segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O amor e o temor

Wifredo Lam - O passo do medo (1969)

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso.» «Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Dai e ser-vos-á dado: uma boa medida, cheia, recalcada, transbordante será lançada no vosso regaço. A medida que usardes com os outros será usada convosco.» (Lucas 6,36-38) [Comentário de Juliana de Norwich aqui]

Como romper com uma visão enviesada pelo mero interesse próprio? Como encontrar um caminho para o universal? O que se propõe aos homens é a universalização do seu padrão de julgamento e a medida da sua conduta. Esta proposta, contudo, não parte de um princípio abstracto e formal, mas do confronto de cada um com a forma como julga e age. Se os gregos propugnavam pela justa medida, pelo encontro quase aritmético de um equilíbrio, a perspectiva proveniente das palavas de Cristo é mais directa, pois reverte sobre cada um o padrão com que julga os outros e a medida como age em relação a esses outros.

O texto é marcado por uma tensão entre o que poderíamos chamar um pessimismo antropológico e um optimismo ontológico. Não há ilusão sobre a natureza egoísta do homem. Por isso, é o interesse próprio que é mobilizado para combater o enviesamento que esse mesmo interesse próprio introduz nos juízos e acções dos homens. A moderação perante os outros é ainda  resultado do desejo que se seja moderado consigo.

Este pessimismo antropológico – a desconfiança radical no homem deixado a si mesmo e conduzido pelo seu próprio critério – deve ser lido, porém, em relação com a primeira injunção do texto: Sede misericordiosos como o vosso Pai é misericordioso. A misericórdia divina, onde se configura o optimismo ontológico, é preeminente em relação ao pessimismo perante o homem. Constitui-se como o modelo virtuoso que os homens devem seguir, como o arquétipo que todas as nossas acções devem reflectir. Não por acaso, na ordem textual, ele surge em primeiro lugar.

Porque os homens são pouco atentos à misericórdia e à sua realização no mundo, é-lhes lembrado que a medida do seu julgamento e o padrão das suas acções será o critério que sobre eles recairá. Dito numa outra linguagem, quando os homens não sabem amar (nas diversas figuras que o amor pode tomar, que podem ir do amor erótico à mera amizade cívica, passando pelas inúmeras formas que o amor pode apresentar), é preciso que aprendam a temer as suas acções e os seus juízos. Por eles, serão julgados. Na economia do texto, contudo, o temor representa já o sinal de um esquecimento fundamental, o esquecimento do amor, o esquecimento da universalidade do amor presente na misericórdia.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Uma perplexidade fundamental

Albert Gleizes - A Transfiguração (1943)

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago, Jesus subiu ao monte para orar. Enquanto orava, o aspecto do seu rosto modificou-se, e as suas vestes tornaram-se de uma brancura fulgurante. E dois homens conversavam com Ele: Moisés e Elias, os quais, aparecendo rodeados de glória, falavam da sua morte, que ia acontecer em Jerusalém. Pedro e os companheiros estavam a cair de sono; mas, despertando, viram a glória de Jesus e os dois homens que estavam com Ele. Quando eles iam separar-se de Jesus, Pedro disse-lhe: «Mestre, é bom estarmos aqui. Façamos três tendas: uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias.» Não sabia o que estava a dizer. Enquanto dizia isto, surgiu uma nuvem que os cobriu e, quando entraram na nuvem, ficaram atemorizados. E da nuvem veio uma voz que disse: «Este é o meu Filho predilecto. Escutai-o.» Quando a voz se fez ouvir, Jesus ficou só. Os discípulos guardaram silêncio e, naqueles dias, nada contaram a ninguém do que tinham visto. (Lucas 9,28b-36) [Comentário de Cirilo de Alexandria aqui]

O silêncio que Pedro, João e Tiago guardaram após os eventos do Monte Tabor é o sinal da profunda perplexidade perante um acontecimento que está para lá daquilo que consideramos a experiência possível. Os limites da experiência possível, aqueles que são ditados pelo curso normal da natureza e condensados no que chamamos, hoje em dia, leis da natureza, tinham sido suspensos. Na abertura que se deu no tecido do real, uma outra realidade – na verdade uma hiper-realidade ou uma sobrerrealidade – manifestou-se. Digno de nota não é apenas esse ruptura na ordem da realidade. Também o facto de aqueles três homens, naquele momento, terem tido, apesar da sua incompreensão, acesso ao fenómeno, como se também neles alguma coisa de abrisse, merece atenção.

A ruptura da tecelagem do mundo está claramente afirmada pela tradição ao falar em transfiguração do Cristo. A mudança de figura manifesta-se numa reconfiguração dada pela metamorfose do rosto, pela fulguração das vestes, pelo diálogo com aqueles que há muito tinham partido. A transfiguração é momento de espanto e símbolo de continuidade, sinal de uma tradição que, tendo origem em Abraão, tem pontos cruciais em Moisés e Elias e se cumpre em Cristo. A conjugação da transfiguração e da tradição deixam suspeitar uma dupla relação com a temporalidade. Por um lado, a presença de Moisés e de Elias inscreve Cristo numa História, na dinâmica do acontecer no mundo, numa perspectiva horizontal. Por outro, o encontro entre essas três figuras, tal como é narrado, remete para uma perspectiva vertical onde o tempo aparece abolido e transcendido.

Pedro, com a sua tentativa de inscrever o acontecimento na ordem da realidade, no desejo de o apreender e prender aos limites da experiência possível, não sabia o que estava a dizer. Uma outra ordem se impunha, uma ordem que aos seres humanos só é possível perscrutar a partir do velamento que a nuvem impõe. A condição humana não suporta a luz e como tal a nuvem representa a protecção dos homens e a explicação da incerteza que sempre envolve aqueles que ouvem “Este é o meu Filho predilecto. Escutai-o!” Ao homem não é oferecida nenhuma razão clara e distinta, nenhuma certeza, que justifique o exercício da escuta. Como Pedro, João e Tiago, os homens têm acesso a uma perplexidade fundamental. E é nesta perplexidade que se inscreve a fé.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

A restauração da fraternidade

Marc Chagall - Caim e Abel (1911)

Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: «Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, pois Ele faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus e faz cair a chuva sobre os justos e os pecadores. Porque, se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os cobradores de impostos? E, se saudais somente os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai celeste.» (Mateus 5,43-48) [Comentário de Policarpo de Esmirna aqui]

Como em outros textos, manifesta-se neste uma vontade deliberada de corte com uma tradição. Esta tradição remete para um longo hábito social fundado na reciprocidade, que ordena amar o próximo e odiar o inimigo. O que se descobre não é a irrelevância da reciprocidade mas os seus limites. A reciprocidade continua a ser um valor importante, mas ela é limitada pois defende que ao mal se deve responder com o mal, o que reconduz ao eterno ciclo de violência, no qual cada acto de vingança apenas tem por finalidade acentuar e dinamizar a própria violência, levá-la a um estado paroxístico, para cuja saída nas sociedades tradicionais, segundo René Girard, se instituiu a crise sacrificial. Sendo assim, descobre-se que a reciprocidade não é um bem último, um bem em si mesmo.

Podemos pensar as várias figuras em que a relação com o outro se encontra no estado de suspensão da fraternidade, cujo arquétipo na cultura judaica se dá no homicídio de Abel por Caim. O concorrente, o adversário, o rival e o inimigo. Estas são figuras que, numa escalada do desejo conflituante, rompem com a fraternidade e instauram o perigo da desagregação da vida em comum, seja qual for o âmbito em que esta é considerada. Com o sublinhar da necessidade de amar os inimigos e orar pelos perseguidores percebem-se duas coisas essenciais.

Em primeiro lugar, do ponto de vista genético, a preeminência da fraternidade entre os homens sobre as figuras do conflito, independentemente da intensidade da oposição com que se apresentam. Em segundo lugar, a importância estrutural, do ponto de vista da razão prática, da restauração dessa fraternidade, de tal forma que o mandamento ético se consubstancia no amor pelos inimigos e na oração pelos perseguidores. A perfeição, que surge no texto de Mateus, ao mesmo tempo como conclusão narrativa e injunção ética, toma a forma de uma equanimidade perante os homens, uma equanimidade que ordena que todos sejam tratados como irmãos.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O Filho do Homem

René Magritte - O Filho do Homem (1964)

Naquele tempo, ao chegar à região de Cesareia de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta aos seus discípulos: «Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?» Eles responderam: «Uns dizem que é João Baptista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas.» Perguntou-lhes de novo: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo.» Jesus disse-lhe em resposta: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela. Dar-te ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu.» (Mateus 16,13-19) [Comentário de Bento XVI aqui]

O texto trata da instituição da Igreja, o momento em que Cristo coloca Simão como fundamento dessa Igreja. Esta acto instituinte, contudo, deve ser recolocado no contexto, e este é o de um inquérito. O Mestre interroga o seus discípulos, e interroga-os não sobre qualquer matéria de natureza teórica, sobre alguma coisa que eles pudessem saber pelo estudo, mas acerca da própria natureza do Mestre.

O inquérito não deixa de ser surpreendente e marcado por clara ambiguidade. A primeira questão interroga acerca da crença corrente na opinião pública. A ambiguidade está na expressão, corrente no Antigo e no Novo Testamentos, com que Cristo se designa a si mesmo, o Filho do Homem (ben Adam). Essa expressão, em hebraico e na cultura judaica, remete para a referência homem e desse modo a questão poderia ser reformulada da seguinte forma: “Quem dizem os homens que é o homem?”, o que permite perceber que a questão se dirige à essência do próprio homem. O que sabem os homens de si mesmos?

Os homens sabiam pouco, pois viam em Cristo um homem puramente particular, mas não aquilo que é essencial em todos os homens. Na verdade, não se reconheciam a si mesmos na figura do Mestre. A segunda parte do inquérito é dirigida aos discípulos, e Simão reconhece o Mestre. O que leva Cristo a tomar Simão como o alicerce da sua Igreja é o reconhecimento da profunda identidade entre o Filho do Homem (bem Adam) e o Filho do Deus Vivo. Este reconhecimento de Cristo por parte de Simão Pedro é, concomitantemente, o auto-reconhecimento de Pedro. Todo o homem é filho de Deus.

Os poderes conferidos a Pedro estão fundados no reconhecimento que tem da própria humanidade, da sua origem, no reconhecimento do modelo pelo qual todo o homem foi criado. Esse reconhecimento não nasce da carne e do sangue, isto é, não nasce de uma sabedoria exterior, não vem pelo estudo ou pelo ouvir dizer de uma tradição. O reconhecimento do Filho Homem nasce da vida interior, da revelação do Espírito. A afirmação da sacralidade da vida humana e a condição de possibilidade da afirmação da sua dignidade residem neste reconhecimento alicerçado na revelação. E é sobre estes alicerces que se funda uma nova comunidade, não uma comunidade natural, de natureza bio-social, mas uma comunidade espiritual e moral que, pelo reconhecimento do Filho do Homem, eleva os homens para lá da mera contingência da animalidade.

Sonetos do Viandante (15)

Paul Serusier - O Aguaceiro (1893)

15. Amo os dias taciturnos, amo a sombra

Amo os dias taciturnos, amo a sombra
E a chuva fria que trazem, amo a dor
Que com eles desaba, amo o sopro
Do vendaval e a cinza que se espalha.

Com esta melodia, faço canção
E traço pelo campo a fronteira,
Dessa pátria sem fogo nem futuro,
Casa de colmo, verde de saudade.

Quando a chuva cai, olho a janela
E a terra treme, fímbria luminosa
No veludo rasgado e frio do rosto.

De tudo o que amei, resta-me a penumbra
Que a tua voz desenhava nos dias pálidos,
O perfume vazio dos teus segredos.