-nos compreender uma outra forma de dialéctica, diferente daquela que tem no seu cerne a negação. O negativo é agora o ponto de partida, mas o homem através do canto de louvor - Aleluia! - ergue-se à plenitude da vida, à emancipação da morte e à afirmação da vida.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Sexta-feira de Paixão

Mark Rothkovich (Rothko) - Nº 14 (1960)

A paixão torna visível aquilo que o homem gosta de esconder, os limites da sua liberdade. No sofrimento que toda a paixão impõe, o homem descobre-se não como ser glorioso e altivo, mas como alguém passivo, como paciente a quem uma força estranha impõe um desígnio que contraria a sua vontade. Sexta-feira de Paixão simboliza a experiência limite do desapossamento de si, da entrega completa e total àquilo que o ultrapassa, como se o caminho para si mesmo começasse na negação da sua vontade.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Quinta-feira de Endoenças

Jacinta Gil Roncalés - Composição dinâmica (1991)

Endoenças, nelas ainda se escuta a ideia de indulgência. Na indulgência, não devemos apenas escutar o perdão. Ali fala também a tolerância. No perdão, reconhece-se que o homem praticou o mal e que o praticou deliberadamente. Há nesta relação dinâmica entre o fazer o mal e o perdoar um traço que acaba por sublinhar o poder dos homens, essa sua capacidade para distribuir o mal no mundo. Na tolerância, porém, compreende-se a fraqueza dos homens, a sua fragilidade. A indulgência, neste sentido, deve ser sentida como uma verdadeira humilhação, como a revelação da nossa impotência essencial.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Torres de Babel

Alfred Eisenstaedt - A man standing in the lumberyard of Seattle Cedar Lumber Manufacturing (1939)

A desmedida é o duplo sintoma do desejo e do medo do homem. O homem teme aquilo que não pode medir. Perante essa desmedida, essa alteridade radical, ele, por vezes, aproxima-se com temor e tremor. Outras vezes, porém, sonha com a sua própria desmedida. Nessas alturas, não é o temor ou o tremor que o aproximam do infinito, mas essa estranha propensão para construir Torres de Babel.

terça-feira, 15 de abril de 2014

Haikai do Viandante (184)

Michael Kenna - French Canal, Study 2, Loir-et-Cher, France (1993)

caminhos sombrios
desenham-se pelas margens:
árvores e rios

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Abrir a janela

Alfred Eisenstaedt - Beethoven’s bust, Beethovenhaus, Bonn, Germany (1934)

Abrir a janela para que a luz chegue e permita que o viandante não caminhe na escuridão. Como o ciclo do dia e da noite, também o homem está exposto a esse jogo onde luz e trevas se sucedem, segundo a ordem das coisas. O risco está na interferência humana naquilo que a ultrapassa. Quantas vezes o dia já chegou e o homem, fechado em si, se esqueceu de abrir a janela?