O maior perigo vem da busca de segurança. Muitas vezes, na ânsia de fazer proselitismo, o que se oferece às pessoas é a ilusão da segurança, de uma segurança que acaba no outro mundo mas que começa já neste. Mas a vida está longe de ser segura e a verdade nunca trouxe segurança a ninguém. Por que razão a via haveria de ser segura?
domingo, 16 de maio de 2010
sexta-feira, 14 de maio de 2010
Tornar-se em nada
O que está na nossa mão? Nada! Mas este nada não significa nada fazer, indiferença, entrega à fatalidade. Este nada significa o tornarmo-nos no nada que somos e nessa nulidade encontramos O que é. A grande dificuldade é aceitarmos a nossa condição, reconhecermos a indigência da nossa natureza, o carácter precário das nossas pequenas verdades. Tornarmo-nos em nada não é a negação da vida, nem a afirmação do niilismo. É apenas a humilde disposição para que o Ser fale no silêncio dessa nulidade.
Poemas do viandante
103. O GRANDE RIO
uma ilha
na roda da noite
a flor ébria
esquecida
um nome
entre provérbios
e cânticos no azul
desses lábios
aí começa
a peregrinação
o mar incendiado
as escamas
que saltam
os olhos abertos
para o grande rio
de onde tudo parte
uma ilha
na roda da noite
a flor ébria
esquecida
um nome
entre provérbios
e cânticos no azul
desses lábios
aí começa
a peregrinação
o mar incendiado
as escamas
que saltam
os olhos abertos
para o grande rio
de onde tudo parte
quinta-feira, 13 de maio de 2010
A peregrinação errante
Interrogo-me muitas vezes sobre o modo como a Igreja Católica deverá falar aos homens de hoje. Refiro-me aqueles que consumaram em si o processo de modernização iniciado pela Reforma protestante e o Iluminismo. Por exemplo, o esforço de Bento XVI, uma das poucas vozes europeias que tem alguma coisa a dizer, tem sido notável, nomeadamente no campo da cultura, da arte, da filosofia, da dimensão social e política da acção dos homens. Por vezes, porém, sinto que há algo de verdadeiramente essencial que nós homens modernos aspiramos e que não encontramos na Igreja. Para além da questão da cultura e da arte, para além das questões sociais e políticas, para além mesmo das questões do rito e da teologia, é provável que a deriva em que vive o homem moderno esteja a criar um espaço para uma experiência espiritual profunda e radical.
Mais do que em outros momentos da História do Ocidente, a grande experiência do desvario, da alienação, da negação do Espírito, da dissipação da vida, tudo isso que constitui a humanidade ocidental separada já da Igreja (essa humanidade que, com Nietzsche ou na sequência deste, proclamou a morte de Deus), tudo isso, dizia, significa uma experiência desmedida de errância. Esta é o lado oculto da maioridade que os homens atingiram na sequência do Iluminismo. A errância, todavia, significa ainda peregrinação, mesmo que este peregrinar não tenha, ou ainda não tenha, um santuário onde se acolher.
Ora estes peregrinos, que não sabem que o são, são uma cada vez maior fatia das nossas sociedades, e talvez precisem de um outro tipo de linguagem, e de uma nova forma de diálogo. Talvez estejam já suficientemente maduros, embora não o pressintam nem a Igreja o compreenda, para o chamamento do Espírito. Para estes espíritos, aparentemente tão orgulhosos da sua errância, talvez o essencial não seja a questão da dogmática teológica, nem da renovação da perspectiva estética (bem necessária na Igreja, por sinal), nem do diálogo entre a Igreja e a cultura pós-moderna onde nos movemos, nem a problemática social e política (um ponto importante, na verdade). Tudo isso lhes parecerá ocioso. Melhor, tudo isso será sentido como cansativo e destituído de interesse.
Mas não estarão sequiosos que o Espírito fale para lá da Razão? Seja a razão teológica, ou estética, ou ética, ou política. Não estarão sequiosos da intranquilidade da aventura que será o encontro com aquilo que os constitui e os institui? A errância em que vivem não será já uma preparação para a intranquilidade da Via? Não precisará, por isso, a Igreja de encontrar dentro de si gente com profunda experiência e maturidade espiritual e que, a partir dessa experiência madura, possa falar com os homens de hoje, não como um pastor fala ao rebanho nem como um adulto fala a menores de idade, mas como peregrinos experientes na Via falam a outros que a procuram, mesmo que o não saibam? Não precisa a Igreja desses homens e de encontrar com eles outra linguagem?
Maturidade espiritual significará, pelo menos, duas coisas. Por um lado experiência efectiva na Via para a Verdade e para a Vida. Por outro, abandono da segurança da linguagem cristalizada e já morta que perpassa no ritual e na liturgia. Essa linguagem é, muitas vezes, pueril e contraproducente, já incapaz e impotente para conter o mistério e falar dele aos homens de hoje. Certamente que a Igreja Católica atravessa muitos e graves problemas. Mas talvez o mais grave seja o de não conseguir encontrar em si forças espirituais suficientemente maduras, criadoras e seguras para acolher os errantes e sequiosos peregrinos do mundo moderno. Peregrinos esses que muito provavelmente estarão pouco abertos para questões de dogmática e muito para experimentarem o Caminho.
Etiquetas:
Errância,
Espírito,
Igreja,
Peregrinação
Poemas do viandante
102. TRAIÇÃO
germina um canto
na solidão da noite
a imagem trazida num livro
onde recolho orações
sonhos transviados
a promessa esquecida
cavalo na estepe
o coração entrega-se
ao tempo inicial
lugar onde rememoro
cada metáfora
onde te traí
germina um canto
na solidão da noite
a imagem trazida num livro
onde recolho orações
sonhos transviados
a promessa esquecida
cavalo na estepe
o coração entrega-se
ao tempo inicial
lugar onde rememoro
cada metáfora
onde te traí
terça-feira, 11 de maio de 2010
Poemas do viandante
101. DANÇAR A POLCA
o disforme oráculo caminha
traz nas mãos a erva
do destino
duas pedras e uma rosa
que penduras no calendário
para que serve dançar a polca
a herança trazida da boémia
se a língua se prende
nas palavras que o silêncio
te sopra
o disforme oráculo caminha
traz nas mãos a erva
do destino
duas pedras e uma rosa
que penduras no calendário
para que serve dançar a polca
a herança trazida da boémia
se a língua se prende
nas palavras que o silêncio
te sopra
quarta-feira, 5 de maio de 2010
Poemas do viandante
100. A NOITE
a noite cobre-se
de seda e vem
negra e esplêndida
com asas de gavião
poisa no ramo
dos teus olhos
e apaga a luz
dos meus
a noite cobre-se
de seda e vem
negra e esplêndida
com asas de gavião
poisa no ramo
dos teus olhos
e apaga a luz
dos meus
terça-feira, 4 de maio de 2010
Poemas do viandante
99. TEMPESTADE
a tempestade zinca
a cidade
abre sulcos de fogo
na planície de cinza
faz cantar as nuvens
sobre as cabeças
sonâmbulas
de quem passa
a tempestade zinca
a cidade
abre sulcos de fogo
na planície de cinza
faz cantar as nuvens
sobre as cabeças
sonâmbulas
de quem passa
sábado, 1 de maio de 2010
Poemas do viandante
98. ESPERA
a viagem
essa hora aprazada
inunda-me
de poeira
aí te espero
como num alpendre
destelhado
olhos fechados
um incêndio
prestes a florir
a viagem
essa hora aprazada
inunda-me
de poeira
aí te espero
como num alpendre
destelhado
olhos fechados
um incêndio
prestes a florir
quarta-feira, 28 de abril de 2010
Poemas do viandante
97. ÁRVORES
começaram a florir
as lentas árvores da cidade
rebanho perdido
nestes dias
que maio chama
para a rápida morte
ainda nada está decidido
estendem para o céu
as pobres árvores
os ramos
dedos cansados
de tanto florir
cobertas de folhas
esperam o Outono
o frio que te há-de
despir
começaram a florir
as lentas árvores da cidade
rebanho perdido
nestes dias
que maio chama
para a rápida morte
ainda nada está decidido
estendem para o céu
as pobres árvores
os ramos
dedos cansados
de tanto florir
cobertas de folhas
esperam o Outono
o frio que te há-de
despir
segunda-feira, 26 de abril de 2010
Poemas do viandante
96. FLORESTA
a floresta tardia
veste-se de
natureza caligráfica
arvora letras
sílabas indecisas
as primeiras palavras
com que o vento
então falava
a floresta tardia
veste-se de
natureza caligráfica
arvora letras
sílabas indecisas
as primeiras palavras
com que o vento
então falava
domingo, 25 de abril de 2010
Poemas do viandante
95. ESPLENDOR E CINZA
no jardim virado ao pretérito
traço a rua por onde
imóvel
caminhas
vens
sem vestes luminosas
esplendor e cinza
dos meus olhos
no jardim virado ao pretérito
traço a rua por onde
imóvel
caminhas
vens
sem vestes luminosas
esplendor e cinza
dos meus olhos
sábado, 24 de abril de 2010
Poemas do viandante
94. OS QUATRO ELEMENTOS: TERRA
montes sobre a planície
a ilha a que chamas
presente
poeira lançada sobre o muro
daquela casa
que é uma lezíria
assim tão sólida
recorda campos baldios
à espera que mendigos cheguem
e de joelhos
estendam a ferida mão
sobre a poeira da terra
montes sobre a planície
a ilha a que chamas
presente
poeira lançada sobre o muro
daquela casa
que é uma lezíria
assim tão sólida
recorda campos baldios
à espera que mendigos cheguem
e de joelhos
estendam a ferida mão
sobre a poeira da terra
sexta-feira, 23 de abril de 2010
Poemas do viandante
93. OS QUATRO ELEMENTOS: ÁGUA
uma orquídea
o rumor de algum pássaro
a pele suada
à luz da tarde
deixo cair a mão
sobre a névoa do meio-dia
e afogo-me na água
onde tudo arde
uma orquídea
o rumor de algum pássaro
a pele suada
à luz da tarde
deixo cair a mão
sobre a névoa do meio-dia
e afogo-me na água
onde tudo arde
quinta-feira, 22 de abril de 2010
Poemas do viandante
92. OS QUATRO ELEMENTOS: AR
nem sempre é naufrágio
o que derrota os barcos
e devolve o marinheiro a terra
nem sempre é medo
o que cala o solitário
e na escuridão o encerra
há ainda o vento
sopra onde quer
e para aqui ou ali te leva
nem sempre é naufrágio
o que derrota os barcos
e devolve o marinheiro a terra
nem sempre é medo
o que cala o solitário
e na escuridão o encerra
há ainda o vento
sopra onde quer
e para aqui ou ali te leva
quarta-feira, 21 de abril de 2010
Poemas do viandante
91. OS QUATRO ELEMENTOS: FOGO
o lume arde
nesses dedos
cobertos de seda
vestidos de cambraia
o lume é uma máquina
decepa as mãos
na vindima ardente
de uma ilusão
sonhos são sedas
e cambraias a arder
nos dedos mecânicos
da decepada mão
lume
o sonâmbulo sonho
onde te escuto
sob a copa desta faia
o lume arde
nesses dedos
cobertos de seda
vestidos de cambraia
o lume é uma máquina
decepa as mãos
na vindima ardente
de uma ilusão
sonhos são sedas
e cambraias a arder
nos dedos mecânicos
da decepada mão
lume
o sonâmbulo sonho
onde te escuto
sob a copa desta faia
terça-feira, 20 de abril de 2010
Poemas do viandante
90. MÃO QUEBRADA
uma ligeira comoção
a nortada uivava
e o coração desordenado
crescia
tumor ancorado
na falência das células
nasci sob o princípio de incerteza
a mão quebrada
o toiro cantando
na solidão da arena
a tua voz ao longe a sussurrar
no desamparo de mim
uma ligeira comoção
a nortada uivava
e o coração desordenado
crescia
tumor ancorado
na falência das células
nasci sob o princípio de incerteza
a mão quebrada
o toiro cantando
na solidão da arena
a tua voz ao longe a sussurrar
no desamparo de mim
segunda-feira, 19 de abril de 2010
Poemas do viandante
89. PALAVRAS
as palavras ditas
véspera das que hão-de vir
cobrem de rugas
o palácio
deixam um hálito vulcânico
sobre a mesa
um longo verão
sem pão e vinho
o rosto
pássaro pousado
na sóbria memória
chamaste-lhe morte
as palavras ditas
véspera das que hão-de vir
cobrem de rugas
o palácio
deixam um hálito vulcânico
sobre a mesa
um longo verão
sem pão e vinho
o rosto
pássaro pousado
na sóbria memória
chamaste-lhe morte
domingo, 18 de abril de 2010
Poemas do viandante
88. CANTO
um frio silêncio caiu
a pedra branca talhada
indício de fogo e gelo
o espaço feito noite
a palavra desaguada
sacudida de esperança
canto
é tudo o que resta
se a sombra de tuas mãos se vai
canto
no frio silêncio do gelo
no fogo da palavra
no espaço sem esperança
canto
e a súbita primavera ateia
de flores o velho castanheiro
um frio silêncio caiu
a pedra branca talhada
indício de fogo e gelo
o espaço feito noite
a palavra desaguada
sacudida de esperança
canto
é tudo o que resta
se a sombra de tuas mãos se vai
canto
no frio silêncio do gelo
no fogo da palavra
no espaço sem esperança
canto
e a súbita primavera ateia
de flores o velho castanheiro
quarta-feira, 14 de abril de 2010
Poemas do Viandante (86)
Asher Brown Durand - Forest in the Morning Light (1855)
86. De que vale
De que vale
o refúgio
na floresta,
se a noite
morre
na luz da manhã?
Indecisa,
exígua,
rio sem margens,
a luz chega
e anoitece
o coração.
segunda-feira, 12 de abril de 2010
Poemas do Viandante (85)
Georgia O'keeffe - White Rose and Larkspur (1900)
85. A rosa branca
do abandono
trago-a comigo.
Dorme na noite,
relâmpago
coberto de nuvens
e vento da floresta.
Quando se abre,
a terra treme,
e um império nasce
na água do mar.
domingo, 11 de abril de 2010
sexta-feira, 9 de abril de 2010
Poemas do Viandante (83)
Salvador Tuset - Anticoli (1913)
83. Junho
Junho
abre-se.
Refúgio
de luz,
ardor
de rosa,
incêndio
de matagal.
domingo, 4 de abril de 2010
Poemas do Viandante (82)
Pablo Picasso - Cabeça de Fauno (1937-1938)
82. Ausentou-se
Ausentou-se,
perdeu o limiar
e a voz ecoou
na noite desabrigada.
Ao ir pelo mundo,
o viandante rodopia
no centro da vida.
Fauno nas trevas,
anjo sobre a cidade,
a escura luz
destes versos.
sábado, 3 de abril de 2010
Poemas do Viandante (81)
Christian Bérard - The Seventh Symphony. A Bird (1938)
81. Um animal ferido
Um animal ferido
tomba
pelo chão,
entre juncos
de sombra
e ervas abertas
para a luz.
Pobre orquídea
de fogo
e penumbra,
pássaro caído
na véspera do verão.
sexta-feira, 2 de abril de 2010
Páscoa e tempo
O mistério pascal, a morte e a ressurreição. Por vezes, diz-se "tempo de Páscoa", mas nunca se percebe nessa declaração a tautologia aí presente. Pensamos que há um tempo de Páscoa, outro de Natal, um de Carnaval, ou pensamos em tempos profanos, como aqueles onde, nos dias de hoje, decorre a vida dos homens. Isso ajuda-nos a falhar a compreensão da tautologia. Entre cada instante e a Páscoa cristã há uma semelhança que talvez seja pertubadora. A Páscoa dos cristãos é marcada pela morte de Cristo e a sua ressurreição. Ora esta narrativa plasmada no tempo, entre sexta-feira e domingo de madrugada, permite apreender a essência do instante temporal. Nas Confissões (IX, 14), Agostinho de Hipona, enfrenta o tempo com uma aporia: "Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a perguntar, já não sei." Uma aporia é o sintoma de uma dificuldade, quando não de um mistério.
O que acontece a cada instante é uma morte e uma ressurreição. Na cruz do instantes (cruz, pois lá se cruzam passado e futuro) crucifica-se o ser que somos mas que deixamos de ser, morremos para o que fomos, que passa a ser apenas memória e passível de rememoração. Mas essa morte é a condição de possibilidade da vida que está a chegar. Morremos e ressuscitamos, instantaneamente. A Páscoa ao sacralizar esse instante de morte e ressurreição dá-lhe uma dimensão absoluta. Na mais relativa das relatividades, o instante, encontramos a dimensão do absoluto. Ao morrermos, ressuscitamos para a eternidade. Esta já está aí, embora sejamos cegos para o que está aí. A Páscoa talvez não seja mais do que um exercício de abertura dos olhos ou de focalização do olhar.
domingo, 21 de março de 2010
Poemas do Viandante (80)
Claude Monet - The Red Kerchief: Portrait of Camille Monet (1860-70)
80. Sob a sombra
Sob a sombra,
um desejo
de água,
promessa
de noite,
se demoras.
E assim fico
no vidro
da manhã,
esperando
o sono,
contando
as horas.
terça-feira, 9 de março de 2010
Poemas do Viandante (79)
George Inness - Twilight (1860)
79. Veio o crepúsculo
Veio o crepúsculo
no dorso da tarde
e pediu pão e vinho.
Saciado, levantou-se,
ergueu os olhos
para a noite
e, como uma rosa,
em silêncio se despediu.
segunda-feira, 8 de março de 2010
Poemas do Viandante (78)
Martin Johnson Heade - Approaching Thunderstorm (1859)
78. Das nuvens
Das nuvens,
o silêncio
do entardecer.
Tão húmido
e tão frio,
desliza na voz
que o vai trazer.
segunda-feira, 1 de março de 2010
Poemas do Viandante (77)
77. Penumbra
Penumbra
de silêncio
e fogo.
Alegria
de sombra,
um cavalo
de sangue.
A voz
que oiço
e logo calo.
Penumbra
de silêncio
e fogo.
Alegria
de sombra,
um cavalo
de sangue.
A voz
que oiço
e logo calo.
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