domingo, 19 de novembro de 2017

A cadeira

André Kertész - Acapulco,1955

Vê aquela cadeira? Não está a ver? Parece uma sombra, mas é bem real, se é que alguma coisa há que o seja. Não, não se preocupe, não vou discutir metafísica consigo. Aliás, é assunto que não me interessa. Quer saber o que ela tem de tão especial? Mudei-me para aqui há 70 anos, já a cadeira ali estava, e até hoje nunca vi ninguém sentado nela, apesar de todos os dias uma pessoa, que foi mudando ao longo dos anos, a limpar e cuidar. Dizem, certamente por superstição, que é o lugar do morto. Parece, agora, interessado. Quer saber porque lhe falo disto? É simples. A cadeira está ali e é evidente que está à espera. E sempre que chega um forasteiro, pergunto-me se não é ele que ela, há tanto tempo, aguarda.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Meditação breve (57) Desejo

John Loengard, Henry Moore’s Sheep Piece, Hertfordshire, England, 1983

O que a fotografia de John Loengard nos mostra, aparentemente, é a desproporção entre a realidade e os artefactos. No entanto, o que vemos é a desmesura do desejo humano expressa no trabalho de Henry Moore. O deseja celebra-se no seu excesso e este excesso é o sinal de um desejar infinito.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Poemas do Viandante (661)

Jesús María Cormán - Moor n.º 10 (2001)

661. chove na charneca

chove na charneca
um lago de saudade
vibra
em ondas verdes
rasgadas
pelo odor de poeira
uma catástrofe
de violetas
no vitríolo dos céus

(16/12/2016)

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Intimação

Otto Steinert - Call, 1950

A vida do espírito começa com um chamamento. Este dá-nos a dimensão da alteridade, do outro, daquele que toma a palavra e, com a sua voz, no chama. Esses outro que nos chama, contudo, não está, necessariamente, fora de nós. Esse outro podemos ser nós. Quando esse outro, que somos nós, nos chama, então é porque temos uma vocação. Se o chamamento vier de fora, ele não passe de uma solicitação. Se vier de nós, então estamos perante uma intimação. Somos intimados a responder.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

Haikai urbano (26)

Artur Pastor - Cais das Colunas, Lisboa, 1950-69

No cais das colunas,
Lisboa perde-se nas águas.
Tejo, a luz do mar.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Haikai do Viandante (343)

Jeanne Carbonetti - Bétulas no Inverno (1997)

As bétulas despem-se
no silêncio do inverno.
Um ramo caiu.

domingo, 12 de novembro de 2017

O sopro do vento

Wolf Suschitzky - Milkman, Charing Cross road, London, 1935

Uma das formas de resistência que os seres humanos opõem ao espírito é a nostalgia. Olham o passado, paradoxalmente, como uma promessa de um mundo melhor. Na verdade, o que vêem são apenas simulacros desse passado despidos da sua vida real e de todo o trágico que ali houve. Essa saudade evita o exercício da escuta. O que devemos escutar? A resposta é simples: o vento. O vento sopra onde quer e nele repousa a energia, a virtude e a vontade do espírito.

sábado, 11 de novembro de 2017

Poemas do Viandante (660)

Jesús María Cormán - White event N.º 8 (2000)

660. espuma escorre

espuma escorre
tocada
pelo carbúnculo
do desejo
fio de água fiado
na roca do oceano
as mãos vazias
e
quase puras
tão puras as mãos do tempo

(16/12/2016)

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Evocações

Deborah Turbeville - Isabella at École Des Beaux Arts, Paris, 1977

Quando o espírito mergulha na evocação, como acontece nesta fotografia de Deborah Turbeville, nunca é com a finalidade de rememorar o passado ou, tão pouco, de o comemorar. A evocação não é um jogo memorial mas, antes, uma reconfiguração de elementos dispersos, que, de súbito, se unem para nos darem a ver uma presença inédita num presente nunca vivido. Evocar não é convocar o passado mas promover o presente.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Intimidade

Giorgio de Chirico - Entrevista (1927)

Naquilo a que se dá o nome de intimidade não existe apenas, e ao contrário do que muitas vezes se pensa, o que é mais próprio, autêntico e verdadeiro. A intimidade é um espaço de negociação entre o público e o privado, entre os desejos e afecções subjectivas e as convenções exteriores. A fronteira entre o íntimo e o público é de tal maneira porosa que, muitas vezes, se perde a noção daquilo que se deve reservar e aquilo que se deve ostentar. O segredo não é intrínseco à intimidade, mas resulta de uma conduta que exige esforço e persistência.