quarta-feira, 17 de maio de 2017

Poemas do Viandante (630)

Yves Klein - Anthropométrie suaire sans titre  (ANT SU 3) (1960)

630. a borboleta desce

a borboleta desce
miraculada
de cores
no alvéolo branco
do ciúme
e estende a teia
aos amantes
no vinho ébrio
borboletado
de janeiro a janeiro

(10/12/2016)

terça-feira, 16 de maio de 2017

Haikai urbano (12)

John Atkinson Grimshaw - Liverpool Docks, 1880s

navios do passado
chegam na luz do futuro
cidade de sombra

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Olhares

Unknown Photographer - The first day of school, Portugal, 1936

A escola é, muitas vezes, um treino sistemático para aprender olhar para baixo, como se todo o interesse dos homens estivesse na terra. Por vezes, alguém ousa olhar para cima e é nesse momento e nesse gesto que o homem adquire rosto, onde se manifesta o espírito, e um outro sentido para a vida se torna manifesto.

domingo, 14 de maio de 2017

Meditação breve (31) - Ser

Barbara Brändli - Untitled, from Sistema Nervioso (1974-5)

Não basta ser, é preciso querer ser. Não basta querer ser, é necessário afirmá-lo e inscrevê-lo na realidade. Um facto que se torna projecto para se tornar ser.

sábado, 13 de maio de 2017

Os caminhos do espírito

 Francis Wu - Shellfish Catching at Dawn, undated

Basta uma simples fotografia de uma actividade material para se perceber que a vida do espírito possui múltiplos caminhos. Antes das sendas singulares, estão vias mais gerais, a que se dá o nome de culturas. Estas conferem enquadramento e sentido para a aventura individual. O caminho espiritual, seja em que área for, é sempre um processo de singularização. As culturas mais do que dispositivos de diferenciação são meios de intermediação entre o universal e o singular.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Poemas do Viandante (629)

Lucio Muñoz - 7-86 (1986)

629. o pó da penumbra

o pó da penumbra
levanta-se
e trémulo deixa
entrever
o açafrão da paisagem
na rota rasgada
pelo tímido tremor
da chuva de novembro

(10/12/2016)

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Haikai do Viandante (324)

Gustave Le Gray - Groupe de Navires - Cette, Mediterranée (1857)

silêncio no porto
são águas da primavera
os navios parados

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Sombras

Loomis Dean: Women modeling apres-ski fashions designed by Fred Spillman cast long shadows on the Palace Hotel’s ice rink. St. Moritz, Switzerland, 1958

Acha curiosa a fotografia? Tem razão, claro. Ela merece o nosso olhar atento, mas não é por aquilo que somos levados a pensar. A beleza das mulheres, a luz e a projecção de grandes sombras sobre a superfície gelada. Em tudo isso, há um estranho equívoco. Os nossos hábitos não nos deixam perceber a realidade. Estas sombras já estavam impressa no gelo há muito. Sempre que a havia luz, eram visíveis. Até que um dia, juro que o vi, começaram a formar-se estranhas estátuas de gelo, quando estavam completamente formadas, ouvi vozes. Falavam entre si. No dia seguinte, quando a luz voltou, elas lá estavam. De carne e osso. Aquelas mulheres, tão vivas, são sombras das próprias sombras.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Haikai urbano (11)

Alexey Titarenko - Untitled, (White Dresses), St. Petersburg, Russia (1995)

no vazio da rua
passeiam dois anjos brancos
os homens esperam

segunda-feira, 8 de maio de 2017

A fuga

Heinrich Kuhn

Ficava longas horas a olhar as águas do lago. Não pensava em nada, olhava e entregava-me a um estranho sentimento de nostalgia. Sempre que ali estava, dentro de mim nascia a certeza de que há muito eu teria habitado o lago. Quero dizer: o lago teria sido a minha casa e a água o meu elemento. Com o passar das horas, o sentimento transformava-se em convicção e uma estranha evidência crescia em mim. Então, levantava-me e corria para casa. Um dia ouvi, vinda do fundo, do lago a voz da minha mãe, morta há muito. Chamava-me para casa. Levantei-me e ainda dei uns passos em direcção à água. O crocitar de um corvo, contudo, fez-me parar. Fugi, é essa a palavra, e nunca mais voltei.