terça-feira, 20 de dezembro de 2016

De olhos fechados

Odilon Redon - With Closed Eyes (1890)

Fecho os olhos e é tudo o que me resta. A escuridão é benfazeja. Houve um tempo em que queria ter os olhos bem abertos. Era perspicaz e via tudo, pensava. Rapidamente, a desilusão chegava. Afinal não tinha visto tanto quanto julgara. Os olhos, por abertos que estejam, são maus julgadores. As aparências são mesmo aparências. A uma desilusão somou-se outra e outra. Parecia não ter fim. E em cada uma descobria que os olhos, os meus olhos, me tinham traído. Resta-me fechá-los e entregar-me à cegueira. No escuro não há lugar para a ilusão. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

No parapeito

George Seurat - Man at a Parapet (1881)

Se fosse um pássaro... Se fosse um pássaro poderia saltitar no parapeito sem medo de cair. Não, não sou um pássaro. Sinto apenas a vertigem e um desejo de voar. Tenho medo de olhar para baixo. Tenho medo do apelo do voo. Tenho medo. E não sei por que razão este parapeito me chama e por que motivo me debruço nele. Olho e vejo o que se passa lá em baixo. É tudo tão pequeno. Os homens, os carros. Será ali a ilha de Lilliput? Meu Deus, subo para o parapeito. Dei um passo e estou no vazio, mas as costas rasgam-se e umas enormes asas fazem-me deslizar no ar. Voo. Alguém grita:"É Gabriel, o Arcanjo". Calo-me, o que lhes direi?

domingo, 18 de dezembro de 2016

A adoração dos pastores

Rafael Durancamps - La Adoración de los Pastores

Aproxima-se o Natal. Uma das características deste evento é a sua inverosimilhança. A adoração dos pastores ao menino nascido no presépio de Belém é absurda. A natureza absurda destas narrativas não lhes vem de uma pretensa ingenuidade, mas da ausência desta. Estas narrativas foram concebidas não como um registo histórico-racional, mas contra esse mesmo registo. Dizem, pela sua simples existência, que não se dirigem à razão mas à imaginação. Não nos narram factos históricos mas trazem à luz modelos imaginários que estão para além do tempo e da história. A adoração dos pastores não retrata um facto do passado, mas um evento eterno que nunca deixou de acontecer. Na essência do cuidar do rebanho está um acto de adoração que transcende o pastor e o rebanho. É a alteridade, consubstanciada no adorado, que permite ao pastor ser aquilo que é.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (597)

Josef Albers - Constelación estructural. Alfa (1954)

597. de alfa em alfa traço

de alfa em alfa traço
no azeviche
dos céus
constelações
de luz
e letras lívidas
rastos de saudade
na solitária solidão de deus

(04/12/2016)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O fogo

Paul Serusier - The Fire Outside (1893)

Vinham todos os sábados. Um bloco de rocha servia mesa, talvez de altar. A primeira juntava lenha e ateava o fogo. Uma segunda trazia uma antiga panela de tripé e colocava-a sobre o fogo. Depois, vinham as outras, em procissão. O número era variável, mas nunca menos que uma vintena. Chegavam silenciosas, de olhar mortiço. Rodeavam o fogo, olhavam-no intensamente. Chegada a hora estendiam um prato vazio e as primeiras serviam-lhe a comida. Comiam e fitavam o fogo. Nunca uma palavra era dita. Acabada a refeição, iam-se embora como tinham chegado. Os olhos eram então um fogo insaciável.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (309)

Modesto Urgell Inglada - Entardecer

rosa sobre rosa
a planície entardece
terra e solidão

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Encerrar-se na sua concha

Georgia O'keeffe - From a Shell (1930)

Na concha simboliza-se o ambiente protegido e o refúgio inexpugnável. De que se protege aquele que se encerra na sua concha? Da ameaça exterior, das solicitações do mundo? Em aparência sim. Aparências, porém, são aparências e, muitas vezes, ocultam a realidade. Na verdade, procura-se protecção contra o vento. Não o elemento físico, mas aquele vento que sopra onde quer e tem o condão de confrontar o homem com aquilo que ele é. Ao encerrar-se na sua concha, o homem protege-se de si mesmo e da sua verdade.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (596)

Victor Vasarely - Belle-Isle (1949-52)

596. arquipélago negro

arquipélago negro
sobre azul
rochas presas
na água
da claridade
onde peixes
germinam e gemem
no gerúndio
fulvo
a obscurecer
de ilha em ilha

(04/12/2016)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Da ociosidade

Edward Burne-Jones - Pilgrim at the Gate of Idleness (1884)

Para os gregos o ócio era a condição de possibilidade da filosofia. Sem ele não seria possível uma vida espiritual efectiva e fecunda. Há um momento, porém, talvez ainda na Idade Média em que o ócio emerge como um inimigo dessa mesma vida espiritual. A ociosidade é retratada como uma donzela sedutora, tal como, muitos séculos depois, Burne-Jones, inspirado no Romance da Rosa, a retrata.  O peregrino tem de resistir à sedução do ócio para poder continuar a viagem. A acção ganhava assim uma preeminência, na vida espiritual, sobre a contemplação. O mundo moderno estava à porta. Lentamente, mas de forma inexorável, o peregrino tornou-se em turista ou em caixeiro-viajante.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Acções de resgate

Pedro Calapez - Submerso (2001)

As múltiplas e diversificadas formas que toma a vida espiritual, da arte à religião ou à filosofia, têm um aspecto comum. A condição do espírito é de estar submerso, oculto pelas águas. Cada aventura espiritual é um exercício de o trazer à luz e de o resgatar da sua alienação na natureza. Um romance, um quadro, a prática dos místicos ou a especulação dos filósofos são, na verdade, acções de resgate e de libertação.