domingo, 21 de agosto de 2016

Jardins e festas

Louis Valtat - Festa no jardim (1888)

O jardim é um símbolo fundador da cultura ocidental. A dor e a morte vêm com a expulsão da humanidade do jardim do Éden. Facilmente se entende a ligação entre jardins e festas. O jardim, ao contrário do espaço que lhe é exterior, é o lugar da felicidade e do prazer inocente, o sítio da festa. Sempre que as festividades humanas se realizam num jardim, há como que uma actualização da felicidade mítica  e do prazer inocente perdidos. Toda a viagem do homem é, em última análise, uma demanda do jardim originário de onde se sente expulso.

sábado, 20 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (568)

Antonio Rojas - Autentica linea de sombra (1996)

568. na lâmina do perigo

na lâmina do perigo
resvala a linha
risca uma 
sombra
entre a luz
da queda
e a noite
da redenção

(04/08/2016)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Voltar a si

Mery Sales - Ensimismados (1996-99)

Voltar-se para si mesmo - encerrar-se em si - pode ser sinal de uma patologia, o resultado de uma incapacidade de lidar com os outros e o mundo, o medo do estranho e do ameaçador. O ensimesmamento pode ser, contudo, um processo de cura espiritual, um retorno a si para ultrapassar as múltiplas cisões que o mundo impõe. Mais do que um encerrar-se em si será um voltar a si, um retorno a casa para, de um outra forma e ultrapassada a fragmentação, viver com os outros e no mundo. Onde reside o perigo reside também a cura.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (293)

Javier Martinez de Aguirre - Árbol caído

árvore caída
sobre as águas da ribeira
a vida floresce

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A sombra da solidão

Ernesto Murillo - A través del muro (1997-99)

Foi aqui que cheguei. Outros foram longe, muito longe. A vida corre-lhes bem. Invejo-os? Em tempos, pensei que sim. Hoje, não. A vida brilhante, o mundo como palco onde representam o seu papel. Nunca tive talento para o teatro e a sociedade exige-o. A princípio nem dei por isso, mas lentamente percebi que tinha optado. Fechei-me neste lugar onde não precisava de representar. Foram-me esquecendo, mas eu nunca os esqueci. Com paciência, escavei um buraco no muro. É de lá, sem que me vejam, que os observo. Tornei-me um voyeur. Sou a sombra que os assombra. A minha solidão é a sombra da sua solidão.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (567)

Charles Marq - A un poète (1984)

567. a poesia é um

a poesia é um
vestígio de luz
a cilada sombria
vinda da terra
o vértice onde dobro
e desdobro
a língua e
uma sílaba
bebe-me o sangue
e canta na secura
do deserto

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Liberdade e solidão

Joan Abelló i Prat - Competición motorista en la Isla de Man (1967)

A vida social é marcada por duas orientações que, aparentemente, entram em choque: a competição e a cooperação. Na verdade, estas formas de viver em sociedade referem-se à necessidade de adaptação ao meio que é dado ao homem para viver. A liberdade está, todavia, para além do competir e do cooperar. Começa na assumpção da solidão como ponto de partida da vida do espírito, a qual não se coaduna nem com o fascínio competitivo nem com o instinto gregário do rebanho. A liberdade, como tudo o que é essencial na vida espiritual do homem, exige o confronto com a singularidade de si mesmo e a solidão que essa singularidade exige.

domingo, 14 de agosto de 2016

O jogo de xadrez

Paul Ackerman - La partie d'échecs

Umas vezes ganha ela; outras, eu. Amei-a? Já não me recordo. O tempo passa e a memória compõe fábulas para aliviar a consciência. De um momento para o outro, descobrimos o xadrez. Dispomos as pedras em silêncio, depois jogamos. Não precisamos de falar. Com o passar dos anos, todos os nossos contactos se resumiram ao jogo. Casámos, descobrimo-lo há muito, para um jogo sem fim. Em cada cheque-mate o meu coração vibra de alegria, como se a matasse. Quando ganha ela, os seus olhos vitoriam a minha morte. O importante é não empatarmos. Isso seria uma espécie de acordo, a destruição da guerra que nos une.

sábado, 13 de agosto de 2016

Sob o império dos objectos

Carlo Carra - Ritmi di Oggetti (1911)

Presos ao fascínio dos objectos, mede-se, de forma pouco meditada, o vigor espiritual de uma civilização pelos objectos nela produzidos ou, quando objectos naturais, por ela valorizados. Os objectos, contudo, possuem os seus próprios ritmos e estes estão longe de ser os ritmos do espírito humano. Seduzidos pelo dinamismo das coisas, os homens esquecem o seu próprio ritmo e alienam-se a si mesmos, ao sujeitar a sua vida espiritual ao ritmo das coisas. Tornam-se, sob o império dos objectos, coisas entre coisas, objectos entre objectos.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (566)

Maria Helena Vieira Da Silva - Batalha de vermelhos e azuis (1953)

566. vermelhos ao vento

vermelhos ao vento
eriçados na
angústia do azul
marcham pelo campo
e esperam
a fénix ou a esfinge
ou a grande batalha
a vir nos dias
de calor
a vir nas chuvas
de inverno

(04/08/2016)