segunda-feira, 7 de março de 2016

Haikai do Viandante (275)

Paul Cezanne - Chateau Noir (1904-6)

nas paredes negras
oiço o silêncio da tarde
os campos em flor

domingo, 6 de março de 2016

Uma carta

Alfonso Sucasas - Carta a Rosalía (1989)

Escrevi esta carta como se tivesse alguém a quem a enviar. Imagino uns dedos a abri-la, a ânsia a bater no coração antes de os olhos tomarem de assalta as palavras, palavras escritas num azul tão puro, como aquele que o céu deixa ver nos dias de primavera. Ao imaginar, esses dedos e o pulsar do coração sob os seios, enterneço-me. Há tanto tempo que não me enterneço. O meu coração endureceu e eu escrevo a carta para te poder imaginar a lê-la e enternecer-me na melancolia que haveria em ti, se eu te tivesse escrito e se tu abrisses a carta para ler as palavras que te escrevi com o mais puro azul que o céu tinha.

sábado, 5 de março de 2016

Poemas do Viandante (530)

Francisco Sebastián - Entardecer (1987)

530. Entardece

Entardece
neste inverno
incerto,
neste dia
escuro e frio.
Entardecem,
na sombra
dos teus olhos,
os barcos 
que passam 
no rio.

sexta-feira, 4 de março de 2016

Espero

John Marin - Figuras en una sala de espera (1931)

Espero. Espero entre esta gente que também espera. Conversam por cima do meu silêncio. Invejo-os. Eu nada tenho a dizer. O que me resta é olhar, fingir que não os oiço. O que poderia eu dizer? Em mim tudo é incerteza, opinião inacabada. Começo a formular um juízo e logo me calo. Escrúpulos? Sim, não seria falso. Quem nada sabe, o que pode dizer, como pode julgar? Deixo-me envolver no silêncio que paira sob aquelas vozes, O silêncio cresce dentro de mim, toma forma, oprime-me o peito e solta-se como uma nuvem. Paira no ar e desce lentamente sobre as bocas que falam, e elas tornam-se mais lentas, mais abafadas, mais indecisas. A nuvem adensa-se e as vozes são já uma sombra, quase uma treva, até que a noite as engole e emudecem. Espero e falo no silêncio da minha voz.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Paisagem e realidade

João Hogan - Paisagem (1948-50)

A paisagem é uma das mais poderosas invenções do espírito. Um hábito ancestral leva-nos a crer que as paisagens são objectivas, que se manifestam perante o nosso olhar, e que, dessa objectividade, se prova a sua realidade. Aquilo a que chamamos paisagem, porém, não é mais que uma invenção espiritual, uma realização que o espírito projecta no ecrã do mundo. São irreais então as paisagens? Não, não são, pois resultam de uma realização e é esta que dá toda a realidade ao que chamamos real. 

quarta-feira, 2 de março de 2016

Haikai do Viandante (274)

Piet Mondrian - Along the Amstel (1903)

secreto silêncio
a sombra desceu no rio
árvores de inverno

terça-feira, 1 de março de 2016

Memória e identidade

Fernand Khnopff - Memórias (1889)

A memória, na tradição platónica, tem um papel central na vida espiritual. O que se joga nesta é uma reminiscência a activar sobre sobre o mundo verdadeiro que, antes de entrar no corpo, a alma teria contemplado. Esta relevância da memória faz-se sobre um processo de aniquilação das memórias sensíveis que a vida quotidiana deixa em nós. As memórias temporais são um obstáculo à vida do espírito, como a história do destino da mulher de Lot ensina numa outra tradição. Esta destruição da memória sensível significa, porém, um desfazer da identidade construída, como se a vida espiritual não fosse mais do que um caminho entre essa identidade construída e uma enigmática identidade originária recebida.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A manifestação do espírito

Thomas Hart Benton - City Building (Study for America Today) (1930)

O mundo material construído pelo homem exerce um poderoso fascínio. Esse fascínio nasce da aparência plástica que seduz o olhar. Esta sedução traz nela um perigo. Ficar preso na azáfama das aparências, na sua exuberância, e esquecer que tudo o que assim se oferece aos sentidos não é outra coisa senão o operar do espírito. A realidade - se quisermos usar esse equívoco conceito - está para além daquilo que captamos através das sensações. Ela reside não na matéria mas no espírito que age sobre ela e lhe dá uma configuração. O que vemos - ou que sentimos, melhor - não é mais do que uma manifestação da vida espiritual.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

O poeta e o anjo

Mário Eloy – O Poeta e o Anjo (c. 1938)

Recosto a cabeça no regaço dela e penso. Onde se inscreve a fronteira entre o poeta e o anjo? Dói-me, dói-me todo o corpo. Os anjos, esses, não têm dores. Os anjos não têm corpo, diz-se. Na cabeça daqueles corpos que não são corpos há, porém, ritmo, uma música, a música das esfera celestes. E eu oiço essa música. Toma-me por dentro, corre por artérias e veias e explode-me no coração. É nesse momento que escrevo. Escrevo o que oiço. Escrevo a sombra do cântico dos anjos, escrevo o eco longínquo da música das esferas celestes. Agora que tudo se apaga, agora que a minha cabeça repousa, por uma última vez no regaço dela, já não oiço música alguma. Abro os olhos e vejo um anjo. Um anjo que ainda não sou mas que serei quando...

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (529)

Albuquerque Mendes - Os Frequentadores do Cabaret Voltaire (1983)

529. No velho cabaret

No velho cabaret,
eu dançava
preso na agonia,
suspenso
de um corpo,
de um copo de vinho,
da luz que tece
a sombra da noite,
a carícia da morte.