quarta-feira, 29 de julho de 2015

A dialéctica do arrependimento

Ignacio Díaz Olano - Arrependida (1895-96)

A religião, a justiça, a própria vida comum têm um dos seus alicerces na prática do arrependimento. Contritos, os que se arrependem de alguma coisa, ostentam um firme propósito de não mais tornar a fazê-la. Em tudo isto, porém, há uma perversidade que está longe de ser percebida. Ao arrependimento está subjacente a crença de que se é melhor, uma revolta contra a sua própria condição, uma recusa de aceitação de si, uma afirmação de um poder do eu, poder esse que está na base, e foi a mola propulsora, do próprio acto que conduz ao arrependimento e à contrição.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Metamorfose e metanoia

Jackson Pollock - Alchemy (1947)

A viagem do espírito - quero dizer: a vida que somos solicitados a viver - é, na verdade, um processo alquímico, para usar uma metáfora ao gosto revivalista desta época, um processo de transformação do que é vulgar e vil no ser humano em algo que seja nobre e elevado. É uma metamorfose do espírito servil num espírito livre. A questão, porém, é que este caminho só começa se houver uma metanoia, uma conversão. Isto significa que se adopte um outro ponto de vista sobre a vida. A natureza dá-nos um programa em que ela se reproduz e persiste. Conversão significa, porém, que o homem descobre para além da natureza dada, marcada pela estrita necessidade, uma outra natureza, aquela que o solicita a ser mais do que mera necessidade, que lhe dá o imperativo de ser livre.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Fechar e abrir

Alfonso Bonifacio - A traves de la ventana (1995)

Quando pensamos em janelas somos levados por considerações acerca da sua utilidade ou do seu valor estético no enquadramento do edifício que as alberga. Não pensamos - ou pelo menos não pensamos de imediato - que elas resultam de uma espécie de contrato entre entre o espaço privado e o espaço público, entre a intimidade e a publicidade. Esse contrato, de tão difícil negociação, responde, na verdade, a uma necessidade do espírito humano, a um ritmo da vida espiritual. A vida deve ser um balanceamento entre o dentro e o fora, entre o íntimo e o público, entre a reclusão meditativa, secreta e íntima, e o mergulhar activo no mundo que está para além reclusão doméstica. A janela é, deste modo, um símbolo da nossa condição, ao ter o poder paradoxal - paradoxo presente em todos os símbolos - de nos fechar e de nos abrir ao mundo.

domingo, 26 de julho de 2015

A solidão no monte

Henri Matisse - The Sorrows of the King (1952)

Mas Jesus, sabendo que viriam buscá-l'O para O fazerem rei, retirou-Se novamente, sozinho, para o monte. (João 6:15)

Platão ainda viveu a ilusão do Rei-Filósofo, a possibilidade de compreender o poder como o lugar da justiça e do bem. Cristo, porém, não tem qualquer ilusão. Perante a possibilidade de ser aclamado rei, retira-se para a solidão do monte. Este gesto de recusa do poder não é importante apenas para compreender a figura do Cristo. É decisivo para se perceber a natureza do poder. Mais decisivo, contudo, é aquilo que é contraposto à ocupação do poder, a solidão no monte. O que significa isso? O monte simboliza a possibilidade de ver de cima, de compreender, de perscrutar o horizonte, de contemplar. A solidão do monte diz-nos que, para o homem, a contemplação é o bem mais precioso, infinitamente mais precioso do que o poder.

sábado, 25 de julho de 2015

Haikai do Viandante (241)

Jens Juel - A Storm Brewing behind a Farmhouse in Zealand (1795)

chega a tempestade
um céu sulcado de nuvens
na terra tudo arde

sexta-feira, 24 de julho de 2015

O desperdício

José Balmes - Desperdícios (1984)

A sociedade do consumo em que vivemos é, ao mesmo tempo, uma sociedade do desperdício. O problema do desperdício não está na sua irracionalidade económica ou na injustiça que pode haver na existência de um superabundância, que exige que se deite fora o excesso, ao lado de formas extremas de carência. O problema central do desperdício reside na aniquilação que ele supõe do espírito, pois tudo o que o homem faz, seja qual for a forma como isso é feito, é uma emanação e um investimento do espírito. Desperdiçar é, deste modo, retirar sentido ao que o espírito concebe e tornar a actividade espiritual um absurdo.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Os banhos públicos

Hubert Robert - Ancient Ruins Serving as a Public Bath (1798)

Indeciso, olhou para os outros banhistas. Nunca, na sua curta existência, vira ou ouvira falar de alguém que tivesse atravessado a longa piscina. Por que seria? – interrogou-se. Mergulhou então e começou a afastar-se. Ouviu gritos. Chamavam-no, mas era tarde para reverter a sua decisão. Conforme nadava sentiu o corpo a crescer, a tornar-se mais forte e poderoso. Reconfortado, esqueceu quem gritava e persistiu na viagem. A partir de determinada altura, as primeiras sensações de força e crescimento desapareceram, substituídas por uma longa plenitude. Quando se aproximou do fim, o cansaço sobreveio. A viagem era longa, pensou. Ao sair da piscina olhou o espelho. Este, desdenhoso, devolveu-lhe uma imagem, a de um rosto exausto, coberto de rugas, suportado num corpo débil e sem consistência. Tinha chegado ao seu destino.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Poemas do Viandante (515)

Alexander Cozens - A Wooded Path

515. ao entrares na floresta

ao entrares na floresta
tudo é mistério

as vítreas aves que cantam
o vento que sopra

a luz que cresce no dia
e morre na sombra

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Um naufrágio inominável

Claude Joseph Vernet - Um naufrágio

Talvez a metáfora do naufrágio seja a mais esclarecedora da vida dos homens. Não me refiro apenas à vida daqueles que, segundo os padrões humanos, se transviaram e foram conduzidos a uma ou outra forma de errância. Esses ainda têm a consciência, dada pela experiência, da sua condição. Náufragos maiores são, porém, aqueles que se julgam firmes na mais sólida das embarcações. Seguram o leme com empenho, sentem-se resguardados das tempestades e são incapazes de perceber que toda a sua vida, tão bem ordenada, é um naufrágio inominável.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Chegar a casa

Roelant Jacobsz Savery - A Mill Tower on the Moldau near Prague (1613)

Concentrado na condução, nem dava pelos quilómetros que devorava. Rasgava paisagens, deixava cidades e aldeias para trás. Quem o visse, pensaria que queria anular o tempo. Na verdade, não sabia para onde ia. Cansado da ganga do quotidiano, pegou no carro e deixou-se levar pelo destino. Quando anoiteceu, ao fim de cinco horas de estrada, viu uma estranha estrela. Tornou-se o seu guia, mudo e brilhante, que lhe indicava o que fazer a cada instante. Conduzia há muitas horas, mas ainda não sentira o cansaço. Quando avistou a indicação para sair em Praga não hesitou. Mal começou a caminhar em direcção à cidade, uma luz suave caiu sobre ela e a paisagem urbana começou a perder os contornos, até que os bairros se desfizeram em névoa e um velho mundo ocupou o espaço à sua frente. Quando a aurora chegou, avistou ao longe, numa curva do rio, a torre de um antigo moinho, há muito desaparecido. Fixou o olhar, mas o moinho era real, demasiado real. Confuso exclamou: cheguei a casa.