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quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Duas árvores

Hercules Pieterszoon Seghers - Duas árvores (1.ª metade do séc. XVII)

A árvore não é apenas o símbolo da nossa condição actual, ao manifestar que somos seres que pairam entre a terra e o céu, seres cujas pulsões penetram no que há de mais sombrio na existência, mas cujas aspirações são guiadas pela luz que chega do céu, o qual não cessa nunca de nos convocar à elevação, apesar da terrível força da gravidade. As árvores - fundamentalmente quando surgem como um par - recordam-nos a nossa antiga condição mítica, aquela de onde fomos expulsos ao comer o fruto proibido. Olho o quadro de Seghers e reconheço de imediato a árvore da ciência do bem e do mal e a árvore da vida. E neste reconhecimento, o velho mito renova-se e continua vivo.

quarta-feira, 27 de março de 2013

A hora que se aproxima

Salvador Dali - A persistência da memória (1931)

Naquele tempo, um dos Doze, chamado Judas Iscariotes, foi ter com os sumos sacerdotes e disse-lhes: «Quanto me dareis, se eu vo-lo entregar?» Eles garantiram-lhe trinta moedas de prata. E, a partir de então, Judas procurava uma oportunidade para entregar Jesus. No primeiro dia da festa dos Ázimos, os discípulos foram ter com Jesus e perguntaram-lhe: «Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?» Ele respondeu: «Ide à cidade, a casa de um certo homem e dizei-lhe: 'O Mestre manda dizer: O meu tempo está próximo; é em tua casa que quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos.’» Os discípulos fizeram como Jesus lhes ordenara e prepararam a Páscoa. Ao cair da tarde, sentou-se à mesa com os Doze. Enquanto comiam, disse: «Em verdade vos digo: Um de vós me há-de entregar.» Profundamente entristecidos, começaram a perguntar-lhe, cada um por sua vez: «Porventura serei eu, Senhor?» Ele respondeu: «O que mete comigo a mão no prato, esse me entregará. O Filho do Homem segue o seu caminho, como está escrito acerca dele; mas ai daquele por quem o Filho do Homem vai ser entregue. Seria melhor para esse homem não ter nascido!» Judas, o traidor, tomou a palavra e perguntou: «Porventura serei eu, Mestre?» «Tu o disseste» respondeu Jesus. (Mateus 26,14-25) [Comentário de Catarina de Sena aqui]

Em parte, o conteúdo do texto de Mateus foi já comentado aqui e aqui. Não se retornará à questão colocada pelo acto de Judas. Comentar-se-á apenas o estranho versículo 18: Ele respondeu: «Ide à cidade, a casa de um certo homem e dizei-lhe: 'O Mestre manda dizer: O meu tempo está próximo; é em tua casa que quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos.’» A estranheza do versículo deriva da conexão entre “um certo homem” e aquilo que lhe deve ser dito.

As perguntas que surgem são óbvias. Quem será esse tal homem, que o texto apresenta de forma tão indeterminada? A importância desta figura invisível não advém apenas do facto de ser na casa dele que Cristo quer celebrar a Páscoa com os discípulos, embora o facto de ser aí precisamente e não noutro lugar não seja coisa despicienda. Esse alguém parece ter uma capacidade de compreensão do mistério crístico muito acima dos próprios discípulos, pois entende a expressão “o meu tempo está próximo”, a qual funciona como uma verdadeira senha que o leva a abrir a porta para  que seja aí realizada a Última Ceia. Quem é homem? O que sabe ele para que entenda a senha? Que relação tem ele, que não é um dos discípulos, com o próprio Cristo?

Kαιρος μου εγγυς εστιν, esta é a expressão grega do texto recebido que pode ser traduzida por a minha hora aproxima-se. É preciso distinguir entre kairos e cronos. Ambos podem ser traduzidos por tempo. Contudo, cronos remete para um tempo cosmológico que os calendários tentar fixar e dar sentido. Já kairos é o tempo existencial, e a expressão designa a hora certa ou própria de um determinado acontecer. Isto significa que aquela hora que se aproxima não se inscreve tanto na cronologia do cosmos ou da própria história humana, mas é da dimensão da irrupção de um acontecer decisivo que aguarda a hora oportuna.

Quando se diz que esse acontecer que pertence ao kairos não se inscreve na história humana, diz-se algo de muito parcial, diz-se que ele não pertence ao normal decurso dos acontecimentos sociais. Esse acontecer, todavia, acaba por se tornar inaugural dessa mesma história, pois desenha – e a história do Ocidente é a sua comprovação – um antes e um depois, ao qual toda uma civilização acabará por reportar os acontecimentos históricos.

Retorne-se à questão – que parece absolutamente decisiva – sobre a identidade daquele homem a quem os discípulos levaram o recado do mestre. A palavra grega presente no texto é δεῖνα. Ora este termo é usado quando não se especifica quem é a pessoa de quem se fala. Podemos dizer que é um espaço vazio à espera de ser preenchido por alguém com uma dada biografia. Reformule-se a questão: a quem levaram, na cidade, os discípulos  o recado do mestre, a quem foi apresentada a senha? Esse espaço biográfico vazio parece estar vago para ser preenchido com o nome de cada um de nós.

Para além da misteriosa figura histórica do dono da casa onde a Páscoa será comida, é a cada homem que o Mestre anuncia – e a anuncia a cada instante – que a Sua hora se aproxima. A cada momento é apresentada a senha – a minha hora aproxima-se – a cada homem. Esta senha solicita uma determinada resposta: abrir-lhe a casa (essa metáfora do nosso próprio ser) para que o mistério seja consumado no mais fundo e no mais secreto de cada um. Podemos negar, fugir, até trair, mas a hora que se aproxima é também a nossa hora.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O Filho do Homem

René Magritte - O Filho do Homem (1964)

Naquele tempo, ao chegar à região de Cesareia de Filipe, Jesus fez a seguinte pergunta aos seus discípulos: «Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?» Eles responderam: «Uns dizem que é João Baptista; outros, que é Elias; e outros, que é Jeremias ou algum dos profetas.» Perguntou-lhes de novo: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo.» Jesus disse-lhe em resposta: «És feliz, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que to revelou, mas o meu Pai que está no Céu. Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela. Dar-te ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu.» (Mateus 16,13-19) [Comentário de Bento XVI aqui]

O texto trata da instituição da Igreja, o momento em que Cristo coloca Simão como fundamento dessa Igreja. Esta acto instituinte, contudo, deve ser recolocado no contexto, e este é o de um inquérito. O Mestre interroga o seus discípulos, e interroga-os não sobre qualquer matéria de natureza teórica, sobre alguma coisa que eles pudessem saber pelo estudo, mas acerca da própria natureza do Mestre.

O inquérito não deixa de ser surpreendente e marcado por clara ambiguidade. A primeira questão interroga acerca da crença corrente na opinião pública. A ambiguidade está na expressão, corrente no Antigo e no Novo Testamentos, com que Cristo se designa a si mesmo, o Filho do Homem (ben Adam). Essa expressão, em hebraico e na cultura judaica, remete para a referência homem e desse modo a questão poderia ser reformulada da seguinte forma: “Quem dizem os homens que é o homem?”, o que permite perceber que a questão se dirige à essência do próprio homem. O que sabem os homens de si mesmos?

Os homens sabiam pouco, pois viam em Cristo um homem puramente particular, mas não aquilo que é essencial em todos os homens. Na verdade, não se reconheciam a si mesmos na figura do Mestre. A segunda parte do inquérito é dirigida aos discípulos, e Simão reconhece o Mestre. O que leva Cristo a tomar Simão como o alicerce da sua Igreja é o reconhecimento da profunda identidade entre o Filho do Homem (bem Adam) e o Filho do Deus Vivo. Este reconhecimento de Cristo por parte de Simão Pedro é, concomitantemente, o auto-reconhecimento de Pedro. Todo o homem é filho de Deus.

Os poderes conferidos a Pedro estão fundados no reconhecimento que tem da própria humanidade, da sua origem, no reconhecimento do modelo pelo qual todo o homem foi criado. Esse reconhecimento não nasce da carne e do sangue, isto é, não nasce de uma sabedoria exterior, não vem pelo estudo ou pelo ouvir dizer de uma tradição. O reconhecimento do Filho Homem nasce da vida interior, da revelação do Espírito. A afirmação da sacralidade da vida humana e a condição de possibilidade da afirmação da sua dignidade residem neste reconhecimento alicerçado na revelação. E é sobre estes alicerces que se funda uma nova comunidade, não uma comunidade natural, de natureza bio-social, mas uma comunidade espiritual e moral que, pelo reconhecimento do Filho do Homem, eleva os homens para lá da mera contingência da animalidade.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Do céu, da terra e do homem

José Ramón Zaragoza - Prometeo encadenado

Há dias, perante uma certa polémica que se levanta em torno de figuras como Slavoj Zizek e Alain Badiou, alguém me acusou de ser humanista. Zizek e Badiou, dois pensadores com bastante destaque mediático nos dias de hoje, são herdeiros da tradição anti-humanista que cresceu em França à volta do estruturalismo. Os pensadores estruturalistas, em oposição ao existencialismo de Sartre, vieram declarar a morte do homem. As posições humanista e anti-humanista tiveram em Portugal representantes fora do campo da filosofia. Vergílio Ferreira e Eduardo Prado Coelho, respectivamente. Não sendo eu um particular adepto das posições de Zizek e de Badiou, só podia ser um humanista.

A questão do humanismo deve ser colocada, porém, na sua fonte moderna. Os humanistas surgem no final da Idade Média e representam um movimento que pretende ultrapassar a visão teocêntrica do mundo e colocar o homem, a humanidade, como o centro da acção do próprio homem. Este humanismo foi tomando múltiplas colorações - as mais díspares, diga-se - ao longo da modernidade. O cartesianismo, o iluminismo, o liberalismo e o utilitarismo, o marxismo ou o existencialismo, são exemplos desse triunfo moderno do homem sobre a sombra de Deus, exemplos de uma visão prometaica da mundo. Este humanismo foi desafiado pelo estruturalismo, o qual substituiu o homem pelas estruturas, sejam as da linguagem, as sociais e económicas, as do psiquismo, etc., numa proclamação da morte do homem, depois da proclamação nietzschiana da morte de Deus. 

Na verdade, a querela interessa-me pouco. Falando psicanaliticamente, o humanismo não passa de um narcisismo da espécie humana e o anti-humanismo de um sado-masoquismo, marcado pelo prazer-dor de dissolver o homem. Não acho que o homem esteja morto nem que seja o centro do universo. Utilizando a simbologia extremo oriental, diria que o homem está entre a terra e o céu. É o mediador entre aquilo que está abaixo dele e aquilo que o ultrapassa. Nesta ultrapassagem, contudo, não penso o sobre-homem nietzschiano, aquele que vem depois do homem. De certa forma, estarei muito mais perto da concepção medieval do que de quaisquer dos contendores da querela do humanismo e do anti-humanismo. Não que pense na possibilidade de um retorno à Idade Média. Não há retornos na História. O fundamental é pensar que o que há de mais elevado, aquilo que a tradição chinesa denomina como céu e a ocidental como Deus, seja o centro dinâmico da vida dos homens, mas de homens que substituíram o princípio de autoridade pelo princípio da liberdade, e por isso são modernos.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Da graça e da força

George Grosz - Kraft und Anmut (1922)

Poder-se-á traduzir o título do quadro de Grosz, Kraft und Anmut, por vigor e elegância. Estaria certamente de acordo com o espírito da obra. No entanto, prefiro outra tradução: força e graça. Graça no sentido daquilo que é gracioso, não no sentido de graça divina, pois em alemão esta graça diz-se Gnade. Este afastamento lexical entre Anmut e Gnade não permite compreender aquilo que é de imediato perceptível em português: o carácter gratuito da graciosidade, da beleza. A graça de uma mulher, a sua elegância, não é uma mera obra sua mas uma dádiva recebida, um dom. e sem ele não há esforço que dê graça a uma mulher. Dito de outra maneira, a graça é uma Graça. Já Kraft reenvia para a ideia de exercício e de esforço. A força ou o vigor são um produto próprio, o resultado de um exercício que pretende transformar a fragilidade do homem em força. Daí, o carácter eternamente rude da força, ao contrário da natureza etérea da graciosidade feminina. 

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Adão e Eva


Uma simbólica essencial inscreve-se no mito de Adão e Eva. Não dirá tanto respeito à queda, mas à tarefa de ressurreição e de emancipação que se coloca aos seres humanos na sequência da queda. Homem e mulher tornam-se um para o outro caminho, mediação, possibilidade. A consumação da feminilidade de toda a Eva passa pela mediação de Adão e vice-versa, a consumação da virilidade de qualquer Adão passa pela mediação de uma Eva. Talvez o sentido mais profundo da indissolubilidade do matrimónio não resida na proibição da separação dos casais reais, mas na indissolubilidade entre o masculino e o feminino na experiência espiritual.